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Retribuir ou arrecadar? A pena de multa e a lógica capitalista do castigo

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Atualizado em 4 de novembro de 2025 11:26

Decorrente da atuação categórica de instituições ligadas à aplicação da pena e de seus desdobramentos, destacando o IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a questão da pena de multa e sua aplicabilidade e execução no Brasil vêm ganhando destaque no debate penal nacional.

Ao longo da história, a pena de multa assumiu diferentes formas e funções, refletindo as transformações sociais, políticas e econômicas. Inicialmente vinculada à vingança privada e à reparação de danos, sua função foi paulatinamente se consolidando como instrumento do Estado, assumindo uma dimensão pública e disciplinar1.

Nas sociedades germânicas, o  wergild representava um pagamento à família da vítima2, funcionando simultaneamente como reparação e mecanismo de manutenção da ordem social. Essa lógica de equivalência entre dano e compensação variava conforme a classe social do ofendido e do agressor, estabelecendo uma relação preliminar entre punição e status econômico.

Na Idade Média, a multa passou a ser aplicada por autoridades locais com fins arrecadatórios e de manutenção do poder político, reforçando hierarquias sociais e consolidando o caráter público da punição. Nesse período, sua eficácia era predominantemente econômica e de controle social, não assumindo ainda o caráter retributivo típico da contemporaneidade3.

Com a formação dos Estados modernos, entre os séculos XVIII e XIX, a pena de multa foi formalmente incorporada às legislações como alternativa à prisão, sobretudo em crimes patrimoniais. Nesse contexto, a aplicação da pena transcendeu a proteção de bens jurídicos, passando a atuar como mecanismo de arrecadação e disciplina social, alinhado à lógica econômica do Estado4.

No Brasil, o CP de 1890 e a Constituição de 1891 incorporaram a pena de multa em um modelo jurídico que buscava conciliar funções retributivas, preventivas e a capacidade econômica do condenado5. Entretanto,  sua aplicação expandiu-se para além dos delitos patrimoniais, justificada na ideia de retribuição ao Estado e à sociedade pela violação da norma penal, sendo a verba monetária direcionada ao Fundo Penitenciário Nacional.

Obras clássicas da doutrina penal atribuem à pena uma função simbólica de punir, refletindo proporcionalidade entre o mal causado e a sanção aplicada. Roxin destaca que a pena deve corresponder ao dano social e moral do ato, tornando-se expressão de justiça6. Zaffaroni e Mir Puig complementam essa visão, ressaltando que a pena não é apenas uma medida de coerção, mas um reconhecimento social do erro cometido7.

Quando aplicada a crimes patrimoniais, como furto ou estelionato, a pena de multa pode manter essa relação de equivalência, permitindo que o infrator ressarça, mesmo que simbolicamente, o prejuízo econômico da vítima. Por outro lado, em delitos sem conteúdo econômico direto, como por exemplo, tráfico de drogas, crimes ambientais ou porte ilegal de armas, essa equivalência tende a se dissolver.

Juarez Cirino do Santos observa que, na atualidade, a pena de multa muitas vezes assume uma função distinta da retribuição: a lógica econômica do "capitalismo penal" transforma o pagamento em um instrumento ao serviço do sistema, cujo valor pago não mede o mal causado, mas a capacidade econômica do condenado8.

Assim, a multa deixa de refletir o dano, tornando-se um mecanismo de expropriação simbólica e material, desvinculado da proporcionalidade retributiva. Nesse cenário, a punição monetária deixa de ser uma expressão de justiça e passa a integrar a lógica de arrecadação e controle social, independentemente do dano efetivamente causado.

Essa dissonância entre teoria e prática evidencia o desvirtuamento do papel da pena de multa, que deixa de cumprir seu papel de instrumento de justiça proporcional e passa a operar como ferramenta neutra de arrecadação e controle social.

A aplicação desigual da pena de multa evidencia sua seletividade estrutural. Estudos realizados em São Paulo e Minas Gerais demonstram que, enquanto milhares de multas são aplicadas anualmente, apenas uma pequena parcela é quitada9. Em São Paulo, cerca de 187,5 mil multas são aplicadas por ano, mas apenas 7,3 mil são quitadas. Em Minas Gerais, durante o primeiro semestre de 2022, o Ministério Público cobrou R$ 5,781 milhões em 1.038 casos protestados10.

Conforme relatório elaborado pelo IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa em 2022, através de mutirão que atendeu 241 pessoas na cidade de São Paulo, 80,7% das pessoas se declararam negras, 19,1% estavam em situação de rua e 82,1% não possuíam registro na carteira de trabalho11.

Paralelamente, dados do SISDEPEN12 colhidos em 2024, evidenciam ainda que a maior parte da população prisional (670.265 mil pessoas) é composta por negros (64,1%), de baixa renda e baixa escolaridade, sendo que 44,61% dos homens e 19,84% das mulheres trabalham sem remuneração; entre os remunerados, 47,3% recebem até um salário mínimo, e apenas 7,93% recebem até dois salários mínimos, não tendo em grande maioria possibilidade de arcar com a dívida pecuniária.

Enquanto isso, em crimes econômicos, a multa muitas vezes é absorvida pelo poder aquisitivo do infrator, mantendo a pena dentro da esfera simbólica e sem consequências reais. Ou seja, para uns, a multa é mera formalidade; para outros, é instrumento de exclusão e aprofundamento da marginalização social.

Essa desigualdade não decorre de uma condição acidental, mas reflete a estrutura histórica do sistema penal, que penaliza de forma mais severa os grupos vulneráveis economicamente, sustentando um modelo de punição seletiva e excludente13.

Para além da função retributiva, a pena de multa pode ser analisada sob a perspectiva da governamentalidade econômica. David Garland aponta que o neoliberalismo transformou a punição em uma ferramenta de gestão social, na qual o Estado monetiza o castigo. Nesse sentido, a pena de multa deixa de ser uma punição moral para se tornar uma estratégia financeira, na qual o sofrimento do condenado é convertido em cifra, e a arrecadação se torna prioridade14.

De modo semelhante, Loïc Wacquant, ao abordar a "simbiose entre gueto e prisão", evidencia como as penas funcionam como tecnologias de gestão da miséria,  reforçando o ciclo de exclusão. Nesse contexto, a multa deixa de ser uma sanção moral e passa a integrar a lógica arrecadatória do Estado em que a função retributiva é subordinada à capacidade de pagamento do infrator. Assim, o castigo deixa de simbolizar justiça e passa a servir como instrumento de controle social e de arrecadação fiscal, reforçando desigualdades preexistentes15.

No plano internacional, essa realidade também se evidencia. Nos Estados Unidos, a penalização monetária de delitos menores atua como mecanismo de exclusão econômica e racial, gerando efeitos similares ao encarceramento em massa16.

Sob a perspectiva brasileira, a monetização das penas reproduz desigualdades sociais, demonstrando que a multa, longe de racionalizar a punição, se incorpora a uma lógica de capitalismo penal que valoriza e precifica a desigualdade.

A pena de multa, apresentada como uma sanção racional e proporcional, na prática revela-se um instrumento de desigualdade e seletividade estrutural. Quando aplicada a crimes sem conteúdo econômico direto, ela perde sua função retributiva e adquire um caráter simbólico e expropriador. Assim, o perfil social daqueles que não conseguem pagar a multa evidencia a seletividade do sistema penal brasileiro, perpetuando processos de exclusão e marginalização.

Por fim, observa-se que o Estado não pune apenas o crime: ao estabelecer valores monetários como penalidade, ele, de fato, precifica a desigualdade social. A reflexão crítica sobre a pena de multa mostra que a promessa de uma justiça racional e proporcional muitas vezes se transforma em reforço das estruturas de poder e privilégio.

Dessa forma, torna-se necessário repensar a lógica punitiva, buscando alternativas que garantam maior proporcionalidade e justiça social, sem aprofundar ou perpetuar desigualdades estruturais.

_______

1 Zaffaroni, Eugenio. Manual de Direito Penal Brasileiro, 5ª ed., 2017.

2 Juarez Cirino do Santos, Criminologia: Contribuição para Crítica da Economia da Punição, Tirant lo Blanch, 2021.

3 Barbero, Alessandro. História das Multas na Idade Média, 1983.

4 Rusche, G., Kirchheimer, O. Punição e Economia, 2004.

5 Prado, Caio. História do Direito Penal Brasileiro, 1980.

6 Roxin, Claus. Direito Penal: Parte Geral, 2020.

7 Zaffaroni, Eugenio; Mir Puig, José. Manual de Direito Penal, 2019.

8 Juarez Cirino do Santos, Criminologia: Contribuição para Crítica da Economia da Punição, Tirant lo Blanch, 2021.

9 Conectas, Relatório sobre execução de penas pecuniárias, 2019.

10 De Giorgi, Alessandro. Criminalidade e Exclusão, 2006.

11 Disponível aqui.

12 Ferramenta de coleta de dados do sistema penitenciário brasileiro, ele concentra informações sobre os estabelecimentos penais e a população carcerária.

13 Wacquant, Loïc. Punir os Pobres, 2003.

14 Garland, David. Punishment and Modern Society, 2012.

15 Wacquant, Loïc. Op. cit., 2003.

16 Alexander, Michelle. The New Jim Crow, 2010.