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A revogação tácita dos artigos 30 e 31 da lei do colarinho branco em razão da alteração legislativa promovida pela lei 12.403/11

O autor debate o fato da magnitude da lesão não ser fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Atualizado em 4 de agosto de 2011 13:32

A revogação tácita dos artigos 30 e 31 da lei do colarinho branco em razão da alteração legislativa promovida pela lei 12.403/11

Ricardo Henrique Araújo Pinheiro*

Recentemente publicamos um artigo no qual criticamos veementemente a falha legislativa advinda da publicação equivocada introduzida pela lei 12.403/11 (clique aqui) no parágrafo primeiro do artigo 313 do Código de Processo Penal1 (clique aqui). Em síntese, afirmamos no citado artigo que em decorrência das alterações em alguns dispositivos do CPP, a prisão preventiva só poderá ser decretada nas seguintes hipóteses - e caso haja o descumprimento injustificado de eventual obrigação cautelar imposta diferente da prisão (caráter secundário): a) crimes dolosos; b) pena máxima do delito igual ou superior a cinco anos; c) juridicamente reincidente. A nosso juízo as demais possibilidades elencadas na citada lei, quando aplicadas de forma primária, são ilegais.

Com isso, acreditamos que a prisão preventiva só poderá ser decretada quando descumprida injustificadamente a eventual obrigação cautelar diversa da prisão anteriormente deferida. Para que a discussão não se estenda, ficaremos atrelados ao objeto deste estudo - que são os artigos 302 e 313 da lei 7.492/86 (clique aqui), também conhecida como lei do colarinho branco.

Não há dúvidas de que a cláusula "sem prejuízo do disposto no Código de Processo Penal" (art. 30 da lei 7.492/86) leva o intérprete a analisar o contexto da forma como melhor lhe favoreça, de modo que a referida expressão poderá ser interpretada conforme a oportunidade e a conveniência do julgador, para que a "magnitude da lesão causada" possa fundamentar a eventual decretação da prisão preventiva, e agirá como razão autônoma para a prisão preventiva, o que estará fundamentada como um dos requisitos do artigo 312 do CPP (garantia da ordem pública).

No presente estudo a expressão "magnitude da lesão" seguirá a interpretação da evolução jurisprudencial atinente à lei 7.492/86. Não nos vincularemos à "magnitude da lesão" interpretada em outras espécies de delitos, dentre os quais os delitos contra a ordem tributária que também não admite a privação da liberdade com base na magnitude da infração, sem que outros elementos concretos e atuais possam fundamentar a privação da liberdade4.

Evolução jurisprudencial

No dia 13 de junho de 2001, ocorreu o emblemático julgamento do HC 80717 (clique aqui), cuja relatoria para acórdão foi conferida à ministra GRACIE. Por maioria de votos, o Pleno do STF acompanhou o voto divergente da ministra GRACIE para, no mérito, indeferir a revogação da prisão preventiva do agente envolvido em suposta fraude praticada no TRT da 2ª Região. Ressaltou-se, no voto vencedor, que apesar de a "magnitude da lesão" não ser considerada razão autônoma para a decretação da preventiva, deve ser considerada, quando presentes os pressupostos que a autorizam, interpretando-se a garantia da ordem pública como magnitude da lesão patrimonial5.

Apesar de ter sido apertado o placar do referido julgamento para que fosse indeferida a ordem6, muitas interpretações favoráveis ao decreto de prisão preventiva, com respaldo exclusivo no artigo 30 da lei 7.492/86 foram disseminadas pelo país.

No dia 17 de dezembro de 2002, o STJ, ao julgar o HC 24798 (clique aqui), cuja Relatoria foi conferida ao ministro FISCHER, manteve a ordem de prisão cautelar de agente acusado de obter fraudulentamente empréstimo junto ao Banco do Brasil. Prevaleceu à interpretação assentada no julgamento do HC 80717/STF, cuja fundamentação dada pelo ministro FISCHER seguiu o mesmo entendimento da ministra GRACIE, ressaltando-se que: "E, noutra oportunidade, o Pleno da Corte Excelsa entendeu legítima a prisão cautelar de autor de crime contra o sistema financeiro, ainda que fundamentada unicamente na magnitude da lesão7".

Conforme afirmamos anteriormente, foi apertado o placar no julgamento do HC 80717. Aliás, o voto vencido exarado pelo, à época, ministro PERTENCE é, a nosso juízo, o que mais se compatibiliza com as características da prisão cautelar. Afirmou-se que não se pode presumir violação a ordem pública pela análise da magnitude da lesão patrimonial, sob pena de tornar inconstitucional a norma8. Disse ainda que a presunção de culpa pela lesão fere o normativo constitucional de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória9. E arrematou a sua brilhante exposição arguindo que a "magnitude da lesão" não pode constituir razão autônoma para justificar o decreto de prisão preventiva, pois haverá inserção de norma não prevista no Código de Processo Penal10.

Com a chegada do mMinistro MENDES à Corte Constitucional (20/6/2002) muitos paradigmas foram superados, de modo que interpretações vencidas no julgamento do HC 80717/STF ressurgiram como forma enigmática e, para muitos, contrárias ao povo brasileiro. Surge a nova era da aplicação dos direitos e garantias individuais. A técnica na interpretação da norma que trata sobre privação de liberdade começa a ganhar espaço entre aqueles que criticavam o garantismo penal.

A máxima de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória - brilhantemente interpretada pelo à época ministro PERTENCE naquele emblemático julgamento - pôde, enfim, ser ratificada pelo ministro MENDES no dia 13 de dezembro de 2005, quando do julgamento do HC 85615 (clique aqui). Concedeu-se a ordem de habeas corpus ao agente acusado de gerir fraudulentamente instituição financeira (art. 4º da lei 7.492/86), reafirmando-se que a magnitude da lesão provocada não pode ser sucedâneo autônomo para embasar o decreto prisional, rechaçando-se o decreto de prisão preventiva motivada com base na garantia da ordem econômica11.

Entrelinhas, o que foi decidido no HC 85615/STF foi tão forte e positivo para a quebra de paradigmas, que o próprio ministro FISCHER, em 12 de setembro de 2006, alterou o seu posicionamento para "declarar inconstitucional" a razão autônoma do artigo 30 da lei 7.492/86, de modo que passou a exigir a concomitância dos requisitos do artigo 312 do CPP para que a prisão preventiva fosse decretada como garantia da ordem pública ou econômica: "A três, porque o art. 30 da lei 7.492/86, ao mencionar a magnitude da lesão supostamente causada pela prática, em tese, criminosa, não dispensa, para a imposição da custódia cautelar, os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal12". Aliás, Sua Excelência ministro FISCHER fundamentou a alteração de seu posicionamento com base no HC 85615/STF.

A evolução história da interpretação do artigo 30 da lei 7492/86 demonstra uma manifesta quebra de paradigmas. Se quando do julgamento do HC 80717/STF havia uma corrente com formação ideológica para a interpretação da norma constitucional com vista a exigir a prisão como forma de resposta imediata à sociedade, hoje não há. Aos que criticam o posicionamento hermenêutico e garantista inicialmente sustentado pelo então ministro PERTENCE, e agora confirmado por grandes julgadores, chegou o momento de refletir sobre a falência do instituto da condenação antecipada.

Apesar de criticarmos o texto legislativo insculpido na lei 12.403/11, não há dúvidas de que o legislador tem se preocupado em racionalizar o instituto da prisão, de modo a resguardar a satisfação final do processo. Evoluir significa quebrar paradigmas e aprimorar normas. Nesse passo, as novidades introduzidas pela citada lei 12.403/11 reforçaram a tese daquele voto vencido proferido pelo então ministro PERTENCE (HC 80717) ao exigir fundamentação idônea e dogmática, ou seja, com respaldo na letra da referida lei, que exige: a) o descumprimento injustificado de obrigação cautelar anteriormente decretada pelo juiz (caráter secundário); b) que a pena máxima do delito seja igual ou superior a cinco anos; c) que o agente seja juridicamente reincidente.

Portanto, se desde o julgamento do HC 85615/STF ratificou-se a quebra de paradigma inicialmente arguida pelo voto vencido do ministro PERTENCE no julgamento do HC 80717, proibindo-se a decretação da prisão preventiva com respaldo na razão autônoma da "magnitude da lesão" (art. 30 da lei 7.492/86), com o advento da lei 12.403/11 - que transformou a prisão processual em caráter subsidiário, e passou a exigir o descumprimento injustificado de norma cautelar anteriormente decretada para que o julgador pudesse motivar o decreto de prisão preventiva - acreditamos que o citado artigo 30 da lei 7.492/86, além de apresentar manifesta inconstitucionalidade superveniente, está tacitamente revogado.

Se de um lado a "magnitude da lesão" não pode ser interpretada como razão autônoma para a prisão preventiva, de outro, a evolução jurisprudencial demonstra que o referido artigo 30 é norma "morta", na medida em que deverá ser interpretado em conformidade com o artigo 312 do CPP - que até o advento da lei 12.403/11 era visto como norma autônoma e que impossibilitava o julgador de aplicar medida diversa da prisão (ou decretava a prisão preventiva ou não). Aliás, se antes da publicação da lei 12.403/11 já se questionava a constitucionalidade do artigo 30 da lei 7.492/86, agora não há dúvidas de que o referido artigo 30 não tem aplicação prática, porquanto deverá ser interpretado em conformidade com o disposto na lei 12.403/11, de modo que a "magnitude da lesão" não será fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva.

Aliás, se antes da publicação da lei 12.403/11 o artigo 3113 da lei 7.492/86 era "letra morta", pois o próprio artigo 324, IV do Código de Processo Penal14 impedia a concessão de fiança quando presentes os requisitos que autorizavam a prisão preventiva, com o advento daquela lei, à concessão de fiança passou a ser tratada como "obrigação" do julgador, tornando inaplicável a letra do artigo 31 da lei 7.492/86, pois, agora, a prisão preventiva é tratada como meio secundário na instrução, de modo que a concessão de fiança - por ser medida diversa da prisão (art. 319, VIII do CPP15) - deverá ser utilizada como meio de cautela inaugural pelo julgador, ou seja, deverá ser arbitrada antes da eventual decretação da prisão preventiva, nos termos do artigo 282, § 6º do CPP: "A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)."

Igualmente, é despiciendo anotar (mas não menos importante) a incompatibilidade da cláusula prevista no mesmo artigo 31 da lei 7.492/86 "nem apelar antes de recolhido à prisão". Primeiro, porque se o agente permaneceu solto durante a instrução criminal, não estão presentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva. Segundo, porque a apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo (art. 597 do CPP16). Portanto, o fato de se tratar de crime contra o Sistema Financeiro não é requisito automático para que o encarceramento do agente que permaneceu solto durante a instrução criminal, porquanto ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII do CF).

As considerações que fizemos - longe de serem as melhores e as mais corretas - podem levar ao leitor informações preciosas a respeito da evolução jurisprudencial e dogmática que aconteceram na última década. Não temos dúvidas de que o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da aplicabilidade e manutenção do instituto da prisão processual mudou e continuará mudando. Apenas três ministros (GRACIE, MARCO AURÉLIO E MELLO) que participaram daquele julgamento emblemático que reiteradamente nos referimos neste artigo (HC 80717) continuam na Corte Constitucional. Uma coisa é certa: o instituto da prisão processual nunca será o mesmo (para o bem ou para o mal) após a publicação da lei 12.403/11.

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1 "Mais uma falha legislativa na tentativa desesperada de retificar o Código de Processo Penal. Análise feita à luz da lei 12.403/11" (disponível em www.araujopinheiro.com.br)

2 Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada (VETADO).

3 Art. 31. Nos crimes previstos nesta lei e punidos com pena de reclusão, o réu não poderá prestar fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, ainda que primário e de bons antecedentes, se estiver configurada situação que autoriza a prisão preventiva.

4 No julgamento do HC 86620, Relator Ministro Eros Grau, foi deferida a ordem de habeas corpus para que fosse revogada a prisão preventiva do agente acusado de crime contra a ordem tributária, decretada com base na magnitude da infração.

5 "Esta me parece ser a leitura adequada da cláusula "sem prejuízo do disposto no art. 312 do CPP" inserida naquele dispositivo. Isso significa que a magnitude da lesão não é razão autônoma para decretação da preventiva, mas que essa dimensão deve ser considerada, quando presentes os pressupostos que a autorizam."

6 "Decisão: O Tribunal, por maioria, indeferiu a ordem quanto à nulidade do julgamento procedido por força do habeas corpus impetrado perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo), vencidos os Senhores Ministros Sepúlveda Pertence (Relator), Ilmar Galvão, Celso de Mello e o Presidente. E, por maioria, indeferiu o habeas corpus, relativamente à prisão preventiva, vencidos os Senhores Ministros Sepúlveda Pertence (Relator), Ilmar Galvão, Celso de Mello e o Presidente, que também ficou vencido quanto à concessão de habeas corpus de ofício, pelo excesso de prazo. Presidiu o julgamento o Senhor Ministro Marco Aurélio. Redigirá o acórdão a Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 13.6.2001."

7 No julgamento do HC 24798, Relator Ministro Felix Fischer, 5ª Turma do STJ, declarou-se legítima a prisão cautelar do agente que supostamente havia cometido crime contra o sistema financeiro nacional, unicamente, em razão da magnitude da lesão.

8 "se se cuida de estabelecer uma presunção absoluta de abalo da ordem pública pela só magnitude da lesão patrimonial alegadamente resultante do crime, a sua inconstitucionalidade é chapada"

9 Uma tal presunção teria por pressuposto lógico a afirmação de responsabilidade do acusado pela lesão acarretada, o que obviamente é repelido pela consagração constitucional da garantia de que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 5º, LVII)"

10 "A cláusula "sem prejuízo do disposto no art. 312 do C.Pr. Pen., se pode emprestar, no contexto, o significado de que a magnitude da lesão passa a constituir uma razão autônoma para a prisão preventiva, além das previstas no preceito referido no Código - hipótese em que a terá revogado a constituição, por inconstitucionalidade superveniente."

11 "Com relação à garantia da ordem econômica, observa-se que, diferentemente do entendimento firmado por este Tribunal no precedente referido (HC nº. 80.717-SP), a magnitude da lesão provocada foi invocada no decreto prisional como elemento autônomo para a custódia cautelar. Assim, de igual modo, não vislumbro fundamentação idônea da decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem econômica"

12 Recurso Especial 772504/PR, Relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça.

13 Art. 31. Nos crimes previstos nesta lei e punidos com pena de reclusão, o réu não poderá prestar fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, ainda que primário e de bons antecedentes, se estiver configurada situação que autoriza a prisão preventiva.

14 Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança:

IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).

15 Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

VIII - fiança, nas infrações que admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial.

16 Art. 597. A apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo, salvo o disposto no art. 393, a aplicação provisória de interdição de direitos e de medidas de segurança (arts. 374 e 378), e o caso de suspensão condicional da pena.

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*Sócio do escritório Araújo Pinheiro Advocacia Criminal

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