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A gênese da liberdade de expressão acadêmica (STF HC 40.910/PE)

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Atualizado às 08:26

No diz 22 de março de 1954, Paul Marlor Sweezy, então professor da University of New Hampshire, ministrou aula no curso de Humanidades para uma turma de aproximadamente 100 alunos. Na oportunidade, sua exposição abrangia temas ligados ao marxismo e à inevitabilidade do socialismo. Proveniente de uma família tradicional - e tendo ambos os pais com formação superior -, Sweezy estudou, quando criança e adolescente, em instituições de elite no nordeste dos EUA. Formou-se com honras em Harvard, em 1932. Estudou, também, na London School of Economics, antes de retornar a Harvard, em 1937, para seu Doutorado.

Já no início do ano de 1954, antes mesmo da aula proferida em 22 de março, Sweezy havia sido intimado, por ordem do procurador-geral do Estado (State Attorney General) de New Hampshire, para esclarecer questões relacionadas a seu suposto envolvimento e conexão com ideias e grupos socialistas e comunistas. Após a referida aula em março, Sweezy foi novamente chamado a se pronunciar sobre uma eventual defesa, em classe, da inevitabilidade do programa socialista a partir do materialismo dialético, ocasião em que declinou responder, entre outras, perguntas como as seguintes: a) qual foi o assunto de sua aula?; b) você não disse à classe em 22 de março que o socialismo era inevitável no país?; c) você defendia o marxismo naquela ocasião?; d) você expressou opinião ou fez declaração de que o socialismo era inevitável na América?; e) você, nessa aula ou em qualquer outra anterior, defendeu a teoria do materialismo dialético?1

A investigação a que se submetia Sweezy decorria de legislação estadual aprovada em 1951. Em específico, a lei objetivava regular e definir condutas criminais tidas como subversivas à ordem e ao Estado. Nesse contexto, foram declaradas ilegais e dissolvidas diversas organizações; por outro lado, pessoas identificadas como subversivas foram tornadas inelegíveis para empregos públicos (o que abrangia professores e funcionários de instituições educacionais públicas, tal qual a University of New Hampshire). Um programa de fidelidade foi instituído no Estado de New Hampshire a fim de eliminar os subversivos entre os funcionários estatais: todos eram obrigados a declarar, sob juramento e nos termos da lei, que não se enquadravam como tal.

Em 1953, o legislativo estadual havia dado poderes ao procurador-geral para conduzir uma ampla investigação acerca de eventuais transgressões à lei aprovada em 1951. A ideia, na ocasião, era averiguar a existência de pessoas subversivas nos quadros do Estado. No contexto de tal investigação é que o então professor Paul Marlor Sweezy fora intimado para depoimento.

Nos depoimentos, interessa notar que Sweezy não invocou seu direito contra autoincriminação. Seu silêncio - e recusa de reposta às perguntas - tinha como fundamento a alegação de que os questionamentos não tinham qualquer relação com a investigação e, mais do que isso, violavam seus direitos protegidos pela Primeira Emenda (liberdade de expressão no ambiente acadêmico). A despeito de tais fundamentos, seu silêncio na Corte local foi sancionado enquanto desobediência (contempt of court), o que foi mantido pela Suprema Corte Estadual. Condenado à prisão, Sweezy foi liberado mediante fiança e apelou à Suprema Corte dos Estados Unidos.

Em breve síntese, a Suprema Corte entendeu, por maioria, que houve uma invasão inconstitucional na liberdade acadêmica e de expressão política do professor, sendo que, em tais áreas, o Estado deveria ser extremamente reticente em avançar. Vislumbrou-se, ainda, a gravidade resultante da intrusão governamental indevida na vida intelectual de uma universidade. Nesse sentido, pois, a decisão da Corte afastando a condenação de Sweezy é tida, até os dias atuais, como um dos grandes marcos da proteção constitucional à liberdade acadêmica.

O caso do professor Paul Marlor Sweezy tinha um claro pano de fundo. De fato, a legislação estadual de New Hampshire traduzia uma realidade comum na primeira metade século XX nos Estados Unidos: a chamada ameaça vermelha (ou perigo vermelho). Em outras palavras, os períodos de pós-guerra foram marcados por um forte sentimento anticomunista, com variadas expressões de perseguição e criminalização a opiniões políticas comunistas ou socialistas.2 Isso, no mais das vezes, em virtude de um pavor de infiltração de tais doutrinas no governo americano e de uma consequente derrocada do sistema capitalista.

A situação americana, com sua ameaça vermelha, encontrava certa ressonância no Brasil, onde o ideal anticomunista também já se desenhava no início do século XX. Exemplo disso foi a exposição, por parte do governo de Getúlio Vargas em 1937, de um suposto plano comunista para tomada do poder (Plano Cohen), o que foi tido como um dos estopins para instauração do Estado Novo (1937-1946) e de sua política nitidamente centralizadora, autoritária e anticomunista. Adiante, a instabilidade política e o golpe de 1964 trouxeram consigo, também, uma forte perseguição às ideologias de esquerda tidas como comunistas ou socialistas. O temor, enfim, era análogo ao americano: a instalação, no Brasil, de um regime similar ao cubano e que se alinhasse aos soviéticos.

Foi diante desse cenário que, menos de três meses após o golpe, em 26 de junho de 1964, Sérgio Cidade de Rezende, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Católica de Pernambuco, compareceu à faculdade a fim de supervisionar a aplicação de prova aos 26 alunos de sua turma de Introdução à Economia. Na ocasião, o professor distribuiu aos alunos um manifesto criticando a situação política vigente, o que teria sido reputado como subversivo por trazer expressa exaltação ao comunismo. Em específico, o professor indicava que "aos estudantes cabe uma responsabilidade, uma parcela de decisão dos destinos da sociedade e para isto têm que optar entre 'gorilisar-se' ou permanecerem seres humanos. A êstes cabe a honra de defender a democracia e a liberdade" (sic).

Sérgio Cidade de Rezende era filho de Estêvão Taurino de Resende Neto. Militar de carreira, Taurino ingressou no Exército em 1918 e participou ativamente do golpe de 1964. Logo após o golpe, foi transferido para a reserva no posto de Marechal. Ainda em abril de 1964, no entanto, foi nomeado por Castelo Branco, recém-empossado como presidente, ao cargo de chefe da Comissão Geral de Investigações (CGI), organismo encarregado de coordenar os inquéritos policial-militares (IPM) então instaurados para apurar atividades subversivas.3

A despeito disso, duas semanas após a manifestação de Sérgio Cidade de Rezende em classe na Universidade Católica de Pernambuco, o professor foi preso preventivamente no bojo de processo em que se apurava suposta atividade subversiva tipificada nos artigos 11, a, §3º e art. 17 da Lei n. 1.802/1953, que então definia os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social.4 O imbróglio da prisão no Recife resultou no pleito de demissão do Marechal Taurino, tendo sido substituído pelo almirante Paulo Bosísio.5

A prisão do professor por supostos atos subversivos a partir de sua manifestação em sala de aula trazia à tona a questão da liberdade acadêmica. Mas, muito mais do que isso, o fato de que se tratava do filho de um Marechal que comandara a Comissão Geral de Investigações recentemente criada dava maior notoriedade ao caso. Em termos jurídicos, coube a um trio de aguerridos advogados a representação do professor e a contestação de sua prisão por intermédio de Habeas Corpus perante o Supremo Tribunal Federal: Justo de Morais, Joaquim Correia de Carvalho Jr. e Inezil Penna Marinho.

No STF, o HC 40.910/PE, relatado pelo Ministro Hahnemann Guimarães, despertou grande debate acerca da liberdade de expressão no ambiente acadêmico, sobretudo ao travar tal discussão sob a égide de um regime ditatorial recém-instaurado e que, de forma nítida, repreendia com violência determinados matizes de expressão. Em breve síntese - e em termos de resultado -, não havia no caso, para o STF, qualquer incitamento à prática de processos violentos para subversão da ordem política ou social, sendo imperiosa a concessão da ordem de habeas corpus em face da ilegal prisão havida.

O que salta aos olhos no julgamento, no entanto, é a extensa utilização do ambiente americano para a sustentação da ideia de liberdade de expressão no ambiente acadêmico, sobretudo nos votos dos Ministros Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.

O Ministro Evandro Lins e Silva invocara em seu voto a cátedra do então Justice William O. Douglas, da Suprema Corte dos Estados Unidos. Em específico, Lins e Silva trazia diversos trechos de um livro6 do Justice Douglas que abordava a temática e assim concluía: Minha tese é que não há liberdade de expressão, no sentido exato do termo, a menos que haja liberdade para opor-se aos postulados essenciais em que se assenta o regime existente. Ainda citando o juiz americano, Lins e Silva apontava que "a liberdade é um bem precioso que deve ser guardado por todos que a têm, pois onde não existe liberdade pessoal não há senão medo, vazio e desespero".

No entanto, é no voto do Ministro Victor Nunes Leal que a invocação de precedentes da Suprema Corte dos EUA encontra corpo. De fato, Nunes Leal disseca o julgamento de Sweezy v. New Hampshire (1957) em uma análise brilhante e minuciosa dos votos apresentados pelos Justices da Suprema Corte americana. Assim, após sintetizar e sistematizar os argumentos acerca da extensão da liberdade de cátedra e de sua configuração enquanto expressão protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA, Nunes Leal conclui que, "no Brasil, quase tudo está por se fazer. Nosso futuro depende do espírito de criação dos homens de pensamento, principalmente dos jovens, e não há criação, no mundo do espírito, sem liberdade de pensar, de pesquisar, de ensinar. Se há um lugar em que o pensamento deve ser livre, este lugar é a universidade, que é o laboratório do conhecimento. E eu não gostaria que os jovens brasileiros pudessem, algum dia, reproduzir, ao pé da letra, aquelas palavras melancólicas de Einstein, ou pudessem comparar a nossa universidade com as universidades dos países submetidos à ditadura".

Após tal exposição por parte do Ministro Victor Nunes Leal, o Ministro Pedro Chaves7 trouxe o que pode ser visto como um dos primeiros grandes embates acerca do uso de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal. É que, contestando a invocação realizada por Nunes Leal, o Ministro Pedro Chaves assim interveio: V. Exa. me perdoe, eu queria apenas fazer uma distinção, porque ouço sempre com grande pesar essas invocações que V. Exa. faz da cultura norte-americana, absolutamente diversa da nossa cultura, dos nossos meios e dos nossos hábitos.

Em réplica, Nunes Leal argumentava que "se invoco um exemplo de país mais adiantado, é para que nos sirva de modelo". Adentrando na discussão, o Ministro Gonçalves de Oliveira assim expôs: Modelo em algumas coisas, em outras não. Por exemplo, no caso do ódio de classes, no ódio aos negros, tanta falta de humanidade. Encerrando o ponto, Nunes Leal enfatizava que os temas e problemas trazidos por Gonçalves de Oliveira não estavam em discussão.

Adiante, coube ao Ministro Hermes Lima nova provocação sobre a utilização dos precedentes alienígenas e a suposta diferença cultural alegada por Pedro Chaves. Vejamos: Será que a diferença cultural permite que a gente fique triste, nos Estados Unidos, com a falta de liberdade e não permite que a gente sinta a mesma coisa no Brasil? Será que a diferença cultural autoriza a falta de liberdade no Brasil? Será que a diferença cultural autoriza a liberdade de cátedra? Em outras palavras, a questão trazida pelo Ministro Hermes Lima bem traduz, ainda hoje, a dúvida que paira sobre a viabilidade de utilização de precedentes estrangeiros e a importação de teses jurídicas alienígenas.

Em resumo, não há dúvidas que a rica discussão metodológica de direito comparado havida nos votos e debates no bojo do HC 40.910/PE é tema que, atualmente, necessitaria ser revigorado no STF, sobretudo a fim de definir qual é o valor normativo dos precedentes estrangeiros na própria Corte e no ordenamento jurídico brasileiro em geral. Mas isso, no entanto, é matéria para uma próxima coluna.

__________

1 Sweezy v. New Hampshire, 354 U.S. 234 (1957), at 243-244.

2 Em específico, é possível vislumbrar dois momentos de grande expressão da ameaça vermelha: o primeiro logo após a Primeira Guerra Mundial; o segundo, no período imediatamente posterior à Segunda Guerra (como no caso de Sweezy).

3 Vide aqui. Acesso em 10.6.2021.

4 Lei 1.802/1953 - Art. 11. Fazer publicamente propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social; Pena: reclusão de 1 a 3 anos.

§3º Pune-se igualmente, nos têrmos dêste artigo, a distribuição ostensiva ou clandestina, mas sempre inequìvocamente dolosa, de boletins ou panfletos, por meio dos quais se faça a propaganda condenada nas letras a, b e c do princípio dêste artigo.

Art. 17. Instigar, públicamente, desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública. Pena: - detenção de seis meses a 2 anos.

5 Vide nota 3 acima.

6 Eis o livro: DOUGLAS, William O. The Right of the People. Pyramid Books, 1962.

7 Interessante notar que o Ministro Pedro Chaves já havia votado no sentido de conceder a ordem de habeas corpus em termos estritamente jurídicos, ainda que trazendo críticas políticas aos supostos subversivos que, em sua opinião, "queriam fazer de nossa independência, da nossa liberdade de opinião, do nosso direito de sermos brasileiros e democratas, tábula rasa, para transformar-nos em colônia soviética, onde eles não seriam capazes de manifestar um pensamento sequer em favor das ideias liberais para eles, então haveria Sibéria, 'paredon' e outros constrangimentos".