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Special Situations e Financiamento de Litígios

Temas sobre questões jurídicas envolvendo o mercado de financiamento de litígios e de special situations.

Daniel Kalansky
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Financiando Mr. Bates

Assisti recentemente a uma série britânica com quatro episódios produzida pela BBC: Mr. Bates vs. The Post Office. A série retrata a história real de um escândalo no Reino Unido, em que gerentes de agências ("subpostmasters") do Post Office foram alvos de investigações e réus em processos judiciais - criminais, inclusive - por déficits de caixa causados por falhas no sistema de TI conhecido como Horizon. O Horizon, desenvolvido pela empresa japonesa Fujitsu, foi implementado entre 1999 e 2000, tornando-se o software usado para tarefas de contabilidade e controle de estoque, por aqueles gerentes. Ocorre que o sistema Horizon passou a adulterar números e dados nele inseridos, resultando em dívidas de milhares de libras, contraídas em frações de segundos, de forma automática, arbitrária e inexplicável. No papel, estava tudo certo, mas o software calculava um grande déficit, que não correspondia à realidade. Os gerentes entravam em pânico, pois, cientes do balanço diário, deparavam-se com um novo cenário, criado pelo sistema, no qual o caixa da agência simplesmente desaparecia, dando lugar a uma dívida. Foram muitos os casos em que vítimas ligaram para o suporte técnico do Post Office, buscando ajuda, em tempo real, retratando o absurdo que testemunhavam. No entanto, além de não conseguir ajudar, os funcionários do Post Office alegavam que não havia qualquer outro relato parecido, levando aqueles "subpostmasters" a acreditarem que, na verdade, eles haviam "perdido o controle" sobre suas contas. Nesse cenário, os gerentes das agências não tinham opção: ou quitavam a dívida, com dinheiro que muitas vezes não tinham, ou enfrentavam um julgamento e buscavam provar sua inocência e as falhas sistemáticas, com grandes chances de acabarem na prisão, acusados por fraude. O caso é triste, revoltante e considerado, pela CCRC - Criminal Cases Review Commission, a maior série de condenações injustas na história do sistema judiciário britânico1. Mais de 3.000 gerentes de agências postais foram falsamente acusados de desviar dinheiro. Dos condenados judicialmente, alguns foram presos. Muitas vítimas ficaram doentes, tendo sido, inclusive, registrados casos de suicídio. Famílias, reputações e planos foram destruídos. A produção foi aclamada pela crítica, dando voz às vítimas - muitas das quais perderam não apenas seus meios de subsistência, mas também a liberdade, devido a condenações injustas. Também expôs até onde o Post Office foi para frustrar as tentativas das vítimas de obter reparação, defendendo que o Horizon consistia em um sistema "robusto", de modo que as falhas apontadas pelas vítimas representavam, na realidade, erros cometidos pelos próprios usuários do sistema. A série retrata, ainda, a falta de esperança que assolava as vítimas e a questão que se colocava, durante toda a narrativa: como insurgir-se contra o grandioso Post Office? Como ingressar com um litígio coletivo, buscando justiça e reparação, enquanto as vítimas estavam afogadas em dívidas? Alan Bates, líder do movimento, tornou-se herói por sua campanha de duas décadas em busca de justiça. Um dos aspectos interessantes retratados na série é o mecanismo que permitiu que Alan Bates e seus colegas levassem a questão à Justiça: o financiamento do litígio por um fundo. É fato que propor uma ação judicial exige recursos consideráveis - contratação de advogados, peritos, pagamento de taxas judiciais, entre outros. Por isso, antes de se ingressar em uma disputa - especialmente uma longa -, é essencial ponderar os custos, de modo a evitar a interrupção do processo por falta de recursos. É nesse ponto que o financiamento de litígios pode transformar o impossível em possível - especialmente para quem não dispõe de meios financeiros para arcar com os custos para promover uma ação judicial ou não deseja assumir os riscos envolvidos. Assim, os fundos de investimento que eventualmente se interessem pela tese a ser defendida concordam em pagar os custos da ação judicial sob a condição de que, se a reivindicação for malsucedida, eles assumem o prejuízo e o investimento realizado será perdido. Por outro lado, caso a tese sagre-se vencedora, os investidores receberão uma parte do benefício econômico, em montante consideravelmente superior ao que investiram. A série, inclusive, retrata o momento em que o advogado, interessado em assessorar as vítimas e ciente de sua hipossuficiência frente ao Post Office, traz à tona a possibilidade de um fundo financiar o litígio, explicando qual seria o "interesse" do funder naquela demanda e como tanto os subpostmasters, quanto o fundo, poderiam sair vitoriosos. Foi esse o caminho seguido por Alan Bates e seus colegas, obtendo financiamento para a propositura da ação indenizatória que, ao final, resultou em um acordo em que o Post Office se comprometeu a pagar às vítimas uma indenização de £ 57,75 milhões. Quando esse montante foi revelado, instaurou-se um grande debate entre certos articulistas, em razão do valor recebido pelo fundo que financiou a disputa. Em interessante estudo sobre Litigation Funding2 foi possível apurar os seguintes números em relação ao valor da indenização do caso Bates v Post Office: O total da indenização foi de £ 57,75 milhões; £ 22 milhões foram gastos em custos legais e demais despesas conduzir o litígio; £ 24 milhões foi o retorno do investimento pelo fundo; Após deduzidos os £ 46 milhões acima citados, £ 11.7 milhões foram destinados ao pagamento das vítimas, sendo direcionado o montante de £ 22 mil para cada uma das 555 vítimas. Ou seja, conforme o estudo examinado, o retorno efetivo do  fundo foi cerca de £ 24 milhões, representando 41% do benefício econômico auferido pelos autores, o que, segundo o financiador, estava dentro dos limites de mercado, considerando o alto risco envolvido. Embora uma parte relevante tenha sido paga ao financiador, foi o fundo que permitiu que as vítimas recebessem, ao menos, £ 22 mil cada uma, em um litígio de alto risco e que requer advogados qualificados e experientes para conduzi-lo. Como falado, dada a importância do caso - que é considerado um dos maiores escândalos judiciários do Reino Unido -, o montante da indenização pago às vítimas e os custos envolvidos no litígio, o precedente é utilizado tanto por opositores quanto por apoiadores do financiamento de litígios. Um aspecto importante desse debate é considerar que, sem o financiamento de litígios, diversas ações que trazem à luz enormes injustiças, muitas vezes perpetradas por empresas e instituições poderosas e intimidadoras, não seriam viabilizadas. No caso ora tratado, o financiamento do litígio tornou possível que advogados patrocinassem a causa, a verdade viesse à tona e a indenização fosse paga. Fica a dica de série para uma boa maratona de fim de semana: a história promete trazer muitas discussões interessantes sobre o universo de financiamento de litígios, a busca por justiça e a reparação de vítimas afetadas. _____ 1 Disponível aqui. Acessado em 10.12.2024. 2 Dados retirados de MULHERON, Rachael. A Review of Litigation Funding in England and Wales. Queen Mary University of London. Report commissioned by the Legal Services Board, 28.03.2024, pp. 103-104.
Um tema muito recorrente que trato com os fundos de financiamento de litígios refere-se às class actions no Brasil. E, dentro dos diversos temas que acabam surgindo, um recorrente refere-se à questão da legitimidade ativa e representatividade das associações para ajuizarem ações civis públicas, principalmente no que se refere à pertinência temática e representatividade adequada para defesa dos direitos. Nessas discussões, surgiu o seguinte questionamento: os indivíduos potencialmente beneficiados por uma futura sentença a ser proferida na ação civil pública podem dispor ainda na fase de cognição de seus direitos litigiosos com a eventual cessão de crédito para fundos de investimento? Ou a cessão de créditos decorrentes do exercício coletivo de direitos individuais homogêneos seria indisponível por natureza? De modo bastante breve, os direitos individuais homogêneos situam-se ao lado dos direitos difusos e coletivos. O art. 81, do CDC define a natureza de cada um desses direitos do seguinte modo: os direitos difusos são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, pertencentes a pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato; os direitos coletivos, também transindividuais e indivisíveis, pertencem a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica comum; por fim, os direitos individuais homogêneos decorrem de uma origem comum. Didaticamente, pode-se exemplificar direitos difusos como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado1. Já os direitos coletivos podem ser ilustrados pelos direitos dos consumidores de receberem serviços de qualidade das prestadoras de telefonia2. Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, emergem da sociedade de massa, em que diversas pessoas indistintas compartilham uma pretensão comum3. Nesse caso, embora não sejam considerados coletivos em sentido estrito, a legislação lhes atribui uma transindividualidade instrumental, com o objetivo de otimizar o acesso à Justiça e promover a economia processual4. A questão central, portanto, reside em compreender se direitos individuais homogêneos, quando ainda na fase cognitiva de uma ação civil pública, são considerados direitos disponíveis ou indisponíveis, bem como determinar se a cessão dos direitos de crédito resultante da violação de direitos individuais homogêneos desnatura a sua qualificação jurídica, impedindo o uso de medidas processuais previstas na lei 7.347, de 24/7/85 ("lei 7.347/85"). Os grandes argumentos no sentido de que na fase cognitiva da ação civil pública o direito individual homogêneo seria indisponível e, portanto, não passível de cessão, seriam os seguintes: os direitos individuais homogêneos resultam de situações que afetam diretamente um grupo de pessoas, sem individualização suficiente para permitir a sua cessão; admitir a cessão, segundo esse entendimento, poderia comprometer a coesão do grupo e prejudicar a tutela coletiva, favorecendo interesses privados e enfraquecendo a defesa judicial conjunta e prejudicando a tutela coletiva que é o cerne dos direitos homogêneos; como a cessão dos direitos homogêneos implicaria na fragmentação do grupo de titulares, quebrando a coesão necessária para a defesa eficaz de seus interesses, o caráter transindividual de tais direitos levaria eles possuírem uma indisponibilidade relativa; no curso das demandas coletivas, é ilícita a cessão dos direitos individuais homogêneos, pois, na forma do art. 286 do CC, "o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei (...)"; o STJ já decidiu que "o interesse individual homogêneo é um direito individual que acidentalmente se torna coletivo e, pois, indisponível, quando transcender a esfera de interesses puramente particulares, envolvendo bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação importa à comunidade como um todo";5 apesar de o direito de crédito decorrente da responsabilidade civil do autor do ilícito possuir natureza individual e disponível, na fase cognitiva da ação civil pública tais direitos seriam um bem indivisível para uma multiplicidade de vítimas com interesses convergentes na obtenção de uma condenação, somente adquirindo individualidade e disponibilidade quando passado ao exame das pretensões individuais em fase de liquidação ou de cumprimento de sentença; e o conjunto das posições jurídicas de vantagem que a lei confere aos legitimados extraordinários para propositura de ação civil pública não pode ser simplesmente cedida ou transferida a quem não ostente tal condição. Em resumo, os argumentos acima levariam ao entendimento de que a cessão de direitos individuais homogêneos desnaturaria a qualificação jurídica originária do crédito cedido, uma vez que o cessionário seria um investidor e não os verdadeiros afetados. A consequência de tal operação jurídica seria a perda dos privilégios processuais designados para o processo coletivo, uma vez que o regime processual em nosso direito é de caráter indisponível, fazendo o investidor - detentor dos direitos - não poder utilizar a tutela coletiva, mas sim ir em juízo perquirir o direito de crédito que é titular, dentro dos limites traçados pelo sistema processual ordinário. Tais argumentos, entretanto, não me convencem. As ações civis públicas são um advento processual relativamente moderno em nosso ordenamento jurídico, em que vige a impossibilidade de litigar direito alheio. Quando a lei 7.347/85 foi elaborada, o intuito do legislador era trazer para nosso sistema jurídico o mecanismo que fora previsto na Itália, França, Espanha e outros países de matriz civil law que promoveram tais medidas sob forte inspiração do sistema de litigância coletiva estadunidense - .6 7  Naquele momento, o principal ponto que levou à criação do regime previsto na lei 7.347/85 foi ampliar o acesso à Justiça. Isso porque, em muitos casos aqueles afetados por danos coletivos, sejam os danos a direitos coletivos em sentido estrito ou os individuais homogêneos, nem sempre possuem os melhores meios para fazer valer os seus direitos, pois são em muitos casos hipossuficientes e com reduzida capacidade de articulação institucional. Argumentar que a cessão dos direitos individuais homogêneos levaria à perda do regime processual atinente à tutela coletiva distanciaria na prática o que nosso ordenamento jurídico privilegiou com a criação de ações coletivas para proteção de direitos individuais homogêneos, que justamente ganham conotação coletiva para possibilitar o acesso à Justiça e promover economia processual. Os direitos individuais homogêneos podem ser individualizados e possuem natureza patrimonial. O nosso sistema jurídico permite a livre a cessão deles, desde que não haja restrição legal expressa. Nesse contexto, a cessão de direitos é contrato abstrato, cuja validade e eficácia não dependem do negócio jurídico sub ou sobrejacente que lhe tenha dado causa, razão pela qual o crédito permanece o mesmo, regido pelas mesmas normas de natureza material e processual; o que é modificado é tão somente aquele que o detém. Ainda, o nosso sistema jurídico privilegia a autonomia privada, motivo pelo qual os titulares de direitos individuais homogêneos devem ter a liberdade de dispor de seus direitos como entenderem. A cessão de direitos, nesse contexto, é um exercício legítimo, não existindo um fundamento jurídico para limitar a capacidade dos titulares de ceder esses direitos. Noto, ainda, que a cessão de direitos homogêneos também permite aos titulares que não desejam esperar pelo desfecho do processo ou tenham dificuldades financeiras obterem compensações imediatas através da cessão, promovendo a proteção concreta dos seus interesses. O cessionário dos direitos não interfere na condução do processo, pois o legitimado ativo que moveu a ação coletiva continua a ser responsável pela defesa dos interesses de todos os titulares, incluindo os cessionários. Mesmo que os direitos sejam cedidos, a sentença proferida no processo coletivo continua a beneficiar ou vincular todos os membros do grupo, incluindo os cessionários. A cessão, portanto, não cria um "novo" litígio, somente transferindo o direito de receber os benefícios da ação coletiva. Ademais, sendo os direitos individuais homogêneos cedidos de caráter eminentemente patrimonial, é razoável concluir que o investidor, proprietário do direito, terá seu interesse alinhado com os demais membros do grupo, motivo pelo qual a cessão não representa, em si mesma, um risco para garantia dos interesses do grupo de afetados. O sistema de tutela coletiva em vigor no direito brasileiro não dá conotação de indisponibilidade transitória aos direitos individuais homogêneos, uma vez que a pretensão engloba a faceta patrimonial deles, que possui natureza privada. Assim, coletiva é apenas a forma do processamento da ação. Entender pela indisponibilidade transitória dos direitos individuais homogêneos seria sobrepor os aspectos processuais à materialidade do negócio jurídico celebrado. Um outro fator que contribui para a liberdade da cessão é o fato de que em nosso sistema jurídico a ação coletiva é manejada por um representante institucional previamente definido em lei, diferentemente do estadunidense, que atua sob a premissa de que os membros individuais de uma dada classe conseguem defender os interesses coletivos satisfatoriamente. Essa desvinculação entre a figura do investidor, proprietário do direito de crédito decorrente da pretensão individual homogênea, e o autor da demanda judicial, contribui para a redução dos riscos de captura dos interesses tutelados pelo ordenamento. Afinal de contas, por disposição legal e estatutária, os legitimados ativos para propositura de ações coletivas devem atuar no melhor interesse da classe que defendem, sendo certo que o juiz pode sempre observar a adequação da representatividade no caso concreto, de modo a certificar-se de que os interesses estão sendo bem defendidos. Dessa forma, o problema da representatividade adequada e da correta defesa dos interesses da classe de afetados não é prejudicada pela cessão dos direitos individuais homogêneos, que podem circular livremente, uma vez que possuem destacado caráter patrimonial e são acidentalmente coletivos, cuja transindividualidade é meramente instrumental. Assim, penso que a possibilidade de cessão de direitos individuais homogêneos é algo que, além de estruturalmente fazer sentido em nosso direito, também está alinhado com o interesse que se busca proteger no sistema judicial brasileiro, que é a promoção de acesso à Justiça. Impossibilitar a cessão seria negar vigência aos arts. 286 e 293 do CC, ambos claros ao destacar a regra da livre possibilidade de cessão de direitos e a assegurar que o cessionário do direito cedido possa exercer todos os atos conservatórios necessários para preservar o direito objeto da cessão. ________ 1 Como é o exemplo da Ação Civil Pública proposta pelo Mistério Público de Alagoas, cuidando da contaminação ao Rio Mundaú e ao Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba, cuja poluição é resultante, dentre outras, do lançamento de esgotos in natura (BRASIL. TRF-5, ACP 0800073-17.2017.4.05.8002, em trâmite perante a 3ª Vara Federal de Alagoas). 2 Um bom exemplo da tutela de direitos coletivos por meio da Ação Civil Pública foi a demanda proposta pelo Ministério Público Federal e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC, em face do Whatsapp LLC e da Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD em razão da política de privacidade utilizada pela empresa proprietária da aplicação para comunicação. (BRASIL. TRF-3, ACP 5018090-42.2024.4.03.6100, em trâmite perante a 2ª Vara Cível de São Paulo). 3 Exemplo de Ação Civil Pública visando à proteção de direitos individuais homogêneos é o caso da demanda proposta pela Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida - ABPST, que condenou a União a indenizar os afetados pela comercialização do remédio que era usado por mulheres gravidas para combater enjoos. (BRASIL. TRF-3, ACP 0028796-44.2002.4.03.6100, em trâmite perante 20ª Vara Cível de São Paulo). 4 Como é possível notar, existem diversos casos em que sobre um mesmo fato incidirá a tutela de direitos coletivos em sentido estrito, como são os direitos difusos e coletivos, como também dos direitos individuais homogêneos. Para distinguir uns dos outros é necessário que seja verificada a pretensão levada em juízo, nesse sentido, Cf.: CUNHA, Alcides Munhoz da. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, vol. 77 jan/mar 1995, p. 224. 5 BRASIL. STJ. REsp nº 1.888.383/RS, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, j. 24.11.2020. Note-se que, conquanto a ementa do julgado e a fundamentação do voto da Ministra Nancy Andrighi contenham o trecho indicando a indisponibilidade dos direitos individuais homogêneos para firmar a legitimidade do Ministério Público, a Relatora baseou-se também em outra decisão exarada pelo STJ no âmbito do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1261198/GO, que firma a natureza disponível dos direitos individuais homogêneos, bem como ressalta a competência para atuação do Ministério Público "quando constatada a relevância social objetiva do bem jurídico tutelado", havendo, inclusive, outras decisões do STJ em sentido oposto, Cf.: BRASIL. STJ. REsp nº 1.480.250/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, j. em 18.08.2015; BRASIL. STJ. REsp nº 1.033.274/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 06.08.2013; BRASIL. STJ. REsp nº 945.785/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j. em 04.06.2013. 6 Conforme expõe Teori Zavascki, tratando dos antecedentes históricos do nosso subsistema de processo coletivo, Cf.: ZAVASCKI, Teori, Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos - 6. Ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 29-30. 7 Conforme narra a exposição de motivos do projeto de lei que redundou na promulgação da Lei 7.347/85, Cf.: "(...) o anteprojeto parte do princípio de que há um titular dos direitos subjetivos perfeitamente identificado, e que esse titular é quem tem a legitimidade processual para defender, em juízo, os seus direitos. Mas existem outros interesses que não são individualizados, pois correspondem a um grupo, a uma comunidade ou à sociedade. Nesses casos, não se vislumbra claramente quem é que poderia, em seu próprio nome, defender esses interesses não individuais. Ao Ministério Público como defensor natural do interesse público deve caber, preferencialmente, a titularidade ativa daqueles interesses não individuais, indisponíveis da sociedade, com a conseqüência de poder provo cara atividade jurisdicional, na conformidade, aliás, da Lei Complementar No. 40, de 14 de dezembro de 1981 (Lei Orgânica do Ministério Público) que trata da ação civil pública como função institucional do Ministério Público. (...) Essas entidades são, ao lado do Poder Público, que obviamente tem legitimidade para defender interesses coletivos, as associações que incluam estre suas finalidades, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou a qualquer outro interesse difuso" (BRASIL. Câmara dos Deputados, dossiê do Projeto de Lei 4.984/1985. Disponível aqui.
Nos últimos textos desta coluna, focamos nas questões contratuais envolvidas na negociação para o financiamento de litígios e na compra de direitos creditórios decorrentes desses processos. Hoje, vou discutir um caso que me chamou muita atenção, pois envolve um legal claim adquirido por um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, resultando na responsabilização dos prestadores de serviço dos fundos que compraram esse crédito. O caso é o da Gleba dos Apertados, que abordei em livro recém-lançado, em coautoria com Eli Loria, no qual exploramos os processos sancionadores julgados pela CVM1. A discussão sobre a Gleba dos Apertados começou em 1896, quando o estado do Paraná ingressou com a Ação Ordinária de Reivindicação de Terras nº 696/49, para discutir a propriedade de terras no município de Paranavaí/PR ("Ação Reivindicatória"). Ao final do processo, o estado do Paraná sagrou-se vitorioso, com o reconhecimento de que as terras em Paranavaí pertenciam ao estado, e não aos moradores locais. Apesar de o Juízo da Ação Reivindicatória ter dado ganho de causa para o estado do Paraná, somente ocorreu o início do processo de execução 50 anos após o trânsito em julgado daquela sentença. A demora do estado do Paraná para adotar as medidas cabíveis levou o Juízo responsável pela execução da sentença a reconhecer, em 1951, a prescrição do direito do estado do Paraná de desapropriar os possuidores dos seus terrenos2. A questão foi duramente debatida no judiciário, tendo somente transitado em julgado em 1999, com a declaração, pelo STJ, de que o direito do estado do Paraná de executar a sentença da Ação Reivindicatória estaria prescrito3. Ocorre que o estado do Paraná atuou como se seu direito não tivesse prescrito, tendo, nas décadas de 1940 e 1950, desapropriado diversos moradores de Paranavaí usando força policial. Essa atuação levou os desapropriados a ajuizarem uma nova ação judicial, a Ação de Atentado nº 1095/57, que teve desfecho favorável para eles, reconhecendo as desapropriações como um ato ilícito do estado do Paraná4. Embora tenham sido expulsos de suas casas, os moradores da Gleba dos Apertados não ajuizaram de pronto qualquer medida cabível, tendo, ao longo dos anos, cedido por diversas vezes seus direitos creditórios oriundos daquelas ações judiciais. Os adquirentes desses direitos creditórios, em muitos casos, ajuizaram ações judiciais pleiteando as indenizações ou pedindo para serem habilitados nas ações judiciais originalmente propostas, medidas que restaram infrutíferas. As ações propostas pelos adquirentes dos direitos creditórios foram julgadas de modo improcedente, pois o Judiciário do Paraná entendeu que o direito à indenização também estava prescrito. Apesar disso, a discussão sobre a prescrição do direito à indenização relativamente à gleba dos apertados somente foi endereçada no STJ em 2015. Naquela oportunidade, foi destacado que o direito à indenização dos desapropriados teria prazo prescricional de 20 anos, contados da efetiva desapropriação do possuidor (o que, naquele caso, teria ocorrido em 1940 e não do trânsito em julgado da Ação Reivindicatória, que teria ocorrido em 1999)5. Ocorre que alguns fundos de investimento adquiriram os direitos creditórios decorrentes das disputas judiciais da Gleba dos Apertados, o que levou a CVM a propor acusações, com objetivo de apurar eventuais irregularidades na atuação de gestores e administradores fiduciários. Segundo sustentado pela acusação, os prestadores de serviços essenciais não teriam sido diligentes ao permitirem que direitos creditórios sem validade jurídica e sem substância econômica fossem integralizados nas carteiras dos fundos de investimento, em desacordo com o art. 1º, §1º, da ICVM 444. Nos casos julgados6, o Colegiado da CVM avaliou que seria necessário que os prestadores de serviço contratados pelos fundos adotassem as devidas medidas de análise e investigação das ações judiciais, de forma a compreender o estado daqueles direitos creditórios, quando da sua aquisição. Nos casos em questão, embora a integralização dos direitos creditórios nos fundos tivesse ocorrido com base em pareceres técnicos, contratados para avaliar a pertinência das aquisições, o Colegiado concluiu que tais documentos seriam insuficientes, pois não teriam efetivamente abordado todos os fatos e desdobramentos processuais, relevantes para a tomada de decisão. Um ponto bastante destacado foi justamente a decisão proferida pelo STJ em 2015, que colocou fim a qualquer alegação de viabilidade jurídica dos pleitos indenizatórios propostos no caso Gleba dos Apertados. Inclusive, nenhum dos pareceres acima mencionados, contratados pelos administradores dos fundos, tratou do recurso julgado pelo STJ em 2015, criando a incorreta percepção de que ainda existiria margem para propositura de novas ações, envolvendo a suposta indenização devida e a (não) ocorrência da prescrição. Assim, na visão da CVM, como os direitos creditórios estavam prescritos, o Colegiado compreendeu que seria procedente a acusação formulada, condenando os gestores e administradores dos fundos por inobservância do dever de diligência a que eles se submetem, pois teriam adquirido direitos creditórios que não possuiriam lastro. Por isso sempre digo ser necessário ter muito cuidado na aquisição de legal claims, já que os vendedores geralmente são muito apaixonados por suas causas e apresentam tudo de forma favorável para o detentor do crédito. ___________ 1 Para uma análise completa do precedente, Cf.: LORIA, Eli; KALANSKY, Daniel. Processo Sancionador e Mercado de Capitais IX: Estudo de Casos e Tendências; Julgamentos da CVM. São Paulo: Quartier Latin, 2024, pp. 333-345 e 370-378. 2 TJ/PR. Ação Ordinária de Reivindicação de Terras nº 696/49 - Ação ajuizada pelo estado do Paraná em 1896, cujo objeto consistia na desapropriação de uma área conhecida como "Gleba dos Apertados" em face dos proprietários, à época. Em 1899, após os recursos cabíveis, o pedido foi julgado procedente pelo STF, reconhecendo o domínio do Estado do Paraná sob referidas terras. Contudo, apenas em 1949 o estado do Paraná requereu a execução da sentença. Foram opostos embargos à execução, tendo o Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba reconhecido, em primeiro grau, a prescrição da pretensão executiva, em 1951. 3 STJ. Recurso Especial nº 37.056: O estado do Paraná ingressou com Recurso Extraordinário contra a decisão do Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba, que foi convertido no Recurso Especial nº 37.056. Em 1998, o Recurso Especial foi julgado pelo STJ, que decidiu pelo não conhecimento do recurso. O acordão do STJ, que manteve o reconhecimento da prescrição da pretensão executiva em desfavor do Estado Paraná transitou em julgado 09/06/1999. 4 TJ/PR. Ação de Atentado nº 1059/57: Ação ajuizada pelos sucessores e herdeiros das terras Gleba dos Apertados, contra o estado do Paraná, a fim de obter a devolução dessas terras. Após a interposição dos recursos cabíveis, foi reconhecido o direito de ocupação das terras pelos requerentes. 5 STJ. AgRg no Recurso Especial nº 1.484.529 - PR - "No que interessa ao caso sub judice, verifica-se que, efetivamente, prescreveu o direito da parte em ingressar com ação de indenização por desapropriação indireta, estando a decisão recorrida em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que o prazo prescricional para a propositura da ação por desapropriação indireta é de 20 (vinte) anos (Súmula 119/STJ), tendo como termo inicial a data da efetiva ocupação do imóvel, que, segundo consta dos autos, teria ocorrido nos anos de 1940. Assim, proposta a presente ação em 2011, é inelutável a ocorrência da prescrição". 6 CVM. Processo Administrativo Sancionador CVM 19957.004381/2021-68, Rel. João Pedro Nascimento, j. em 11.04.2023, e Processo Administrativo Sancionador CVM Nº 19957.004318/2021-21, Rel. João Pedro Nascimento, j. em 06.12.2023. As decisões proferidas pelo Colegiado da CVM foram confirmadas pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, na sessão de 10.09.2024.
Na coluna de hoje, comentarei um pouco sobre a estruturação de modelos que os fundos de investimento podem negociar em uma operação de financiamento de litígios, trazendo aspectos sobre o alinhamento de interesses entre as partes envolvidas. Em uma determinada operação que vivenciei, um cliente tinha uma demanda de US$ 30 milhões contra uma empresa no exterior, porém os custos necessários para o litígio eram bem relevantes, tendo em vista envolver duas jurisdições distintas. Uma das primeiras propostas recebidas de um fundo de investimento interessado em financiar o litígio partia da seguinte estrutura: o fundo destinava um orçamento de até US$ 3 milhões para o litígio e, em caso de sucesso, receberia o maior entre o múltiplo do valor investido (de 1 a 5 vezes, conforme a duração do litígio), ou o percentual do benefício econômico (20 a 40%, conforme a duração do litígio). Além disso, a proposta estabelecia que o fundo teria prioridade em relação ao cliente para receber o valor investido. Na época, uma das grandes objeções do cliente era que, nessa estrutura proposta, havia um potencial desequilíbrio em relação ao processo: caso o litígio levasse pouco tempo e fosse necessário empregar poucos recursos, o fundo teria um retorno grande, porque calculado conforme o benefício econômico; e se, de outro lado, o litígio levasse muito tempo para ser solucionado, e demandasse quantidade expressiva de recursos, o fundo garantiria sua remuneração prioritária (calculada, no mínimo, sobre um múltiplo do valor investido), sobrando poucos recursos para o próprio cliente. Ou seja, se o processo demorasse 4 anos e meio para ser resolvido, o fundo teria 5 vezes o valor investido ou 40% do benefício econômico, o que fosse maior. Imaginando-se no caso concreto, se o cliente fosse bem-sucedido, ganhando a demanda, porém não em seu valor integral (supondo-se, no caso, um sucesso de US$ 20 milhões, e não US$ 30 milhões) após 4 anos e meio (duração em que o múltiplo já seria 5 vezes o valor investido), e tivesse gastado US$ 3 milhões ao longo do litígio, o cliente ficaria com US$ 5 milhões, enquanto o fundo receberia US$ 15 milhões. Se fosse a modelagem apenas pelo percentual do benefício econômico (ou seja, 40%), o cliente ficaria com US$ 12 milhões e o fundo, com US$ 8 milhões. Para elucidar um pouco sobre o alinhamento de interesses e sistemas que podem existir em uma operação de financiamento de litígio, é interessante recorrer a um artigo publicado na Vanderbilt University Law School ("Agency Costs in Third-Party Litigation Finance Reconsidered")1, em que o autor parte de três exemplos de estruturas clássicas, conforme abaixo:   Duração do Litígio   0-12 meses 12-24 meses 24+ meses Retorno do Financiador (Exemplo 1) 15% do benefício econômico 17% do benefício econômico 20% do benefício econômico Retorno do Financiador (Exemplo 2) 2x valor investido 3x valor investido 4x valor investido Retorno do Financiador (Exemplo 3) O maior entre 2x o valor investido e 15% do benefício econômico O maior entre 2,75x o valor investido e 17% do benefício econômico O maior entre 3,35x o valor investido e 20% do benefício econômico O Exemplo 1 é o mais simples: o fundo simplesmente tem um percentual do benefício econômico, se o caso for bem-sucedido, podendo variar numa taxa de 15 a 20%, a depender da duração do litígio. Um alinhamento de interesses é claro: quanto mais o cliente recebe, mais o financiador também recebe. O financiador, em razão do custo do dinheiro no tempo, geralmente busca negociar um percentual crescente, conforme a duração do litígio se estenda. A desvantagem desse modelo para o litigante é que, neste sistema, é indiferente quanto do orçamento do litígio foi gasto. De um lado, o litigante não se preocupará em demandar recursos disponibilizados pelo fundo e, de outro lado, o fundo terá maior benefício quanto menor o valor investido. Visando se proteger contra o eventual uso excessivo do orçamento aprovado para o litígio, o financiador pode se utilizar do modelo previsto no exemplo 2, em que o litigante deverá pagar de volta um múltiplo do valor investido no litígio, se o caso for bem-sucedido. Os múltiplos podem variar de 2 a 4 vezes o valor investido, crescendo conforme a duração do litígio, tendo em vista o valor do dinheiro no tempo. A desvantagem deste modelo é de que o litigante possa ter um incentivo de querer gastar o menos possível, para devolver o menor valor possível para o financiador, podendo afetar a própria estratégia e condução do processo. Para contornar a desvantagem dos dois exemplos anteriores, existe um terceiro modelo que é aquele explicitado no exemplo 3 acima. Neste modelo, o financiador se protegerá dos potenciais desalinhamentos do primeiro e do segundo modelos, uma vez que receberá o maior valor entre o percentual do benefício econômico e o múltiplo do valor investido. Enfim, cada operação é uma situação específica, e a ideia deste artigo foi de apenas dar algumas pinceladas sobre as estruturas possíveis que podem existir na negociação de um financiamento de litígio, apresentando três estruturas clássicas, buscando mostrar os riscos inerentes a cada uma delas. __________ 1  Disponível aqui.
terça-feira, 3 de setembro de 2024

Earn-Out na compra de ativos judiciais

A negociação para a cessão de um ativo judicial não é uma tarefa fácil. De um lado, o vendedor quer receber o menor deságio (maior preço) possível e, de outro lado, o comprador precisa encontrar soluções para precificar determinado ativo judicial que permitam um retorno atrativo ao investimento realizado e certas proteções para eventos e riscos que não estejam sob seu controle, como por exemplo, o tempo de duração do processo, a determinação de valores que ainda sejam controversos na fase de liquidação de sentença, dentre outras variáveis. Uma das formas de precificação e negociação para conseguir alcançar um resultado que atenda as duas partes é realizar a cessão do direito creditório decorrente de uma disputa judicial ou arbitral estabelecendo um preço com um mecanismo de earn-out. Já tive oportunidade de participar de operações de cessão de direitos creditórios envolvendo ativos judiciais em que, para conseguir destravar a operação, a única forma encontrada para dar o conforto para o vendedor foi realizar uma cessão em que o preço era composto por uma parcela inicial e fixa, paga quando da celebração do contrato de cessão, e uma parcela variável e condicionada, vinculada ao tempo e ao valor dos recebimentos pelo comprador. Ainda, foi pactuado um retorno preferencial que estabelecia que, enquanto os valores recebidos pelo comprador fossem inferiores ao valor da parcela inicial paga ao vendedor, corrigido por uma determinada taxa, nada seria devido ao vendedor, a título de pagamento da parcela adicional; porém, tão logo o valor dos recebimentos excedesse o retorno preferencial, o comprador pagaria à título de parcela adicional, um determinado percentual do valor excedente ao vendedor. Dessa forma, o vendedor teria segurança de que, caso o processo fosse resolvido dentro do tempo esperado, bem como os valores controversos fossem devidamente pagos ao comprador, ele faria jus, quando do recebimento, a um valor importante, a título de preço. É isso que chamamos, no jargão da compra de ativos judiciais, fechar uma operação de true sale com earn-out. Para trazer mais concretude para este tipo de negociação de compra de ativo judicial, é interessante comentar um caso de uma empresa de petróleo e gás chamada Rockhopper Exploration plc ("Rockhopper")1. Em 23 de março de 2017, a Rockhopper iniciou um processo de arbitragem internacional contra a República da Itália em relação ao projeto Ombrina Mare. Nessa arbitragem, a empresa buscava indenização, tendo em vista que, em fevereiro de 2016, o Ministério do Desenvolvimento Econômico da Itália não havia realizado a concessão de produção abrangendo o campo Ombrina Mare. Para começar a arbitragem, a empresa obteve um financiamento de um fundo para financiar a disputa. Em 24 de agosto de 2022, o tribunal arbitral decidiu, por unanimidade, que a República da Itália violou as suas obrigações, conferindo à Rockhopper uma indenização de 190 milhões de euros, acrescidos de juros à taxa EURIBOR + 4%, compostos anualmente a partir de 29 de janeiro de 2016, até o momento do pagamento. Entretanto, em 20 de outubro de 2022, a República da Itália apresentou um pedido ao Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos ("ICSID") visando a anulação da sentença, nos termos do artigo 52.º da Convenção ICSID. A República da Itália também solicitou a suspensão provisória da execução da sentença, nos termos do artigo 52(5) da Convenção ICSID. A suspensão provisória impediu a Rockhopper de tomar medidas legais para fazer cumprir a sentença em qualquer jurisdição. A Rockhopper vislumbrou que poderia existir a possibilidade de monetizar este direito creditório decorrente da disputa arbitral e, em 20 de dezembro de 2023, celebrou um contrato de cessão de direito creditório com um fundo com mais de $4 bilhões sob gestão especializado em legal claims ("Fundo"). Nos termos do contrato celebrado, o Fundo pactuou pagamentos em dinheiro, à Rockhopper, em até três parcelas: Parcela 1 - 45 milhões de euros, sendo aproximadamente 19 milhões de euros para a Rockhopper e aproximadamente 26 milhões de euros para o financiador original da arbitragem2; Parcela 2 - pagamento contingente adicional de 65 milhões de euros, devidos após um resultado favorável para a companhia em relação ao pedido de anulação da sentença arbitral. Caso a sentença fosse parcialmente anulada, reduzindo-se o montante do valor da indenização, a Parcela 2 seria reduzida, de modo que os valores da Parcela 1 e da Parcela 2 fossem ajustados para baixo, proporcionalmente. Por exemplo, se o montante da sentença fosse reduzido em 20%, os montantes das Parcela 1 e 2 seriam reduzidos igualmente em 20%3; e Parcela 3 - Pagamento potencial de 20% na recuperação de montantes superiores a 200% do investimento total do Fundo, incluindo custos. O contrato de cessão celebrado com o Fundo trouxe diversos benefícios para a companhia, como, por exemplo: Fortalecimento do balanço patrimonial da Rockhopper, sem diluição para os acionistas; Redução dos riscos da disputa arbitral, mantendo vantagens potencialmente significativas; Remoção dos custos futuros associados à sentença arbitral, tenho em vista que o Fundo cobrirá todos os custos relacionados à arbitragem; monetização do direito creditório ao invés de aguardar o resultado da anulação, o que pode levar alguns anos; e concentração da companhia no seu core business ao invés de drenar energias em uma disputa, permitindo a utilização dos recursos da monetização tanto para o capital de giro, como para as oportunidades de investimentos a serem desenvolvidas pela companhia. Este é um típico caso em que a operação de cessão de crédito de um ativo judicial somente se tornou possível com a implementação do earn-out, de forma que uma parcela do preço ficou atrelada ao resultado favorável do processo, observada a necessidade de um retorno mínimo do investimento realizado pelo Fundo (o que, neste caso, foi estabelecido como 200% do valor investido, de forma que após o pagamento do retorno preferencial, 20% seriam destinados ao vendedor do direito creditório). Não se preocupem que voltarei a falar sobre este caso quando for definitivamente resolvido. Assim que tivermos uma decisão final, poderemos compartilhar com os leitores se o vendedor do direito creditório fará ou não jus aos 20% remanescentes do que exceder o retorno de 200% do investimento feito pelo Fundo. Por enquanto, tanto a Rockhopper, como o primeiro fundo que financiou a arbitragem, já conseguiram monetizar parte do direito creditório. Agora precisamos saber se realmente o Fundo que comprou o direito creditório terá lucro ou não. Acompanhem! __________ 1 Disponível aqui. 2 Como mencionado anteriormente, a Rockhopper celebrara um acordo de financiamento de litígio, em 2017, por meio do qual todos os custos relacionados à arbitragem, desde o início, até a sentença, seriam pagos em seu nome por um financiador especializado em arbitragem. Esse acordo dava ao financiador original o direito a uma proporção de quaisquer benefícios econômicos da sentença ou de qualquer monetização que a companhia viesse a efetuar do referido direito creditório. A Rockhopper celebrou um acordo com o financiador da arbitragem original para pagar 26 milhões de euros dos recursos da Parcela 1 para saldar todas as suas responsabilidades sob o acordo. Além disso, a Rockhopper deveria pagar honorários de sucesso aos advogados, no valor aproximado de 4 milhões de euros, quando do trânsito em julgado da decisão sobre a arbitragem. Depois de efetuar esses pagamentos, a Rockhopper reteria aproximadamente 15 milhões de euros do pagamento da Parcela 1 e 100% de todos os pagamentos das Parcelas 2 e 3. 3 Em qualquer caso, os montantes das Parcelas 1 e 2 nunca seriam inferiores a 45 milhões de euros.
terça-feira, 20 de agosto de 2024

Um pouco do dia a dia de special situations

Estou muito feliz em iniciar, a convite do Migalhas, esta coluna sobre Special Situations. Venho me dedicando há alguns anos a esta área e resolvi aceitar o desafio de compartilhar um pouco do meu dia a dia nesta área tão intrigante, complexa, arrojada e multidisciplinar. Na coluna de hoje vou apenas dar um spoiler de alguns dos temas que pretendo tratar, baseado no que tenho visto e vivido nos últimos anos, para depois periodicamente destrinchar cada um dos temas. Aproveitarei também para, sempre que possível, indicar materiais interessantes de leitura para aqueles que queiram se aprofundar mais no assunto. Inicialmente, e para que estejamos todos na mesma página, é importante falar sobre o que é Special Situation. Trata-se, basicamente, da investimentos em ativos alternativos e de alto retorno financeiro, com elevada complexidade jurídica. A estratégia de Special Situations vem ganhando bastante destaque, principalmente quando falamos em investimentos em ativos judiciais, que possuem características de retornos descorrelacionados com as demais classes de ativos por dependerem justamente de fatores muito particulares para sua realização, como, por exemplo, uma decisão judicial. São inúmeras as formas para realização desse tipo de investimento, de forma que a criatividade é característica fundamental para aqueles que pretendem atuar nesse setor. No Direito de Família, por exemplo, as oportunidades têm sido cada vez mais crescentes para essa classe de investimento. Infelizmente, são muito comuns as brigas nas famílias. Não raro, tenho sido surpreendido com situações em que herdeiros foram alijados da herança, ou casais se divorciaram, mas a divisão não ocorreu dentro dos parâmetros legais. Já tivemos também que examinar casos de reconhecimento de paternidade em que a tábua de salvação, para proporcionar paridade de armas, foi recorrer a fundos de investimento que financiam litígios ou que antecipam créditos de herança para combater grandes disputas familiares. Certamente teremos muitos assuntos para tratar nessa interface que ocorre nas disputas familiares e as oportunidades que se apresentam aos fundos de investimento. Outro assunto que temos vivenciado com os fundos de investimento são situações de recuperação internacional de ativos. Imaginem situações em que um crédito foi inadimplido, porém, sabe-se que o devedor vive muito bem em Miami. Ou, voltando ao Direito de Família, casos em que uma pessoa que se separou nem sabia que o seu cônjuge tinha contas no exterior e apartamentos fora do Brasil que não foram objeto de partilha. Ainda, pensem em situações de empresas que faliram, mas, antes da falência, os sócios desviaram bens para o exterior. Como recuperar todos esses bens em casos envolvendo diversas jurisdições sem poder contar com fundos que financiem tais tipos de litígios? Os litígios coletivos também têm ganhado holofotes para os fundos de investimento. Na esfera do Direito Ambiental, são situações em que danos ambientais tenham ocorrido e provocado prejuízos em determinada região. No Mercado de Capitais, existem casos em que minoritários de companhias abertas tenham sofrido prejuízos. Há vários assuntos que pretendo tratar neste tema, principalmente envolvendo a questão da jurisdição fora do Brasil para este tipo de litígio, o que tem sido objeto de muita controvérsia. Para aquecer os motores e para aqueles que gostam do assunto, em relação aos litígios coletivos já começo com uma recomendação de filme nesta coluna: Dark Waters - O Preço da Verdade. No filme, Robert Bilott (Mark Ruffalo) é um advogado corporativo de defesa, tendo ganhado prestígio trabalhando em casos de grandes empresas de químicos. Quando um fazendeiro chama sua atenção para mortes de gado que podem estar ligadas ao lixo tóxico de uma grande empresa, ele embarca em uma luta pela verdade, em um processo judicial que dura anos. Como combater uma luta destas sem contar com um fundo de investimento que esteja disposto a financiar um litígio complexo como este? Estes são apenas alguns exemplos de temas que pretendo trazer. Há muitos outros ainda para tratar, como discussões envolvendo cessão de crédito trabalhista, disputas privadas, ativos estressados, DIP Financing, oportunidades existentes em massas falidas, operações estruturadas, operações de M&A em situações de distress, aquisição de créditos públicos, precatórios e muito mais. Nesta coluna pretendo trazer diferentes visões, seja sob o prisma do advogado, seja do fundo de investimento, das partes envolvidas e também falar do protagonismo do diretor jurídico, que pode gerar receitas em sua respectiva empresa, junto aos fundos de investimento dedicados a compra de ativos judiciais ou de financiamento de litígios. Tratando de departamentos jurídicos de empresas, recentemente fui convidado para dar uma palestra para uma grande empresa sobre como os fundos de financiamento de litígios poderiam ser úteis para aquela empresa. Para dar a palestra, recorri a uma excelente publicação feita por um fundo de litígios internacional chamada "A Good Offense: The Therium Guide to Creating an Affirmative Recovery Program". A publicação era destinada a educar as empresas e seus departamentos jurídicos sobre a importância de monetizar seus ativos judiciais. De acordo com a publicação, os departamentos jurídicos das corporações mundiais foram criados por necessidade. O departamento jurídico comumente era foi visto como um centro de custos, defendendo processos potencialmente onerosos contra a empresa da forma mais eficiente possível e garantindo que as transações e outras questões contratuais fossem estruturadas adequadamente. Os departamentos jurídicos, no entanto, não costumavam focar em certos litígios, porque os riscos financeiros e outros necessários para rentabilizar o ativo eram considerados demasiado elevados, principalmente em situações com orçamentos mais apertados e com uma maior pressão sobre todos os departamentos. Conforme a publicação, os departamentos jurídicos corporativos têm potencial para se tornarem geradores de receita se conseguirem monetizar com sucesso potenciais litígios como demandante, sugerindo que advogados internos busquem identificar possíveis reivindicações de alto valor e a mitigar uma ampla gama de riscos internos e externos, à medida que formalizam um programa para iniciar litígios do lado do demandante, com recursos provenientes de fundos de investimento para financiar seus litígios. Enfim, são muitos temas que serão tratados nesta coluna envolvendo Special Situations, com a finalidade de compartilhar informação e conhecimento em algo ainda tão novo no Brasil, mas que no exterior tem sido altamente disseminado. Espero que gostem da coluna, pretendo construí-la com textos curtos, porém trazendo o que tenho visto de mais interessante no Brasil e exterior.