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Soberania popular

Prescreve a Constituição da República, no art. 14 do Capítulo reservado aos Direitos Políticos que "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto secreto, com valor igual para todos..."

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Atualizado às 07:23


Soberania popular

Almir Pazzianotto Pinto*

Prescreve a Constituição da República (clique aqui), no art. 14 do Capítulo reservado aos Direitos Políticos, que "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto secreto, com valor igual para todos..."

O dispositivo corresponde ao que poderíamos entender como Espírito da Constituição, traçado no Preâmbulo, ao declarar que os representantes do povo brasileiro reuniram-se em Assembleia Nacional Constituinte para a instituição de Estado democrático, destinado a assegurar direitos sociais e individuais dentro de sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

O significado do substantivo soberania é conhecido. Trata-se do caráter ou qualidade de quem é soberano, ou seja, de quem se encontra revestido de autoridade suprema, e ignora outra que lhe seja superior. Popular, por sua vez, é aquilo que pertence ou se relaciona ao povo, ou seja, o próprio povo.

Logo, nos expressos termos da Lei Magna, a soberania política, no Brasil, pertence ao povo, a mais ninguém. A partir daí, e ao se saber que a expressão povo diz respeito ao conjunto aberto de cidadãos, aqui nascidos ou naturalizados, conclui-se que tanto integram o povo os donos de grandes fortunas como os favelados; letrados e analfabetos; trabalhadores e patrões; intelectuais e abestalhados; usineiros e bóias-fria.

O povo, enfim, sobre o qual se assenta a soberania política, somos nós, iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza, no gozo das garantias do direito inviolável à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Constituição, art, 5º).

Se a sociedade ambicionada pela Lei Suprema deve ser fraterna, pluralista e sem preconceitos, excepcionais tornar-se-ão as limitações ao direito de votar e ser votado.

Tais obviedades me ocorrem diante de fenômenos eleitorais, mais frequentes a partir de 1988. Com o restabelecimento do regime democrático, abriram-se largas portas à fundação de partidos políticos, e à proliferação de candidatos sequiosos da conquista de mandato representativo.

Aos partidos, a Constituição, no art. 17, confere autonomia na definição das normas sobre estrutura interna, organização, funcionamento, escolha e regime das coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, cabendo aos estatutos fixar normas relativas à disciplina e fidelidade partidária. Destarte, não nos espantamos quando partido de direita celebra aliança com partido de esquerda em determinado Estado, enquanto se combatem e se agridem no Estado vizinho.

A norma constitucional ensejou a proliferação amebiana de siglas. São em número superior a trinta os partidos com registro, e dezenove ou vinte os representados no Congresso Nacional. Na quase totalidade, entretanto, não passam de sociedades de caráter quase empresarial, que nada significam para a maioria dos eleitores, os quais votam por obrigação legal em pessoas que desconhecem, dos quais desacreditam e nada podem esperar, exceto breve esquecimento.

Causa-me espécie que expressiva parcela das camadas sociais superiores se espante diante da presença de candidatos pinçados entre artistas circenses, ex-profissionais de futebol, pugilistas, cantores, pagodeiros, e anônimos supostamente desqualificados para o exercício da representação popular.

Ora, democracia, como a escolhemos, é algo que não se pratica pela metade. Se a soberania pertence ao povo, como diz a Lei Superior, é correto seja exercitada por autênticos representantes do próprio povo, sem se excluir a possibilidade de concorrerem empresários, proprietários rurais, técnicos, profissionais liberais e políticos profissionais. A Constituição do Império (clique aqui) não era democrática, porque negava o direito de voto a criados de servir, religiosos, àqueles cuja renda anual fosse inferior a cem mil réis e, naturalmente, aos escravos. Sob o regime da Constituição de 1891 (clique aqui), embora o mesmo direito não estivesse reservado expressamente aos varões, a lei eleitoral jamais o deferiu às mulheres.

A Constituição em vigor é a mais aberta entre todas que já conhecemos. Confere a prerrogativa do alistamento eleitoral a maiores de 16 e analfabetos, embora não possam ser votados. Dentro dessa linha de pensamento, não vejo motivos para as restrições que ouço ao candidato a deputado federal apelidado Tiririca, e outros acusados de despreparo para a cumprimento de mandato popular. Ruy Barbosa dizia: "Se o povo é analfabeto, só os ignorantes estarão em termos de o governar. Nação de analfabetos, governo de analfabetos".

No cumprimento do mandamento constitucional, compete aos partidos redigir o programa, eleger os dirigentes, e proceder à escolha dos candidatos. À grande massa popular resta votar. Assim como ocorre em relação às decisões judiciais, também os resultados eleitorais não se discutem, cumprem-se. Ou, então, retrocedemos ao regime militar, quando o presidente da República era designado pelo antecessor, de acordo com o número de estrelas na platina da farda.

O Brasil evoluiu no processo de construção do regime democrático. Dentro dele, em nome da soberania política popular, as escolhas são diversificadas, como mostram experiências anteriores a 64 e posteriores a 85. Resta-nos perseverar no caminho apontado pelo Preâmbulo da Constituição. Dentro dele, não há como evitar a eleição de quadrilheiros, estelionatários, sonegadores, picaretas e carreiristas. Os resultados, afinal, dependem dos eleitores.

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*Advogado; foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho






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