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Fiança: pagar ou não pagar? Eis a questão

A partir de um exemplo fictício, o promotor de Justiça indaga o que é melhor: pagar a fiança arbitrada ou, mesmo com condições, recusar-se a fazê-lo.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Atualizado em 7 de novembro de 2011 15:01

Renato Marcão

Fiança: pagar ou não pagar? Eis a questão

Como é natural que ocorra, sempre que nova lei é lançada no ordenamento jurídico é preciso deitar reflexões sobre velhos e novos institutos alcançados por tal regramento.

Por aqui, faremos breves considerações sobre a fiança, e a questão especialmente estudada, como o título do ensaio anuncia, busca avaliar as variantes que decorrem do seguinte questionamento: Pagar ou não pagar a fiança arbitrada?

Pois bem.

Com advento da lei 12.403/11 (clique aqui) foram ampliados os casos de cabimento de fiança, observada a redação atual dos arts. 323 e 324 do CPP (clique aqui).

Por aqui estamos nos referindo à fiança liberadora ou libertadora, aquela contracautela que se presta a restituir à vida livre quem fora preso em flagrante delito (art. 302 do CPP), quando presentes os requisitos legais para seu arbitramento, até porque, ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5, LXVI, CF - clique aqui). Não estamos tratando, ainda, da fiança regulada como medida cautelar restritiva, disposta no art. 319, VIII, do CPP, e é preciso saber que há diferença entre uma e outra, como veremos mais adiante.

Imagine-se para tanto a seguinte hipótese: "Carlos Henrique", homem de posses financeiras e elevado patrimônio material, é preso em indiscutível situação flagrante pela prática de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 do CTB). Lavrado escorreitamente o auto de prisão em flagrante a autoridade policial entende corretamente que é cabível fiança, que então é arbitrada para que, realizado o pagamento, possa o agente aguardar as investigações e eventual processo em liberdade. Ocorre que, instado, "Carlos Henrique" diz solenemente que, mesmo podendo, não irá pagar a fiança arbitrada, ainda que seu valor venha ser reduzido.

Sabendo que cópia do auto de prisão em flagrante deve ser encaminhada ao juiz competente em 24 horas após a prisão captura (art. 306, § 1º, CPP), e que a prisão por força de flagrante não pode durar mais de 24 horas à luz do disposto no art. 310 do CPP, a situação que surge faz questionar: quais as consequências jurídicas desta recusa ao pagamento/prestação da fiança liberadora/libertadora?

Vamos à análise detalhada:

Primeira opção: de relaxamento da prisão não há falar visto que na hipótese o fato é típico e indicamos ser indiscutível a situação de flagrante, sendo certo que fora lavrado escorreitamente o auto. Inaplicável, portanto, o inc. I do art. 310 do CPP.

Segunda opção: de decretação de prisão preventiva também não é caso, até porque o arbitramento da fiança era cabível na hipótese, o que revela a ausência dos requisitos da prisão preventiva. É evidente que a recusa ao pagamento da fiança arbitrada, por si, isoladamente, não faz surgir qualquer das circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva, listadas no art. 312, caput, do CPP (garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal; assegurar a aplicação da lei penal). Não é de se aplicar, na hipótese tratada, o disposto no art. 310, II, primeira parte, do CPP.

Terceira opção: conceder liberdade provisória mediante fiança (art. 310, III, primeira parte), também não é o caso, pois já fora concedida na fase policial, e o valor arbitrado não fora pago por opção do autor do delito.

Quarta opção: diante da impossibilidade de manter o agente preso por força do flagrante por mais de 24 horas, resta ao magistrado conceder liberdade provisória, sem fiança, para fazer cessar a situação de encarceramento, já que ausentes os requisitos da prisão preventiva e incogitável a decretação de prisão temporária (lei 7.960/89 - clique aqui).

Neste caso, entretanto, a liberdade provisória deve ser cumulada com cautelar(es) restritiva(s) dos arts. 319 e 320 do CPP, e para que a Justiça e o direito não sejam aviltados pela postura deliberadamente patrocinada pelo agente, a única alternativa possível parece ser cumular a liberdade provisória ao menos com a medida cautelar restritiva prevista no inciso VIII do art. 319, qual seja, a fiança.

Bem, mas o que isso muda? Para onde isso levará juridicamente a situação?

Conforme já expusemos em nosso novo livro, intitulado - Prisões cautelares, liberdade provisória e medidas cautelares restritivas (Saraiva, 2011) - é preciso ter em mente que hoje existem dois tipos de fiança: a fiança libertadora, que se presta como instituto de contracautela à prisão em flagrante, e a fiança restritiva tratada no art. 319 do CPP.

A primeira constitui direito subjetivo do agente, quando satisfeitos os requisitos legais para seu arbitramento (art. 5, LXVI, da CF); a segunda não. Não se pode dizer, sem incidir em grave equívoco, que a fiança do art. 319, VIII, do CPP, constitui direito subjetivo do agente.

É preciso reconhecer que a primeira só tem cabimento após prisão em flagrante, enquanto que a outra pode ser fixada em qualquer fase da investigação ou do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, mesmo naquelas situações em que não tenha ocorrido prisão em flagrante (art. 334 do CPP).

Disso decorrem consequências diversas, como não poderia ser de outra maneira.

No exemplo indicado para estudo, o não pagamento da fiança libertadora, arbitrada após a prisão em flagrante, não pode acarretar - por si - a decretação da prisão preventiva, mas o descumprimento injustificado da segunda - cautelar restritiva - sim, à luz do disposto no parágrafo único do art. 312 do CPP.

Como se vê, daqui retiramos ao menos três conclusões que interessam para o momento: 1ª). O não pagamento da fiança libertadora pelo agente abastado tem como consequência a concessão judicial da liberdade provisória sem fiança; 2ª) esta liberdade provisória, para ser aplicada de forma justa e adequada (proporcional, razoável, etc.), deve vir cumulada com medida(s) cautelar(es) restritiva(s), especialmente a fiança indicada no inciso VIII do art. 319; 3ª) o não pagamento injustificado desta fiança - medida cautelar restritiva - tem como consequência a decretação da prisão preventiva do agente, com fundamento no parágrafo único do art. 312 do CPP.

Outras conclusões importantes: 1ª) É cabível prisão preventiva em crime culposo; 2ª) É cabível prisão preventiva por descumprimento injustificado de cautelares restritivas, independentemente da satisfação dos requisitos do art. 313, I e II, do CPP, pois, do contrário, o sistema de cautelares pessoais cairia no ridículo, a tal ponto de restar impossível qualquer consequência jurídica àquele que deixasse solenemente de pagar a fiança fixada e também deixasse de cumprir medida cautelar restritiva fixada por ocasião da liberdade provisória concedida, como no caso examinado.

Ainda que o legislador ordinário tenha sido mais ordinário do que técnico - evidência infelizmente comum quando estamos diante de mudanças na legislação penal/processual penal, como por aqui também se vê - cabe à doutrina e à jurisprudência buscar e dar interpretações lógicas e justas, que ao menos valorizem o sistema em que se inserem as regras analisadas.

Quanto à pergunta que serve de título a este ensaio, estamos certos de que o melhor a fazer é pagar a fiança libertadora para não se expor, num segundo momento, à decretação de prisão preventiva.

Pagar/prestar é a melhor opção.

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*Renato Marcão é membro do MP/SP. Professor no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP)





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