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Autismo, curatela e tomada de decisão apoiada

Por tudo isso, é possível concluir que a pessoa com autismo não deve ser interditada ao completar a maioridade. A regra é a sua capacidade plena, utilizando-se do instituto de tomada de decisão apoiada quando necessitar de auxílio para a prática de alguns atos.

terça-feira, 24 de abril de 2018

Atualizado em 20 de abril de 2018 08:38

A lei 12.764/2012, conhecida como Lei Berenice Piana, instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A mencionada lei dispõe que a pessoa com autismo é considerada pessoa com deficiência. Assim, aquele diagnosticado dentro do espectro terá amparo na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

A supracitada lei é conhecida comumente como Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) e foi um dos mecanismos desenvolvidos pelo Estado para regulamentar as exigências estipuladas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU). O Estatuto alterou substancialmente a legislação já existente quanto aos direitos da pessoa com deficiência, inclusive, em relação à capacidade para os atos da vida civil e à ação de interdição.

Antes dessas alterações havia uma vinculação entre deficiência e incapacidade. O Estatuto da Pessoa com Deficiência alterou o rol dos absoluta e relativamente incapazes, modificando os artigos 3.º e 4º do Código Civil. Os autistas, bem como toda pessoa com algum tipo de deficiência, foram retirados da condição de relativamente ou absolutamente incapazes e passaram a ser considerados, como regra, plenamente capazes.

As alterações legislativas garantem voz ao autista, que poderá se autodeterminar segundo as suas convicções e escolhas. Tem assegurado o direito de praticar os atos da vida civil sem precisar de autorização, como, por exemplo, casar e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória, e adotar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

O novo instituto: Tomada de Decisão Apoiada

Uma das mudanças implementadas pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência é a criação da Tomada de Decisão Apoiada. Por esse instituto, a pessoa com deficiência poderá indicar ao juiz pelo menos 2 (duas) pessoas de sua confiança para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil.

A tomada de decisão apoiada não se confunde com a curatela, partindo de uma premissa diametralmente oposta: inexiste incapacidade, mas mera necessidade de apoio. É um procedimento facultativo destinado a pessoas com deficiência plenamente capazes.

O beneficiário desse instituto conserva sua capacidade de autodeterminação em relação aos atos da vida civil, utilizando apenas o apoio das pessoas designadas para a tomada de decisão relativamente a certos atos, com relação aos quais ele próprio considere que precisa de auxílio.

A lei não estabelece o prazo mínimo de duração da tomada de decisão apoiada, nem arrola os atos que se submeterão a apoio. Quando o apoiado formula o pedido, é necessário que especifique os limites do apoio e o prazo de vigência. A sentença judicial que julgar esse pedido indicará necessariamente a sua duração.

O apoiado, que poderá ser uma pessoa com autismo, desde que possua o discernimento necessário para a prática desses atos e para a indicação das pessoas que lhe prestarão auxílio, conservará a sua autonomia. É importante referir que a vontade da pessoa apoiada será respeitada e preservada, não sendo substituída pela vontade de seus apoiadores.

Ação de Curatela


A ação de interdição também sofreu alterações e, quando necessário, a
pessoa com deficiência será submetida à curatela, segundo art. 84, §1º, lei 13.146/2015. Há quem afirme que a interdição restou revogada, subsistindo o instituto somente como curatela. A partir disso, deve-se falar em Ação de Curatela, e não mais em Ação de Interdição.

Entendemos que o mais adequado é, de fato, a utilizar a nomenclatura Ação de Curatela - e não mais ação de interdição -, garantindo-se, assim, o uso de uma linguagem consentânea com os novos contornos implementados pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

As ações de interdição em andamento não devem ser extintas, mas adaptadas à visão do Estatuto da Pessoa com Deficiência. A curatela, como regra, será restrita apenas a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, e, por exemplo, não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

Além disso, a curatela poderá ter diferentes extensões, a depender do grau de deficiência. A lógica do Estatuto é a seguinte: a pessoa com deficiência é plenamente capaz, portanto as ideias de deficiência e incapacidade foram desatreladas. Em alguns casos, o grau de comprometimento da pessoa, em decorrência da deficiência, poderá afetar sua capacidade de expressão da própria vontade.

É para essas hipóteses em que há comprometimento da capacidade plena que a curatela se presta. Cabe ressaltar a excepcionalidade da medida, que só poderá ser utilizada em casos não alcançados pelo instituto da tomada de decisão apoiada

Sabe-se que cada autista possui suas próprias características e limitações, de modo que a curatela será estabelecida de acordo com essas peculiaridades.

É possível o curador seja verdadeiro representante do autista, quando este não tiver mínimas condições de praticar determinados atos da vida civil. Nesse caso, o curador praticará os atos em seu lugar. Ou então será seu mero assistente, quando a pessoa com TEA tiver algum discernimento para a prática dos atos, mas necessitar do acompanhamento e aval do seu curador, para que seus interesses sejam devidamente protegidos.

A sentença proferida nessa ação sempre especificará os atos sobre os quais recai a curatela, bem como a sua extensão.

Por mais difícil que seja mudar mentalidades e desconstruir estigmas, é importante se ter em mente que pessoa com deficiência é, em regra, plenamente capaz. A curatela é medida extraordinária.

Por tudo isso, é possível concluir que a pessoa com autismo não deve ser interditada ao completar a maioridade. A regra é a sua capacidade plena, utilizando-se do instituto de tomada de decisão apoiada quando necessitar de auxílio para a prática de alguns atos. Em casos excepcionais, quando, em virtude do autismo, a expressão da vontade da pessoa fique comprometida, a ação de curatela pode ser utilizada, como medida protetiva e extraordinária.

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*Raquel Tedesco é sócia do escritório Raquel Tedesco Advocacia e Consultoria jurídica.

*Bruna Katz é sócia do escritório Bruna Katz Advocacia

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