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Pela manutenção do injustificável

Veja o conflito de aptidão existente entre a Anvisa e o INPI no que se refere à concessão de patentes de medicamentos.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Atualizado em 31 de agosto de 2011 10:48

Marcos Lobo de Freitas Levy

Pela manutenção do injustificável

Em longa entrevista concedida à Revista do IDEC neste mês de agosto, o Dr. Luis Carlos Wanderley Lima, ex-coordenador da Coordenação de Propriedade Intelectual da ANVISA, em tom de lamento, critica o corretíssimo parecer da Advocacia Geral da União que confirmou o que já estava bastante claro na legislação vigente, ou seja, que a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem competência, como definida na lei que a criou, para avaliar a segurança e a eficácia dos medicamentos e que não deve interferir na área de atuação do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) cuja competência, como definida em lei é, examinar pedidos de registros de direitos de propriedade industrial concedendo-os ou não.

A função/competência da ANVISA está devidamente circunscrita no conteúdo da lei 9.782/99 (clique aqui) que a criou e determinou sua competência, e claramente dispõe que a referida agência tem como finalidade a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de medicamentos entre outros produtos, como, por exemplo, alimentos.

Já a função/competência do INPI, conforme definido pela lei 9.279/96 (clique aqui) é executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial (como marcas e patentes), tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica.

Como se vê não deveria haver sequer motivo para esta discussão. A ANVISA não tem competência para fazer revisão de pedidos de patentes e, muito menos, para dar anuência prévia para qualquer ato do INPI.

Que não se diga que a revisão dos pedidos de patentes pela ANVISA serviria para certificar a segurança e a eficácia dos medicamentos. Esta função, que a ANVISA de fato tem continua vigente e, a ANVISA poderá, como sempre pode, e de fato exerceu, o poder de negar registro (impedindo a comercialização) de produtos farmacêuticos que não demonstrem no seu processo de registro sanitário que são, de fato, seguros e eficazes como admitido textualmente pelo entrevistado.

Em sua entrevista o Dr. Lima procura, como sempre fez, denegrir, à sorrelfa, a imagem do INPI dizendo que este concederia patentes em flagrante descumprimento à lei e que não tem competência para exercer suas funções. Acusação extremamente séria. Entretanto, ainda que fosse este o caso (e não é) não se justifica, por nenhum ângulo sob o qual se olhe para a questão, a transformação da ANVISA em polícia ou Tribunal "Ad Hoc" do INPI ou em extensão do Judiciário, este sim o órgão competente para examinar e julgar alegações de violações à legislação vigente.

Na entrevista o Dr. Lima diz, por exemplo, que: "pela lei brasileira, quando a concessão (de uma patente) é dada, tem-se 20 anos para explorar a invenção no mercado, sem concorrência." De fato, é isso que a lei diz; não só a lei brasileira, mas todas as leis de propriedade industrial dos países signatários da Convenção de Paris conforme alteração incluída pelo acordo do TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) negociado na Rodada Uruguai do GATT. O Brasil não concede mais ou menos tempo de validade a uma patente do que os demais signatários do TRIPS.

Embora mencione que o prazo de validade da patente se conta da data do depósito, a entrevista deixa transparecer que os medicamentos poderiam se beneficiar de um prazo de exclusividade de 20 anos. É preciso deixar claro que isto não acontece e a razão, longe de ser a demora do INPI em conceder a patente, nos caso dos medicamentos também se dá por outras razões como o tempo de pesquisa, teste e aprovação para comercialização de um medicamento. Além disso, a exclusividade neste mercado é bastante relativa. Explico:

(a) Porque há o transcurso de um prazo médio de 10 anos entre a data do depósito do pedido da patente e a data em que a indústria recebe autorização (das agências reguladoras da área farmacêutica) para colocar o produto no mercado por causa do tempo de pesquisa e desenvolvimento para transformação de uma molécula virtual em uma física e para a realização dos testes (fase I, II e III) necessários para submeter um produto a registro; e

(b) Porque a patente de produto farmacêutico é concedida a uma determinada substância ativa (e.g. rosuvastatina, sinvastatina, tadalafil, sidenafil, losartano, valsartano, celecoxib, etoricoxib, etc.) para tratamento de uma determinada doença e esta substância, eventualmente patenteada terá, salvo raríssimas exceções, exclusividade relativa já que terá de competir com diversos outros produtos para a mesma finalidade - alguns genéricos, outros similares e outros também patenteados.

De fato, como diz o Dr. Lima, em termos simples para a concessão de uma patente, é necessário que um produto cumpra três requisitos: (i) Novidade, (ii) Atividade Inventiva e (iii) Aplicação Industrial. Cumpridos os requisitos o inventor tem direito a uma patente. Para qualquer tipo de produto.

A entrevista sugere que medicamentos por serem diferentes, por exemplo, de "pão", devem ser tratados de forma diferente quando forem examinados seus pedidos de patente. Esta discriminação é absolutamente ilegal e não tem nenhuma sustentação legal.

O entrevistado chega a justificar a manutenção da revisão de patentes pela ANVISA dizendo que: "A ANVISA examina o projeto inteiro. Ela só não examina questões burocráticas, por exemplo, se o pedido foi depositado em cinco vias, se a taxa foi paga etc. Isso é o INPI que vê... Nós vemos se todas as informações estão ali e também consultamos bancos de dados mundiais e artigos científicos para saber se alguém já fez aquele pedido. O INPI não se preocupa com isso... não estamos dizendo que as patentes merecidas não serão concedidas, apenas as que forem ilegais." Ou seja, o INPI está sendo acusado de conceder patentes ilegais. A acusação, como já dito acima, é extremamente séria. Ainda assim, se for este mesmo o caso, quem deve decidir se são ou não ilegais, é o JUDICIÁRIO e não a ANVISA.

Admitamos por um momento, apenas para argumentar, que o alegado pelo Dr. Lima é verdade. Então, o que se deve fazer é treinar e aparelhar devidamente o INPI para que este cumpra suas funções a contento e não criar um inexplicável e caro "bis-in-idem" sustentado pelo combalido contribuinte brasileiro.

Não é possível entender porque a ANVISA despende seus recursos, cuja exiguidade vive a reclamar, na manutenção de uma equipe de técnicos para revisar trabalho de competência de outro órgão do governo ao invés de aplicá-lo na sua função específica, que é a Vigilância Sanitária?

É interessante notar que mesmo doutrinadores renomados, cuja cultura jurídica é indiscutível, procuraram defender a odiosa, insustentável e originalíssima "anuência prévia".

Ora, o fato é que o instituto retirou sim competência originária do INPI que não podia conceder determinadas patentes sem o consentimento de outro órgão do governo. O argumento, muitas vezes usado, de que as patentes, de todo modo, continuavam a ser concedidas pelo INPI é mero jogo de palavras. Afinal, a competência que o INPI tinha para praticar determinado ato passa a depender da concordância de terceiro (que nem é mencionado na lei de propriedade industrial nem tem competência legal para isso); portanto, é inegável que esta competência foi retirada do INPI.

Mesmo que se aceite o argumento de que o INPI precisava de técnicos com formação específica para a análise de determinados processos, estes deveriam ter sido contratados pelo próprio INPI e não empurrados "goela abaixo" e subordinados a outro órgão cuja competência e finalidade é totalmente outra.

Tentar explicar por meio de exercícios semânticos que o legislador pretendeu ou não fazer, não importa. Mais uma vez o fato é que foi sim criado um segundo procedimento de análise que tinha total poder de veto sobre o resultado da primeira análise. Se isto não é usurpação de competência então não sei o que é.

Aliás, não podemos nos esquecer que o "legislador", neste caso, foi o próprio Poder Executivo que editou a MP 2006/99 (clique aqui) depois transformada na lei 10.196/01 (clique aqui). Basta ler o conteúdo da Medida Provisória para ver que seu conteúdo passa longe, como acontece com frequência, dos requisitos constitucionais de admissibilidade de edição de Medidas Provisórias dispostos no artigo 62 da Constituição Federal (clique aqui).

Repetindo, porque nunca é demais, se a anuência prévia foi criada porque o INPI concedia patentes indevidas, portanto ilegais, seria melhor extinguir o instituto e começar tudo de novo.

O fato é que, como facilmente verificável pelo que se lê, vê e ouve na mídia, as questões referentes à indústria de medicamentos são tratadas com uma carga de emoção muitas vezes superior à de razão, o que leva à conclusão, nunca bem fundamentada, de que todo tipo de controle que se puder exercer sobre este tipo de indústria sempre será bom. A história tem demonstrado que isto, não só não é verdade, como pode ter efeitos funestos em longo prazo.

Ao final da entrevista, o entrevistado diz que com a falta de anuência prévia haverá menos concorrência e preços mais altos, pois quando as patentes não são concedidas se abre o campo para a introdução de genéricos. Esta alegação deixa transparecer o real motivo da existência da anuência prévia. O fato é que as algumas autoridades brasileiras da área da saúde e algumas empresas nacionais nunca se conformaram com a concessão de patentes para medicamentos.

Nunca é demais lembrar que o Brasil não reconheceu patentes de medicamento de 1945 até 1996 - cinquenta e um anos - e não reconheceu patentes de processos de fabricação de medicamentos de 1969 até 1996 - vinte e oito anos. Neste tempo todo, nem a indústria nacional, nem o governo se dedicaram como deveriam a criar uma indústria nacional de pesquisa e desenvolvimento. Hoje, o Brasil tem uma indústria de base, na área farmacêutica, menor e muito menos ativa que as da Índia e da China, apenas para citar dois exemplos de países que hoje, também respeitam as patentes de medicamentos.

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*Marcos Lobo de Freitas Levy é sócio do escritório A. Lopes Muniz Advogados Associados

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