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O vulnerável e o Direito Penal, Eudes Quintino

O vulnerável e o Direito Penal

Todo indivíduo tem sua vulnerabilidade intrínseca, originária, criada pela sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais geradores de tantos problemas que afetam a mente, em razão da evolução natural das pessoas.

domingo, 9 de setembro de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 15:22

Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção1. Houaiss, por sua vez, assim o define: "que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido"2. Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais. A mitologia grega relata que Tétis, mãe de Aquiles, untou o corpo do filho com ambrosia e manteve-o sobre o fogo. Após, mergulhou-o no rio Estige com a intenção de fazê-lo invulnerável. Segurou-o, porém, por um calcanhar que não foi tocado pela água, e, dessa forma, ficou desprotegido. Foi morto por Páris, que o atingiu com uma flechada no calcanhar vulnerável.

 

É verdadeira a premissa de que toda pessoa humana é vulnerável, daí a existência da própria lei para realizar a tutela necessária. A proteção legal passa a ser a lente pela qual possa ser visualizado aquele que se apresenta, em algumas circunstâncias, como o mais frágil, necessitando de cuidados especiais. Pode-se dizer genericamente que todo indivíduo tem sua vulnerabilidade intrínseca, originária, criada pela sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais geradores de tantos problemas que afetam a mente, em razão da evolução natural das pessoas. Além dessa, outras pessoas são afetadas por vulnerabilidades circunstanciais, abrangendo pobreza, doenças crônicas e endêmicas, falta de acesso à educação, alijamento dos mais comezinhos direitos de cidadania e outras situações que as tornam susceptíveis a sofrer danos. As diversas causas de estresses, de fobias, de depressões são enfermidades produzidas pela sociedade moderna e, na medida em que vão sendo contidas pelos homens, outras assumem as posturas de novas agressões comportamentais.

 

Merece destaque a figura de Cristo, no relato dos Evangelhos, como um líder espiritual, que prega que César cuidava daquilo que lhe era devido enquanto a misericórdia, a Justiça, o alimento aos famintos, o acolhimento aos imigrantes e a proteção dos pobres contra a opressão dos poderosos, eram tarefas de Deus. A sua preferência e atenção por aqueles que estão fora da lei da época, as prostitutas, os cobradores de impostos, assim como por aqueles que se apresentavam doentes e eram curados, o ato de misturar-se a eles e prometer o Reino dos Céus são verdadeiros relatos de assistência à vulnerabilidade. Correta e coerente a afirmação de Eagleton: Em nenhum trecho dos Evangelhos Jesus aconselha os aflitos a se reconciliarem com o sofrimento deles. Aqueles que são cegos, surdos, enfermos ou mentalmente perturbados, existem nas margens da sociedade, mais ainda na visceralmente preconceituosa Palestina; restaurar a saúde deles é também devolvê-los ao pleno convívio humano com os outros e essa é uma razão pela qual a cura é um sinal do Reino dos Céus3.

 

As leis editadas após a Constituição Federal de 1988 carregam um comprometimento diferenciado, não só na sua estrutura legislativa como também nas tutelas anunciadas. As proteções são as mais variadas dentro da esfera dos direitos fundamentais, como a vida, a saúde, a cidadania, a segurança, educação, cultura, moradia, alimentação, esporte, lazer, trabalho, liberdade, dignidade e acesso à justiça, independentemente de classe social, de origem, raça, orientação sexual, cultura, renda, idade, religião ou qualquer outra forma de discriminação, além do que, num só artigo, a Lei Maior resume a isonomia que deve prevalecer no Estado Democrático de Direito.

 

A lei 11.340/2006, conhecida por Maria da Penha, é exemplo da nova tarefa legislativa. Apresenta claramente seus objetivos, as políticas públicas voltadas para o combate à violência doméstica e os mecanismos para atingir seus fins, além dos tipos penais específicos. Outra lei, a 11.343/2006, conhecida por Lei de Drogas, também segue pelo mesmo caminho. O legislador anuncia a criação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, estabelece medidas de prevenção, de reinserção social dos usuários e dependentes, além de normas de repressão e, em blocos distintos, as condutas consideradas delituosas. A lei 12.015/2009, por sua vez, que alterou o Título VI da Parte Especial do Código Penal, inseriu nova nomenclatura aos crimes sexuais. Agora são crimes cometidos contra a dignidade sexual e, coerente com sua missão, criou no capítulo II os crimes sexuais contra vulnerável e no artigo 217-A, estupro de vulnerável.

No mesmo diapasão o teor do artigo 19 lei 12.461/2011 (Estatuto do Idoso) que, após constatar a sensação de desproteção do idoso, que fica exposto a uma vulnerabilidade prejudicial em caso de agressão, obriga clínicas e hospitais a comunicarem às autoridades sanitárias, que repassarão os atos de violência relatados à autoridade policial e ao Ministério Público, para as providências cabíveis à espécie.

Também na mesma linha de garantia, visando tutelar pessoas vítimas de injúria racial ou discriminatória, a lei 12.033/2009, transforma em ação penal pública condicionada à representação a ação penal por crime de injúria consistente na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, de acordo com o parágrafo único do artigo 145 do Código Penal. Com a nova roupagem do artigo, basta procurar pelo representante do Ministério Público, oferecer a ele a representação, que nada mais é do que uma autorização, para que a ação seja intentada gratuitamente.

 

Assim, lentamente, a palavra vulnerabilidade vai ganhando espaço nas ordenações brasileiras. A lente do legislador voltou seu foco para a perspectiva do fraco, aquele que, visto dos mais diferenciados matizes, não reúne condições iguais à do cidadão comum, tendo como fonte de referência a figura do homo medius. As relações entre os homens envolvem juízos de valor, exigindo uma exata postura garantidora de direitos iguais para aqueles que necessitam uma proteção diferenciada. Sem essa garantia, não há que se falar em preservação da igualdade. O equilíbrio só é possível em razão da compensação provocada.

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1 De acordo com o Dicionário Morfológico da Língua Portuguesa, organizado pelos Professores Evaldo Hecker, Sebald Back e Egon Massing. Editora Unisinos, 1984.

2 Houaiss, Antonio.Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetivo Ltda, 2001.

3 Eagleton Terry. Jesus Cristo os Evangelhos. Tradução de José Maurício Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, pág. 22.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

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