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A ONU e o Judiciário

A cultura administrativa e empresarial do Judiciário, como um todo, causa danos à imagem e ao bom rendimento dos serviços judiciários.

sexta-feira, 29 de julho de 2005

Atualizado em 13 de julho de 2005 08:51

A ONU e o Judiciário


Antonio Pessoa Cardoso*

A cultura administrativa e empresarial do Judiciário, como um todo, causa danos à imagem e ao bom rendimento dos serviços judiciários. Os novos tempos, a alta tecnologia, reclamam adaptação do sistema a uma nova era, alicerçada em estrutura empresarial moderna com estratégia de produção, de custos, de rentabilidade e de agilidade nas decisões.

A estatística faz parte de qualquer atividade e, na área judiciária serve para mostrar ao juiz e ao jurisdicionado o nível da produtividade desenvolvida. Os números, entretanto, não podem nem devem constituir-se em referência única a ser enfrentada tal como a empresa privada, cujo horizonte maior está na busca do lucro, diferentemente dos serviços judiciários que objetiva fortificar a democracia, proporcionar efetividade da justiça e garantir os direitos do cidadão.

Os números mostrados recentemente pelo STF apontam realidades incompatíveis, por exemplo, quando trata do comparativo entre o rendimento da justiça de primeiro e segundo grau. É que os juizes de primeira instância, aqueles que recebem as peças iniciais da ação, trabalham na confecção dos autos do processo, recebendo petições, documentos, fazendo audiências para ouvir testemunhas, ouvir as partes, debates orais entre os advogados e realizando perícias; enquanto o juiz de segunda instância (desembargadores), fundamentalmente, dedica sua atividade ao reexame do que foi feito nos fóruns. Assim, a medição do trabalho de uma e outra instância não pode ser efetivada somente pela comparação entre o trabalho produzido por um e outro setor.

O mesmo raciocínio aplica-se para o confronto numérico divulgado recentemente sobre a produtividade dos estados e dos países. O número de juizes, a realidade, a cultura, a litigiosidade não foram consideradas para a "mostra". As conclusões "abalizadas" da ONU, que concluiu ótima a média de sete juizes para cada 100 mil habitantes, sem observar as particularidades de cada país, inserem-se no erro de buscar qualidade sustentada na quantidade.

É artesanal a estrutura do sistema judiciário brasileiro e enquanto não se promover profundas alterações, nenhuma reforma (e quantas já foram feitas e quantas anunciadas!) resolverá o problema que é fundamentalmente do povo e dos julgadores.

Aponta-se o número de juizes no país, 13.474, média de 7,62 por 100 mil habitantes, e considera-se suficiente para a necessidade dos que clamam por justiça, atribuindo aos magistrados a culpa pela lerdeza dos serviços.

É hilariante anotar que 7,62 juizes, no Brasil, são o bastante, tão quanto na França, na Alemanha, na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Será que a litigiosidade nestes paises aproxima-se da que se verifica no Brasil? Nem se fala da substancial ajuda prestada pelos advogados e promotores nos julgamentos dos "casos" nos Estados Unidos, a ponto de apenas um décimo das demandas de natureza cível ser apreciada pelos tribunais, face ao acordo prévio (settlement) e a desistência da promotoria da ação penal ser reduzida em 90% as causas criminais, em virtude da confissão de culpa do réu (plea bargaining). Conta-se ainda a obrigatoriedade de os advogados apresentarem memoriais com no máximo vinte páginas, (EE. UU), prática não exercitada no Brasil, onde os profissionais trazem petições com 50, 100 ou mais folhas, criando dificuldades para o juiz que se obriga a ler todo o trabalho que poderia ser limitado em número de páginas, sem causar dano algum às partes. Adiciona-se a relevância dos serviços prestados pelos juizes leigos, pelos árbitros, pelos conciliadores, pelos mediadores, pelos juizes de paz nos paises desenvolvidos e compare-se com a inexistência dessas alternativas no Brasil, apesar de matérias tratadas pela Constituição brasileira, mas letra morta no dia-a-dia dos fóruns.

Na França o número de juizes leigos é mais do que o dobro do número de juizes de ordem judiciária e administrativa.

Será que a ONU não observa o número de causas resolvidas numa e noutra parte do mundo? Cada um dos 33 ministros do STJ julgou em 2004 em torno de 7.300 processos, no total de 240 mil demandas; no STF foram mais de 100 mil. Cada juiz brasileiro solucionou, em média, no ano de 2003, 8.621 processos, mais de cem vezes superior ao número de julgamentos de cada ministro da Corte americana.

As cifras nacionais, em termos de litigiosidade, não é a realidade de outros paises. Imagine-se que somente no ano de 2003 deu-se entrada nos balcões judiciários a 17.495 milhões ações. Na Europa e nos Estados Unidos a média de processo/ano é insignificante em relação ao que ocorre no Brasil.

A Suprema Corte americana resolve aproximadamente 100 ações por ano, implicando na média de 11 causas por cada ministro.

A Corte de Cassação, na França, também denominada de Corte Suprema, tem fundamentalmente como função zelar pela aplicação uniforme do direito em todo o País; no ano de 2003, recebeu nas áreas cível e criminal um total de 29.681 processos.

Outros números que não foram publicados, mas que espelham a realidade nacional: em 1990 um em cada 40 brasileiros procurava a Justiça; em 1998 este número passou para um a cada 21 brasileiros e no ano de 2003, considerando a população de 180 milhões de habitantes, um em cada 10 brasileiros procura a Justiça.

Há evidente descontrole e exagero no crescimento pela busca dos serviços judiciários, sem correspondente aumento do número de juizes, dos recursos disponíveis e da estrutura judiciária incompatível com as necessidades. Esta progressão de demanda sem melhoramento do sistema não condiz com a condição humana e não se sustenta com os comparativos mostrados pelo órgão internacional. Há uma judicialização que não produz riqueza, indústria nem empregos; um gerenciamento de conflitos exigindo mais tempo do que na produção e no investimento.

Para azedar ainda mais a situação do judiciário perante o povo, revista semanal noticiou que, no Brasil, leva-se a média de doze anos para julgar uma causa e nos Estados Unidos demora-se apenas quatro meses. Não é verdadeira a informação, pois a morosidade do judiciário não é praga nacional. Nos Estados Unidos, somente na primeira instância, demanda em média, três a cinco anos para a conclusão de um processo; na Itália entre 1991 a 1997 a duração média era de 4 anos; na Alemanha demora-se dois anos para solução definitiva; na Espanha, cinco anos e três meses. (Acesso à Justiça, Mauro Cappelletti e Bryant Garth).

Falta-nos estatísticas precisas sobre a real duração dos processos no Brasil, mas chegou-se à conclusão de que em média, 62% das demandas foram resolvidas em definitivo no prazo de dois anos. (Duração dos Processos: Discurso e Realidade - DO. Rio de Janeiro 20/11/90, 3ª parte - Desembargadores José Carlos Barbosa Moreira e Felipe Augusto de Miranda Rosa).

Ademais, não se explica que a informática está começando a ser usada no judiciário brasileiro, enquanto nos países anunciados pela ONU já se trabalha com processos virtuais; não se anuncia que ainda trabalhamos com a velha máquina de escrever; esconde que ainda utilizamos a agulha, o cordão, o carimbo como instrumentos essenciais para fazer funcionar a máquina judicial, peças decorativas na Europa; não se esclarece que na Alemanha assume fundamental relevância o cargo de assessor do juiz, aqui dispensável; a justiça administrativa, na França, mesclada de juristas e administradores, julga todos os litígios envolvendo o particular e a administração, enquanto no Brasil a administração é quem mais traz casos para serem julgados por magistrados sem especialidade na área; enquanto aqui o juiz profere todos os despachos do processo, seja administrativo ou judicial, o julgador dos países desenvolvidos tem como tarefa o julgamento, porque a administração é exercida por outros profissionais.

É estarrecedor, mas é verdade: um processo pode ficar parado dias, meses ou anos somente na dependência de um despacho, desnecessário, do juiz, porque a diligência poderia ser cumprida pelo serventuário, sem necessidade de pronunciamento judicial: "Ao Ministério Público", ou "À parte", ou "Ao Contador para cálculos".

Que dizer da acumulação de funções? No Brasil, além da justiça comum, o julgador trabalha no eleitoral, como administrador do fórum, como corregedor, etc. Nem se fala da diversidade no que se refere à área territorial, dificultando a movimentação e deslocamento dos julgadores, bem diferente da situação dos países europeus, onde a ONU considerou o número de 7 juízes suficiente para dá conta de uma população de 100 mil habitantes. Inúmeras outras motivações diferenciadoras de um e outro sistema poderiam ser alinhadas aqui.

Registre-se ainda o respeito ao Judiciário, a obediência à lei e às decisões judiciais em prática na Europa e nos países desenvolvidos, realidade diversa no Brasil. Aliás, como se disse, o descaso com a lei e com as decisões judiciais começa pelo próprio governo que usa e abusa do Judiciário para negar os direitos conferidos ao cidadão.

O jurisdicionado sabe que as alterações nas leis não são matérias de atribuição do próprio Judiciário, mas assunto de exclusiva competência do Legislativo. De forma que o Judiciário trabalha com os instrumentos que lhe são fornecidos pelo Legislativo. A dependência não se situa somente aí, porquanto também os recursos para administrar o funcionamento dos serviços judiciários são disponibilizados pelo Executivo. Portanto, o Judiciário se movimenta com a estrutura colocada à sua disposição pelo Legislativo e pelo Executivo.

Os operadores do direito, os juristas em uníssono anotam crassos defeitos nos códigos e em quase todas as leis, mas o Judiciário não pode modificá-las e tem de trabalhar e usar o instrumental imperfeito. É o caso do processo de execução, (ganha mais não leva), é o caso dos inúmeros recursos disponíveis para o vencido; se houver omissão, ou seja, se não foi editada lei para o tema, ainda assim, o juiz não pode deixar de decidir.

O Código de Processo Civil de 1939 e o atual foram apontados como maiores causadores da morosidade da justiça, mas mesmo assim continuam impávidos, servindo à desafinada orquestra. De nada vale o aborrecimento do maestro, pois a "música" é o pão da vida para o povo e os legisladores não se importam com a qualidade ou a quantidade dos instrumentos, seja porque não estão diretamente envolvidos no recital, seja porque não acreditam nos reclamos populares ou ainda porque matéria que constitui discurso eleitoreiro na busca pelo poder.

A comparação numérica que deve e pode ser feita está no nosso meio, não podendo ser usadas as realidades diversas.

Vejamos os orçamentos disponibilizados para os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. No ano de 2003, foram reservados para o Executivo 248 bilhões, 539 milhões, 389 mil e 115 reais, 94,99%; para o Legislativo, 3 bilhões, 330 milhões, 33 mil e 74 reais, percentual de 1,27% e para o Judiciário 9 bilhões, 776 milhões, 45 mil e 615 reais, 3,74%.

O Judiciário foi contemplado com o percentual de 3,74% do orçamento da União para administrar os prédios dos Tribunais Superiores nos Estados, dos Tribunais Regionais Federais, do Conselho de Justiça Federal, dos Tribunais Regionais Eleitorais, Regionais do Trabalho nos 26 estados e no Distrito Federal, além da Justiça Militar e toda a Federal no interior e nas capitais. Se trazidos os orçamentos do Judiciário estadual a realidade não será diferente.

O Legislativo recebeu 1,27% do mesmo orçamento da União apenas, três vezes menos que o Judiciário, para administrar despesas nos prédios da Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no Tribunal de Contas da União, todos eles localizados em Brasília.

Enquanto o Judiciário conta com 13.474 juizes, mais de vinte e duas vezes os 594 membros da Câmara e do Senado, (513 deputados federais e 81 senadores), mesmo assim o Legislativo é contemplado com recursos apenas três vezes inferior ao que é destinado ao Judiciário.
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*Juiz em Salvador






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