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O segredo e o legado de Zilda Arns

Milhares de vidas salvas, milhões de pessoas diretamente beneficiadas e o País inteiro tocado por um exemplo de integridade, dedicação e eficácia na luta pela promoção social dos mais desassistidos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Atualizado às 08:31


O segredo e o legado de Zilda Arns

Rubens Naves*

Milhares de vidas salvas, milhões de pessoas diretamente beneficiadas e o País inteiro tocado por um exemplo de integridade, dedicação e eficácia na luta pela promoção social dos mais desassistidos. Assim podemos resumir o legado de Zilda Arns, que também deve ser reconhecida como a pessoa que mais contribuiu para a redução da mortalidade e da desnutrição infantil na história do Brasil - com um trabalho tão bem planejado e realizado que foi exportado para vários outros países.

Nestes tempos de marketing pessoal e culto à celebridade, a grandiosidade dessas realizações contrasta com a serena discrição com que a doutora Zilda sempre se apresentou, trabalhou e viveu. Mas se o segredo daquela pediatra e sanitarista, fundadora e coordenadora da Pastoral da Criança, não se encontra nos manuais contemporâneos de sucesso, onde estaria?

Uma lembrança que guardo desde o dia 26 de março de 2004 pode ser uma boa pista para a resposta. Naquela data, Zilda Arns foi homenageada pela associação de funcionários de uma instituição bancária na Assembleia Legislativa de São Paulo. Então diretor-presidente da Fundação Abrinq, eu me preparava para fazer um breve discurso quando pude observar a dra. Zilda em meio a algumas das voluntárias que promovem a obra da Pastoral da Criança no Brasil - contingente que hoje chega a 155 mil pessoas, das quais 90% são mulheres. Enquanto as voluntárias expressavam, por meio de gestos e olhares, uma entusiasmada admiração por sua líder, ela, a homenageada, dispensava a todas uma constante atenção afetuosa.

O que mais me chamou atenção, entretanto, foi o fato de que, para cada voluntária, dra. Zilda tinha uma palavra e um olhar especial. Cada uma recebia dela um tratamento intimamente amoroso, algo que só pode ser oferecido por quem enxerga e acolhe o outro não apenas como integrante de uma equipe, mas também como pessoa, em sua individualidade.

Naquele dia, tive a oportunidade de entender melhor a natureza do trabalho e da liderança daquela grande brasileira, uma mulher capaz de tocar um imenso e ambicioso projeto sem perder interesse ou sensibilidade em relação às pessoas à sua volta. Na verdade, não se tratava apenas de preservar o contato amoroso com as colaboradoras em meio a um trabalho titânico, mas de erigir uma obra grandiosa a partir de uma atitude de compaixão ativa, que supera preconceitos, aproxima os diferentes e horizontaliza relações tradicionalmente hierárquicas. Não é à toa que o sucesso espantoso da Pastoral da Criança - que já atendeu a cerca de dois milhões de crianças e tem conseguido baixar a mortalidade infantil em bolsões de pobreza a taxas que correspondem a metade da média brasileira - fundamenta-se na valorização e no protagonismo das próprias comunidades assistidas, que, além de mais vida e saúde, ganham conhecimento, organização e autonomia.

Zilda Arns tinha uma capacidade incomum para enxergar e acolher, simultaneamente, o próximo e o todo, o indivíduo e o coletivo, e demonstrava isso tanto no plano afetivo quanto na visão estratégica. Ela sabia que a transformação social ampla e profunda que almejava só viria com a mobilização permanente das próprias populações pobres e vigoroso envolvimento da sociedade civil. Mas também via com clareza o papel fundamental que cabe ao Estado no esforço necessário de efetivação dos direitos humanos e constitucionais para a parcela da população brasileira que ainda não goza de autêntica cidadania. Tanto que a Pastoral da Criança sempre contou com parcerias e financiamento estatais e influenciou políticas públicas, inspirando a descentralização do atendimento à saúde e programas com o Médico de Família.

Com uma visão abrangente das necessidades das crianças, dra. Zilda não se limitou ao combate das causas mais diretas da mortalidade infantil por meio do ações como incentivo ao aleitamento materno, educação nutricional, controle da diarreia, medidas de higiene e vacinação. Seu trabalho incluía a promoção de lideranças locais, alfabetização de adultos e educação básica para crianças e adolescentes, combate à violência doméstica e geração de renda. Uma abordagem holística e de vanguarda, adotada pela Pastoral da Criança antes mesmo da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, que segue moldes semelhantes.

Uma das inovações salvadoras de vidas lançadas pela dra. Zilda foi a multimistura, uma farinha rica em nutrientes capaz de evitar e reverter a desnutrição infantil. Uma receita tão valiosa quanto aquela, mas composta de visão, dedicação, conhecimento, liderança, integridade e amor, é oferecida aos brasileiros pelo exemplo de vida dado por ela com sua corajosa humildade de missionária - qualidade que, como demonstra a história recente do País, viceja na família Arns.

Zilda Arns estava levando seu trabalho missionário ao país mais pobre do Ocidente quando foi vitimada em meio a uma catástrofe humanitária. Foi uma perda trágica, mas não poderia haver epílogo mais coerente para sua trajetória de solidariedade e compromisso com os mais necessitados.

Que os líderes, atuais e futuros, saibam se inspirar neste exemplo de humildade. Dra. Zilda sabia que ser humilde não é pensar pequeno nem almejar pouco, mas assumir verdadeiramente o papel de veículo das grandes causas. No caso dela, a luta pela disseminação de um amor com força transformadora, capaz de acolher, nutrir e libertar crianças e adolescentes das mazelas da miséria, das limitações da ignorância e da doença. Por representar plenamente essa bela causa, Zilda Arns acabou encarnando sua grandiosidade. Como tão vivamente demonstravam os rostos exultantes das voluntárias, mães e crianças que a aplaudiam na sede do legislativo paulista, há quase seis anos. E os milhões de sorrisos vivos e saudáveis que ela semeou e nutriu Brasil adentro, e mundo afora.

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*Professor da Faculdade de Direito da PUC-SP, conselheiro e ex-presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Sócio do escritório Rubens Naves, Santos Jr., Hesketh - Escritórios Associados de Advocacia


 

 

 

 

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