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Até que enfim: ação penal pública incondicionada para os crimes sexuais

A alteração da ação penal de pública condicionada para incondicionada nos crimes sexuais é matéria penal, posto que interfere na pretensão punitiva do Estado.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 17:58

Longa foi a caminhada para chegarmos até aqui: agora os crimes sexuais se submetem à ação penal pública incondicionada. Ponto. Sem exceções, sem representação, sem manifestação do ofendido. A vítima pode ficar em paz, se submeter à perícia e ir para casa, sem ter que pensar se autoriza ou não a persecução penal.

Avançamos da ação penal privada na década de 1940, para a pública condicionada à representação em 2009 e agora, finalmente: pública incondicionada.

Os porquês desse avanço são inúmeros: porque é um crime grave e hediondo; porque é um crime que a sociedade como um todo repudia e exige punição; porque assim como o homicídio, tentado ou consumado, deixa sequelas muitas vezes irreparáveis na vítima e ou seus familiares.

Vale a pena relembrar como a sociedade brasileira evoluiu, conforme se verifica na justificativa do legislador de 1940 na exposição de motivos:

Certamente, o direito penal não pode abdicar de sua função ética, para acomodar-se ao afrouxamento dos costumes; mas, no caso de que ora se trata, muito mais eficiente que a ameaça da pena aos sedutores, será a retirada da tutela penal à moça maior de 18 anos, que, assim, se fará mais cautelosa ou menos acessível.

Em abono do critério do projeto, acresce que, hoje em dia, dados os nossos costumes e formas de vida, não são raros os casos em que a mulher não é a única vítima da sedução.

Já foi dito, com acerto, que "nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais" (Filipo Manci, Delitti sessuali). (grifei)

O referido argumento deixa evidente o pensamento reinante à época e termina por justificar a opção feita pelo legislador de que os crimes sexuais, em regra, fossem processados por ação penal privada.

Como a regra era a publicidade do processo penal, a sociedade tomava conhecimento dos detalhes do ocorrido e da identidade da vítima, sendo que o strepitus judicii podia não ser do seu interesse por questões sociais, culturais ou morais. Assim, o legislador optou por estabelecer como regra a ação privada, excepcionando alguns casos:

Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.

§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:

I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;

II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.

§ 2º - No caso do I do parágrafo anterior, a ação do MP depende de representação.

É evidente que tal opção terminou por privilegiar a impunidade em vários casos, posto que a não propositura da queixa em juízo no prazo de seis meses levava à extinção da punibilidade pela decadência. Registre-se que esse prazo tinha início a partir do momento em que se identificava o autor do fato, o que as vezes coincidia com a data do fato criminoso, posto ser comum delitos sexuais praticados por pessoas conhecidas.

Ademais, na ação penal privada, a titularidade é da vítima, que necessita contratar um advogado para mover a ação, ou seja, terá que custear o patrocínio de uma causa criminal, o que pode ser muito dispendioso e demorado.

A ação somente era de titularidade incondicionada do MP quando havia abuso do pátrio poder ou a vítima estava sob a tutela do algoz, sendo evidente a situação de vulnerabilidade e a impossibilidade, na maioria das vezes, de promover a ação penal. Na hipótese de hipossuficiência financeira, a ação pública se condicionava à representação, exatamente para que a vítima ou os genitores decidissem se tinham interesse no processo.

De todo modo, ao longo das décadas verificou-se a necessidade de atualizar a modalidade da ação, não só em face do amadurecimento da sociedade em relação ao tratamento dispensado às vítimas dos crimes, como pelas inúmeras situações de injustiças. Ante a falta de iniciativa do legislador, em 1984 o STF emitiu a Súmula 608: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada. Ou seja: quando houver lesões graves, gravíssimas ou morte da vítima (art. 101, CP), a ação é de titularidade do MP, sem qualquer interferência da vítima quanto ao seu possível interesse no processo.

Em 2009, com o advento da lei 12.015, passou-se a estabelecer que:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.

Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.

Art. 234-B. Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça. (grifei)

Assim, houve um avanço inegável ao alterar a ação penal de privada para pública condicionada à representação nas hipóteses de crime contra pessoas maiores de 18 anos porque a titularidade da ação é do MP, bastando a representação da vítima para que este possa mover a ação. Note-se que em relação aos menores de 18 anos e pessoas vulneráveis a ação era pública incondicionada.

Em todos os casos, a ação penal passou a correr em segredo de justiça (art.234-B CP). Tal previsão é fundamental para que as vítimas se sintam seguras e motivadas à delatar crimes sexuais sem receios quanto à exposição de sua identidade por conta do processo.

E agora, a partir da lei 13.718/18, a ação penal será pública incondicionada independente da vítima ser ou não classificada como vulnerável, ser ou não maior de 18 anos, o crime for praticado com ou sem violência real. Simplifica. Facilita. Traz segurança jurídica para todos: autor, que deve ter bem claro para si que praticar ato libidinoso sem adesão do parceiro é crime e vai sim ser processado; vítima, que não precisa dar explicações: comunica o fato e a polícia faz o resto; polícia, que tem o dever legar de instaurar inquérito e investigar sem perquirir se a vítima quer ou não quer; e a sociedade, que avança no entendimento de que o direito de alguém tem limite no direito do outro, que a roupa, horário, local, postura, comportamento social, estado civil, porte físico, orientação sexual etc, não interferem no reconhecimento de que um crime ocorreu.

Por fim, a alteração da ação penal de pública condicionada para incondicionada nos crimes sexuais é matéria penal, posto que interfere na pretensão punitiva do Estado. Não haverá possibilidade de decadência da representação e, portanto, é uma lei penal nova que prejudica os autores de crimes sexuais. Desse modo, entendemos que não retroage, aplicando-se a ação penal pública incondicionada apenas aos crimes sexuais ocorridos posteriormente ao advento da lei.

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*Fernanda Maria Alves Gomes é mestre em Direito pela UFPE e professora de Direito.

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