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Reflexões sobre os 20 anos de práticas restaurativas no Brasil

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Atualizado em 11 de novembro de 2025 11:42

O ano de 2025 é um marco muito importante para a Justiça Restaurativa no Brasil, principalmente porque são comemorados os 20 anos da Carta de Araçatuba1, elaborada no 1º Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, assim como do início das práticas restaurativas nos fóruns brasileiros. E 2025 ainda foi declarado pelo CNJ o ano da Justiça Restaurativa nas Instituições, o que significa uma amplificação da Política Nacional desse tema em nosso sistema judiciário.

Este mês de novembro é também relevante por anualmente ser dedicada uma semana para celebração e divulgação da Justiça Restaurativa, o que, somado aos marcos já apontados, traz muitas reflexões sobre o que já foi feito durante estas duas décadas no país e o que ainda é preciso ser feito para que essas práticas, que têm potencial tão transformador, sejam mais conhecidas e aplicadas.

Para quem não está familiarizado com o assunto, a Justiça Restaurativa está definida na resolução 225/16 do CNJ como um conjunto de métodos e técnicas, realizados por facilitadores capacitados, que visa a conscientização sobre os fatores que motivaram o conflito e a violência, a satisfação das necessidades dos envolvidos, a responsabilização dos que contribuíram para o fato danoso e a reparação do dano, sempre com respeito aos seus princípios norteadores, como, por exemplo, corresponsabilidade, informalidade, voluntariedade, imparcialidade, participação, empoderamento, consensualidade, confidencialidade, celeridade e urbanidade (art. 2º da referida resolução).

Por meio de círculos restaurativos, mediação vítima ofensor, conferência de grupo familiar, dentre outras práticas restaurativas, a vítima, o ofensor e outras pessoas impactadas no conflito são convidadas pelos facilitadores a realizarem um mergulho no ocorrido, por meio de perguntas norteadoras, que podem proporcionar, além da escuta, da assunção de responsabilidade e da identificação das necessidades, a construção de um plano de ação. Se estas práticas forem realizadas, por exemplo, em processo que apura ato infracional, inquérito policial, ação penal ou execução penal, o plano de ação é levado aos autos e, se cumprido, poderá gerar, conforme a situação processual específica, o arquivamento, a extinção da punibilidade, a rejeição da denúncia, a extinção do processo por falta de interesse de agir, a remissão para o adolescente, a remição da pena ou até mesmo a concessão de indulto, novidade trazida no art. 9º, §2º, inciso VI, do decreto 12.338/24.

Em 2005, de forma pioneira, foram implantados três projetos-pilotos de Justiça Restaurativa no país, que ocorreram nas cidades de São Caetano do Sul/SP, Porto Alegre/RS e Brasília/DF, a partir de uma parceria entre os Poderes Judiciários das localidades e a então Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e o PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O de São Caetano do Sul/SP, denominado "Justiça, Educação e Comunidade: parcerias para a cidadania", foi desenvolvido pela Vara da Infância e Juventude em cooperação com o sistema público educacional local, e teve por foco inicial, de forma resumida, realizar círculos restaurativos em processos judiciais, fortalecer a rede de atendimento que atua sobre o jovem autor de ato infracional e evitar o encaminhamento de casos escolares para os trâmites judiciais2.

Em Porto Alegre/RS o projeto foi nomeado "Projeto Justiça para o Século XXI" e se deu no Juizado da Infância e Juventude na etapa de apuração do ato infracional praticado por adolescentes, utilizando círculos restaurativos na busca de pacificação de violências envolvendo adolescentes e crianças. Já em Brasília-DF o projeto ocorreu nos 1º e 2º Juizados Especiais Criminais do Núcleo Bandeirante, portanto, em infrações de menor potencial ofensivo relacionadas a adultos e a prática restaurativa escolhida foi a mediação vítima ofensor, excluindo casos de violência doméstica e de uso de entorpecentes.

Com o passar dos anos, outros projetos, conteúdos e pesquisas foram se desenvolvendo, até que em 2016 o CNJ editou a resolução 225/16, já mencionada, que definiu, além do conceito de Justiça Restaurativa, uma Política Nacional no âmbito do Poder Judiciário. Desde então, essa resolução passou por emendas, como a de 288/19, que definiu a política institucional do Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade. E a de 300/19, acrescentando artigos, que estipulou, dentre outras possibilidades, que os Tribunais do país, no prazo de 180 dias, apresentassem ao CNJ um plano de implementação, difusão e expansão da Justiça Restaurativa, bem como desenvolvimento de formações com padrão mínimo de qualidade e supervisão continuada.

O CNJ também produziu estudos teóricos sobre o tema, como o relatório analítico propositivo denominado "Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário", de 2018, e os Mapeamentos dos Programas de Justiça Restaurativa, de 2019 e, recentemente, o de 2025.

A partir de março de 2020, o programa "Fazendo Justiça", desenvolvido pelo CNJ e pelo PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, com o apoio do DEPEN, foi executado pelo CDHEP - Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo/SP nos Tribunais de Justiça do Acre, Alagoas, Amapá, Ceará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima e Rondônia, e no TRF da 3ª região - São Paulo e Mato Grosso do Sul, conforme foi descrito em 2021 no relatório "Projeto Rede Justiça Restaurativa: Possibilidades e práticas nos sistemas criminal e socioeducativo."3

Todos esses movimentos geraram resultados concretos, como se pode notar no II Mapeamento dos Programas de Justiça Restaurativa, publicado pelo CNJ em agosto de 2025. Diferente dos resultados divulgados em 2019, todos os trinta e três Tribunais Brasileiros (27 Estaduais e 6 Federais) informaram que possuem Órgão Central de Macrogestão e Coordenação para a Justiça Restaurativa, em conformidade com a resolução 225/16 do CNJ, bem como que desenvolveram atividades de formação e capacitação na área no último ano (2024). Além disso, também foi detalhado que a maior parte dos casos que são remetidos para a Justiça Restaurativa "são relativos à infância e juventude em conflito com a lei (75,8%). Outro grande grupo de casos são os referentes à execução penal criminal (63,6%), violência doméstica (60,6%) e Juizados Especiais Criminais (60,6%). Há os casos de família (54,5%) e da área de educação (54,5%), gestão de pessoas (48,5%), comissões de assédio (48,5%), infância e juventude cível (45,5%), processos administrativos disciplinares (27,3%), casos ambientais (18,2%) e pessoas em situação de rua (15,2%)"4, ou seja, está sendo aplicada em diversas áreas.

Poderíamos ainda destacar diversas ações e projetos relevantes desenvolvidos sobre o tema em muitos estados da Federação, seja na área infracional, no âmbito criminal, no sistema penitenciário, na comunidade, na polícia e na escola e até mesmo citar o movimento "Mulheres Criando Juntas", que se concretizou neste ano em evento realizado em março em Brasília/DF, mas o espaço aqui não seria suficiente. Isso sem contar as inúmeras cidades que já possuem lei municipal que trata da Justiça Restaurativa e a elegeram como Política Pública, justamente porque perceberam a importância e o potencial que ela possui para cuidar das relações, da convivência e do conflito, com a capacitação e articulação da rede de proteção e implementação de direitos, em respeito ao objetivo 16 de desenvolvimento sustentável da ONU (Agenda 2030), que visa "Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis".

Também se verifica o crescimento do tema quando a Justiça Restaurativa é incluída como meta no Plano Pena Justa nacional, traçado a partir do julgamento da ADPF 3475 pelo STF, que declarou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. Quase trezentas metas foram apontadas para reversão deste quadro e a Justiça Restaurativa está entre elas. No eixo 1, que trata do controle da entrada e das vagas do sistema prisional, a Justiça Restaurativa foi inserida como uma modalidade de resolução de conflito e está contida em quatro metas: implantar e qualificar os núcleos de Justiça Restaurativa, implantar projetos em parceria com os núcleos para derivação de casos da audiência de custódia e de acordos penais e implantar política nacional no âmbito do Poder Executivo.

Ao longo dos anos, assistimos ao aumento do número de Núcleos implementados nos estados, com destaque para o inaugurado, em 17 de outubro de 2024, no Complexo Criminal Ministro Mário Guimarães em São Paulo/SP, maior fórum criminal da América Latina. E o fato desse crescimento ocorrer muitas vezes em passos lentos não significa, necessariamente, algo ruim, já que a Justiça Restaurativa, por sua seriedade e relevância, precisa ser feita com muito respeito, cuidado, de forma estruturada e sem cumprimento de metas.

O caminho percorrido até aqui, em um dos sistemas de justiça que mais encarcera pessoas no mundo e com números altíssimos de processos, atingindo em 2024 o maior número de casos novos (39 milhões) e julgados (44 milhões) (Anuário da Justiça Brasil 20256), demonstra que novas possibilidades estão, de verdade, sendo consideradas na forma de lidar com conflitos, apesar dos desafios.

Essa problemática foi abordada na pesquisa do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais lançada no dia 16 de outubro de 2024 sobre a "Aplicação da Justiça Restaurativa em âmbito criminal: Um olhar sobre o estado de São Paulo"7, da qual fizemos parte como pesquisadoras, com entrevistas durante os anos de 2022 e 2023 com pessoas atuantes no sistema de justiça criminal (juízes de Direito, promotores e procuradores de Justiça, delegados de Polícia, defensores públicos,advogados, servidores públicos da Justiça e facilitadores de Justiça Restaurativa). Foram levantados alguns desafios para aplicação da Justiça Restaurativa no estado e apresentadas proposições para que fossem superados.

Um dos principais achados da pesquisa foi a insatisfação geral dos entrevistados com o sistema punitivo atual, o considerando opressivo, violento, obsoleto e até incompetente. Essa forma punitivista que o sistema de justiça lida como resposta ao crime gera uma grande dificuldade de mudança de mentalidade dos seus atores e atrizes para uma abordagem restaurativa. Nesse cenário, poderia haver o risco de a Justiça Restaurativa ser alterada pela ideologia jurídica tradicional, perdendo suas principais características de autonomia, autorresponsabilização, protagonismo, etc., por isso, inclusive, entendemos que a expansão gradativa e orgânica é a melhor opção.

Outro desafio apontado na pesquisa e que merece ser aqui noticiado é o grande desconhecimento do tema por parte tanto da população em geral quanto dos próprios operadores do Direito. Ainda que tenhamos visto o quanto já foi feito na área, muitas pessoas, inclusive que estão lendo esse artigo, não conhecem a Justiça Restaurativa ou só ouviram falar em linhas gerais, sem saber ao certo do que se trata, como pode ser utilizada em seu dia a dia ou até mesmo aplicada em um processo em curso. Para sanar essa questão, foram feitas sugestões de ações de sensibilização coletiva, criação de cursos, simpósios, introdução do tema nas faculdades e de matéria nos cursos de formação de carreira.

Ainda muito precisa ser feito? Sim, como a própria pesquisa acima mencionada demonstrou, assim como o relatório "Justiça Restaurativa e Sistema Criminal: construindo alternativas ao estado penal brasileiro", publicação recente do CDHEP. Ao trazer informações do projeto "Fazendo Justiça"8, com ações no TRF 3ª região e no Fórum Criminal de Barueri/SP, o referido relatório concluiu que a Justiça Restaurativa é um caminho efetivo e necessário para lidar com questões classificadas juridicamente como infrações penais, propondo que as instituições do sistema de justiça e outros atores e atrizes devem investir recursos necessários para a estruturação de núcleos, projetos e programas do tema, bem como é necessário o engajamento dos operadores do direito e instituições para enviar casos para a realização de abordagens restaurativas pelos núcleos.

Para debater as conquistas e dificuldades nessas duas décadas, no próximo dia 13 de novembro, o Departamento de Justiça Restaurativa do IBCCRIM promoverá, em parceria com a AASP - Associação dos Advogados de São Paulo, o evento "Vinte anos de Justiça Restaurativa no Brasil: balanço, desafios e projeções9".

De qualquer forma, é preciso reconhecer que muitos passos já foram dados e, apesar de a Justiça Restaurativa ainda necessitar ser mais conhecida e aplicada, muitas experiências existentes são sólidas, realizadas por profissionais extremamente dedicados, que precisam ser mais bem valorizados e remunerados, além de existirem inúmeros simpatizantes dispostos a fazerem com que o ineficaz encarceramento em massa e o pensamento punitivista fiquem para trás.

Que tal caminharmos juntos, cada qual fazendo a sua parte, do seu lugar, seja como defensor, juiz de direito, promotor de Justiça, policial, parte, facilitador e, realmente, agirmos para nos aproximarmos dos objetivos fundamentais do país, tão bem descritos no art. 3º da nossa Magna Carta? Afinal a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos, pode verdadeiramente impactar na diminuição da violência, no número de delitos praticados e de pessoas encarceradas.

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Referências

ANDRADE, Vera R. P. de - Pilotando a Justiça Restaurativa: o Papel do Poder Judiciário. Relatório Analítico-Propositivo. Realização: Fundação José Arthur Boiteux. Conselho Nacional De Justiça, 2018

CDHEP. Justiça Restaurativa e sistema criminal (livro eletrônico): construindo alternativas ao estado penal brasileiro. coordenação Mariana Pasqual Marques, Petronella M. Boonen. São Paulo: Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, 2025. Disponível aqui.

CNJ. PROJETO REDE JUSTIÇA RESTAURATIVA [RECURSO ELETRÔNICO]: POSSIBILIDADES E PRÁTICAS NOS SISTEMAS CRIMINAL E SOCIOEDUCATIVO / Conselho Nacional de Justiça ... [et al.]; coordenação de Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi ... [et al.]. Brasília : Conselho Nacional de Justiça, 2021. Disponível aqui.

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. Aplicação da Justiça Restaurativa em âmbito criminal: um olhar sobre o estado de São Paulo/Fabiana Zanatta Viana, Adriana Padua Borghi, Julia de Albuquerque Barreto, Giovanna Cardoso Gazola (Orgs.) - São Paulo: IBCCRIM, 2024. 42 p. Relatório de pesquisa. ISBN: 978-65-01-12558-9. Disponível aqui. Acesso em 11 dez. 2024

Melo, E. R. Ednir M & Yazbek, V. C. (2008). Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: Aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Rio de Janeiro: CECIP, 2008, p. 13.

1 A Carta de Araçatuba constitui o primeiro documento que reúne os princípios e diretrizes das práticas restaurativas no Brasil.

2 Melo, E. R. Ednir M & Yazbek, V. C. (2008). Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: Aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Rio de Janeiro: CECIP, 2008, p. 13.

3 Disponível aqui.

4 Mapeamento de Programas de Justiça Restaurativa. Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2025, p. 24. Disponível aqui.

5 O mérito da ADPF foi julgado em 04.10.2023

6 Anuário da Justiça Brasil 2025, disponível aqui.

7 Disponível aqui. Acesso em 11 dez. 2024

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.