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A quem é permitido saber? Epistemicídio, neutralidade e a disputa pelo conhecimento

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Atualizado em 4 de dezembro de 2025 12:09

A construção do saber está intimamente ligada às dinâmicas do privilégio em dada sociedade. Antes de ser capaz de produzir conhecimento é preciso ser. E se o humano não é uma característica intrínseca a todo indivíduo (Sodré, 2022), compreender a pessoa negra e outros grupos subalternizados como fonte de saber é desafiador.

A afirmação cartesiana "penso, logo existo" estrutura toda a base de sustentação do conhecimento moderno ocidental, estabelecendo a razão como o único ponto de partida válido da existência. Este dualismo entre mente e corpo cria uma cisão fundamental que, como nos alerta Beatriz Nascimento (2021), atravessa todo o "edifício da sociedade": ao associar o negro exclusivamente à força do corpo e à natureza, o sistema o exila do território da razão e da produção intelectual.

Essa separação é apontada como distanciada e universal, simulando a neutralidade de quem não tem ponto de vista (GROSFOGUEL, 2012).

A neutralidade ignora que o direito é feito por pessoas e não o contrário e promove o descolamento da realidade prática e concreta, sobretudo ao tentar ocultar que toda perspectiva é parcial e que a narrativa do sujeito universal é apenas uma das narrativas e que esta disputa não pode se descolar de aspectos ideológicos e por vezes políticos. Temáticas desse tipo são relegadas a impressões subjetivas ou não acadêmicas quando estudadas por pessoas negras e indígenas.

Essa suposta ausência de marcação racial é o que Lélia Gonzalez identifica como a neurose da branquitude: o grupo dominante impõe suas próprias vivências como "Ciência Universal", enquanto rotula as experiências amefricanas como mero "regionalismo" ou folclore.

Neste contexto, temáticas que dialogam com a realidade dos sujeitos vulnerabilizados são rejeitadas pela academia não por falta de rigor, mas porque, ao reivindicarem a subjetividade negada, ameaçam a estabilidade desse edifício excludente, sendo convenientemente rotuladas como "pouco científicas".

Uma das implicações diretas desse processo é o epistemicídio, conceito central em Sueli Carneiro: a eliminação e invisibilização sistemática de formas de produção de sentido que não se curvam à lógica eurocêntrica. O sujeito universal - homem, branco, hétero, ocidental citado por KILOMBA - mantém-se hegemônico nos espaços de poder (como a Academia e STF, por exemplo) precisamente porque o sistema desqualificou previamente a racionalidade de mulheres, negros e indígenas ao ponto de que cogitar sua entrada nestes espaços é lido como causa sem mérito e identitária - ou que sempre fica para depois.

A lei 12.519/11, institucionalizou a relevância do dia da morte do líder negro Zumbi dos Palmares no dia 20 de novembro. Além do simbólico, esse marco legal evoca o acúmulo de décadas de lutas dos movimentos negros no Brasil, responsáveis, direta e indiretamente, pela denúncia de formas de violência de que, hoje, muito se ouve falar, entre elas a letalidade policial, o encarceramento em massa e o feminicídio, mas também o apagamento da contribuição intelectual.

Novembro já é, assim como maio e julho, um mês em que são trazidos de forma amplificada, debates e reflexões sobre como a raça e demais interseccionalidades atravessam a realidade de pessoas negras, questões que são não apenas vivenciadas como enfrentadas pela intelectualidade negra o ano todo.

Nestes momentos, muito tem se falado da urgência de enfrentarmos com a devida seriedade problemas estruturantes, como por exemplo a subrrepresentação de pessoas negras nos altos cargos do Poder Judiciário e a sobrerrepresentação de corpos negros no sistema de Justiça criminal.

A grande questão é que não há possibilidade de reformar o sistema de justiça usando as lentes de sempre. Como afirma Adilson Moreira, "os juristas brancos não contribuem da forma mais adequada para a construção de uma hermenêutica jurídica capaz de promover transformação social", porque, mesmo aqueles progressistas "não estão cientes da complexidade da pauta política que defendem" (2019, p. 136). E aqui, muitas vezes a conversa se torna identitária, indigesta ou fica para depois.

Mais do que ouvir, colocar-se em posição de mudança e aprendizado. Reconhecer a intelectualidade historicamente negada de pessoas negras é provocar a discussão, abrir espaços e apoiar, ainda que isso signifique reduzir parte de seu protagonismo ou se posicionar de forma contramajoritária. É contribuir para que se visibilize sempre e mais nossa produção de conhecimento. Após estas breves reflexões, a pergunta a ser respondida é: E você, vem conosco?

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Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2011. (Ou edição mais recente de Escritos de uma vida ou Dispositivo de racialidade e a escrita de si se a citação direta for de ensaio específico).

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. (Ou obra que contenha o ensaio "Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira" e/ou o conceito de Neurose da Branquitude, como Conceito e História da Amefricanidade).

GROSFOGUEL, Ramón. O "ego" político do conhecimento: colonialidade/descolonialidade e as migrações dos centros e periferias do poder. Revista Sociedade e Estado, v. 27, n. 1, p. 25-46, 2012.

KILOMBA, Grada. Memória da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020.

LEI Nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 nov. 2011.

MOREIRA, Adilson. Pensamento Negro, Justiça e Direito. São Paulo: Contracorrente, 2019.

NASCIMENTO, Beatriz. O Quilombo e o Jornal. In: Beatriz Nascimento: uma intelectual brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. (Ou a edição mais específica que contenha o texto onde ela detalha o conceito de "Edifício da Sociedade").

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2022. (Ou obra que aborde a crítica ontológica à categoria "humano").