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Proteção de dados pessoais no campo de tutela penal

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Atualizado em 3 de dezembro de 2025 08:43

A necessidade de proteção da integridade física, moral, patrimonial e à vida privada dos cidadãos, garantindo condições para desenvolverem-se plenamente em sociedade, e resguardando de intervenções arbitrárias, hoje, alcança novos paradigmas na era tecnológica, e impõe ao direito que reconheça a dimensão de um fenômeno de digitalização da informação. O tratamento de dados pessoais integra a realidade comunitária e estrutura diversos aspectos sociais, relações econômicas e políticas, de modo que violações à sua esfera protetiva afetam diretamente a liberdade e a dignidade do indivíduo. Nesse quadro, dispositivos de armazenamento de dados passam a ser compreendidos como extensão da personalidade.

No Brasil, a lei 13.709/18 (LGPD) representou avanço na regulação do uso de dados. Em 2020, em decisão histórica, o STF reconheceu um direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais (ADIns 6.387, 6.388, 6.389,6.390 e 6.393). Mais tarde, em 2022, foi promulgada a EC 15, que incorporou um direito fundamental à proteção de dados pessoais ao texto constitucional, inserindo o inciso LXXIX ao art. 5º da CF/1988, segundo o qual "é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais".

A partir desta perspectiva indaga-se se a proteção de dados pessoais possui densidade tal que expresse a necessidade de ingressar no campo da tutela penal.

De um lado, pode-se refletir se dados pessoais reputam-se bem jurídico penalmente tutelável, especialmente, diante de uma realidade de generalização e utilização massiva destas informações e de vulnerabilidade dos titulares, carregando riscos de violações de impacto individual e coletivo.

O Direito Penal brasileiro já encontra indicadores da tutela à integridade informacional sobretudo em crimes que atingem confidencialidade, disponibilidade e autenticidade dos dados, como o crime de invasão de dispositivo informático (art. 154-A do CP), os crimes de violação ou divulgação de segredo (arts. 153 e 154 do CP) ou ainda o delito de violação de sigilo funcional (art. 315 do CP), o que, contudo, é fragmentário. Os tipos existentes não acompanham todo o ciclo de tratamento de dados e mais traduzem uma "reação" ao momento final da conduta. Por certo, há práticas lesivas que ocorrem sem invasão direta ou violação de segredo, como extrações automatizadas de bases, emprego da tecnologia e difusão de informações como instrumento de engenharia social ou a reutilização indevida de dados obtidos legitimamente.

De outro lado, o tema apresenta uma segunda dimensão penal igualmente relevante: a proteção de dados é também limite ao exercício do poder punitivo estatal. A investigação criminal vem operando por meio de mecanismos digitais em constante aprimoramento, e que não apenas se verificam no manuseio de dados armazenados em dispositivos eletrônicos, mas manifestam a atividade de policiamento tecnológico, com a coleta, cruzamento e conservação de dados, até mesmo com finalidade preventiva.

Por isso, a proteção de dados deve ser compreendida como direito fundamental de contenção da persecução penal, ancorado na autodeterminação informativa, isto é, no direito do indivíduo a algum grau de controle sobre as informações que o identifiquem, inclusive diante da atuação do Estado (CAMARGO, 2022, p. 132).

Neste aspecto, a LGPD estabeleceu um marco abrangente de governança sobre coleta, uso, compartilhamento e armazenamento de dados pessoais no Brasil. Todavia, o legislador excluiu do campo de aplicação da LGPD o tratamento de dados para fins de segurança pública, defesa nacional e investigação ou repressão penal (art. 4º, III). A exclusão reconhece que a persecução criminal demanda disciplina própria, o que se entende justificável, pois primordial estabelecer premissas técnicas e específicas que alinhem um cenário de moderação entre eficiência investigativa-punitiva e a salvaguarda de direitos fundamentais.

O diálogo com a perspectiva processual torna esse limite ainda mais visível. No processo penal, informações pessoais atravessam todas as fases procedimentais-persecutórias, e o próprio processo produz dados sensíveis (históricos criminais, laudos, endereços, redes de relacionamento, biometria etc.). Isso reforça que a tutela penal deve ser analisada em conjunto com o modo como o Estado produz, preserva e expõe dados no aparato de justiça.

Hoje, objetivando implementar legislação específica, se aderem ao tema as propostas do anteprojeto de lei de proteção de dados para segurança pública e persecução penal, elaborado por comissão de Juristas indicada pela Câmara dos Deputados em 2020; o PL 1.515/22, de autoria do deputado Federal Coronel Armando (PL/SC); e o PL 2338, de 2023, do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG).

O problema reside no fato de que, enquanto não existe um regime penal de proteção de dados, o tratamento informacional no sistema de Justiça criminal permanece regulado por normas esparsas, sem uma principiologia articulada.

Nesse sentido, a exclusão da LGPD não pode ser lida como autorização para atuação irrestrita. Ao contrário: o tratamento de dados no processo penal envolve risco elevado de seletividade, abusividade no uso de informações e vigilância, o que exige limites materiais bem expressados. A autodeterminação informativa opera, então, como um meio propositivo à estruturação da sistemática penal: o acesso a dados deve ser dimensionado legislativamente, com operações definidas proporcionais e razoáveis e submeter-se a controle institucional, administrativo e jurisdicional.

Na linha argumentativa exposta, busca-se trazer à reflexão duas premissas. Primeiro, existe proteção penal relevante dos dados pessoais no Brasil, mas ainda calcada em tipos tradicionais, sem enfoque no tratamento e uso massivo de informações. Segundo, essa proteção não pode ser compreendida isoladamente da persecução penal, pois o uso estatal de dados também gera riscos de violação a direitos fundamentais. Então, a proteção de dados pessoais no campo de tutela penal revela, sob as faces da política criminal, a urgência de um regime específico.

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CAMARGO, Rodrigo Oliveira de. Tratamento de dados, persecução penal e a garantia do direito de defesa. Tese (Doutorado em Ciências Criminais). Escola de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 211 p., 2022.