CPI's e falso testemunho: A ilegal moda das prisões em flagrante
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado em 18 de novembro de 2025 14:11
Nos últimos tempos, quem acompanha os trabalhos das muitas Comissões Parlamentares de Inquérito instaladas no país vem se deparando, cada vez mais frequentemente, com uma nova - e questionável - prática: a decretação de prisão em flagrante dos depoentes, pela alegada prática do crime de falso testemunho.
Uma das primeiras Comissões a estrear a nova tendência foi a CPI da Covid, instalada pelo Senado em abril de 2021 para apurar eventuais omissões e irregularidades nas ações do Governo Federal durante a pandemia de Covid-19 no país. Convocado para ser ouvido na condição de testemunha em julho de 2021, o então diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, teve sua prisão em flagrante por falso testemunho decretada pelo presidente da CPI, Senador Omar Aziz, ao final da sessão, após ser ouvido durante horas a fio - sob a justificativa de que seu depoimento divergia de outros elementos de prova colhidos pela Comissão.
Mais recentemente, em abril de 2025, a CPI das bets, instalada pelo Senado com o objetivo de apurar a possível associação do setor de apostas com organizações criminosas e práticas ilícitas, aderiu à moda. Desta feita, a CPI deu voz de prisão ao empresário Daniel Pardim Tavares Lima, que, em depoimento à Comissão na condição de testemunha, teria negado conhecer sua própria sócia - o que motivou o pedido de prisão por falso testemunho formulado pela Senadora Soraya Thronickle, e confirmado pelo presidente do colegiado, Senador Dr. Hiran.
Logo após, foi a vez da CMPI do INSS - que seguiu a tendência em dose dupla: a Comissão Parlamentar Mista do Congresso, instalada para investigar fraudes no INSS envolvendo descontos irregulares em benefícios de aposentados e pensionistas, determinou a prisão em flagrante por falso testemunho tanto de Carlos Roberto Ferreira Lopes, presidente da Conafer - Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais, quanto do economista Rubens Oliveira Costa - este último, preso a despeito de ter permanecido quase que integralmente em silêncio, protegido por habeas corpus concedido pelo STF, que lhe garantia o direito de não responder a perguntas que pudessem incrimina-lo.
É inegável, como se vê, o aumento do apetite das Comissões Parlamentares pelas prisões - o que inevitavelmente enseja a pergunta: afinal, pode a CPI dar voz da prisão a alguém por falso testemunho?
A resposta a essa questão demanda uma análise mais aprofundada do referido tipo penal - inserido no art. 342 de nosso CP, que criminaliza a conduta de "fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral", mas que encontra previsão específica também na lei 1.579, de 1952, que dispõe as regras gerais para as CPIs. O art. 4º, inciso II, do referido texto legal prevê que "constitui crime: (...) fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor ou intérprete, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito. Pena - a do art. 342 do CP".
Pois bem. Uma rápida leitura dos dispositivos legais já deixa claro que apenas a testemunha, perito, tradutor ou intérprete podem ser sujeitos ativos do delito em questão - de modo que se exclui, desde logo, a possibilidade de que aqueles convocados para deporem perante CPIs na qualidade de investigados possam ser presos em flagrante (ou mesmo submetidos a investigação criminal) pela suposta prática do delito de falso testemunho.
Para além disso, se faz necessária uma análise acerca das condutas incriminadas pelo tipo penal, quais sejam: fazer afirmação falsa, negar a verdade e calar a verdade. Vê-se, logo de cara, que todas as ações típicas gravitam em torno do conceito de verdadeiro/ falso. Assim, para a configuração do delito em questão, é preciso restar demonstrado que o dito (ou não dito) pela testemunha deve divergir da realidade; deve contrastar com os fatos reais.
E mais: deve restar demonstrado, ainda, que o testemunho divergente da realidade foi prestado de forma intencional - já que o delito apenas se configura na forma dolosa, inexistindo a forma culposa. Ou seja: para a configuração do crime em questão, a testemunha deve faltar com a verdade sabendo que falta com a verdade. Não existe crime, por exemplo, na hipótese de a testemunha se confundir ou se esquecer de determinado fato. Tampouco existe o crime no caso da mera divergência de versões.
Como se vê, a configuração do delito em questão apresenta, no mais das vezes, larga carga de subjetividade - envolvendo questões complexas como percepção da realidade, intenção do agente, verdade dos fatos. Tais fatores, na maior parte dos casos, não podem ser aferidos prim o ictu oculi, demandando, ao revés, investigação mais aprofundada para sua verificação.
Justamente por isso, o delito de falso testemunho é, a nosso ver, incompatível - ao menos no mais das vezes - com o instituto da prisão em flagrante, precisamente pois a subjetividade da sua configuração contrasta com a necessária certeza do cometimento da infração penal indispensável à decretação da prisão em flagrante, conforme exige o art. 302 do CPP.
Não se está, por evidente, a militar pela banalização das afirmações mentirosas em CPIs - que acabariam por minar a seriedade e capacidade investigativa deste importante instrumento democrático. A prestação de depoimentos falsos pode e deve ser apurada, por meio da instauração do competente procedimento investigativo, a fim de responsabilizar criminalmente, se o caso, a testemunha que falta com a verdade perante a Comissão.
O que nos parece, porém, adentrar as raias da ilegalidade é a atual multiplicação das prisões em flagrante ancoradas na prática do delito em questão: a nosso ver, a subjetividade e complexidade inerentes à configuração do delito de falso testemunho são, via de regra, incompatíveis com a certeza da prática delitiva exigida para a decretação da prisão em flagrante, tornando a ordem de prisão, no mais das vezes, ilegal.

