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O sol vencerá

O cronista migalheiro, entediado com o monótono canto de um sábio, decide cuidar de uma goiabeira, árvore que atrai muitos pássaros, para ouvir cantigas diferentes.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Atualizado em 22 de novembro de 2011 10:13

Edson Vidigal

O sol vencerá

Esse chuvisco que com a cumplicidade forte das nuvens vai acinzentando o amanhecer como se as nuvens desafiassem o sol dizendo hoje ó cara nem vem que não tem, esse chuvisco que parece calibrado para durar a eternidade de infindos desassossegos como uns besouros despóticos ou abelhas mimadas que infernizam o verde das folhas e os grelos da goiabeira não alcançará sequer o corredor turvo de um convento até porque os telhados agora parecem mais resistentes à insistência das frestas.

Os sabiás se encorujam e nem cantam nada parecendo assim sumidos que nem tu se assustando com esse arremedo de eclipse nestes dias. Os sabiás das palmeiras não chateiam as manhãs com os mesmos bordões nas suas mesmas canções. No escapulir das madrugadas no interior do mato havia um sabiá indeciso no seu desassossego cantando forte como querendo se aconselhar com o Criador - o quê que eu faço, meu Deus? O quê que faço meu Deus?

Talvez aquele sabiá temesse por sua vida ao pressentir a aproximação dos humanos invadindo os seus domínios, quebrando a paz no seu reino para cortar árvores e catar as suas frutas. Agora aqui quando acontece essa acinzentação que parece não vai ter fim, essa acinzentação de agora que te assusta, ouço no irromper das manhãs outro sabiá cantando em tom de cobrança bancária - cadê a minha cerveja? Cadê a minha cerveja? É um canto que incomoda, monocórdio, que se repete num mesmo tom, uma coisa enfadonha, que não varia.

Eu cuido desta goiabeira desde quando a comprei numa beira de estrada e a trouxe tenra inspirando mil cuidados num jarro fajuto. Eu queria ouvir cantigas de outros pássaros e me haviam dito lá mais atrás que as goiabeiras, no geral, são focos de grande atração dos pássaros.

Na primeira safra de goiabas, passarinhos de vários prenomes começaram a aparecer exuberantemente livres e íntimos e saltitantes pelos galhos, bebericando na piscina, assuntando as sombras na varanda. Mas necas de cantar. Eram canoros, estavam ali alegres e bonitos que nem a Betânia marcando presença, mas nada de cantarem.

(Num fim de semana em São Luís, vi o anúncio de um show de cantoras desconhecidas em meio a único nome de grande realce - Maria Betânia. À noite na hora marcada, o teatro lotado, entraram as moças desconhecidas. Entre um intervalo e outro, o apresentador confirmava a presença da Betânia. As moças desconhecidas voltavam ao palco tímidas esbanjando talentos, até que lá para as tantas, anunciaram a Betânia, agora era para valer, expectativas, aplausos, palco sem luzes, depois um foco forte, luminoso, seguindo uma senhora quase grisalha, elegante, digna, pois não era a Betânia mesmo? O show das moças desconhecidas seguiu e nada da Betânia cantar. Com gestos simpáticos ela agradeceu os aplausos, não cantou nada mesmo e saiu de cena. Depois alguém me explicou que ela para cantar tinha que ter autorização contratual não sei de quem e essa autorização não chegara a tempo. Os passarinhos que farreiam na minha goiabeira possivelmente, talvez, também.)

Os pássaros canoros voltarão trazendo alegrias ao quintal. As moitas de alecrim e de manjericão inundarão com seus cheiros as noites no jardim. Ainda bem que as rosas brancas que a gente compra na floricultura sendo tão bonitas só exalam o perfume que roubam de ti (Cartola). Tem fé, ó mulher! Levanta-te e anda. O sol vencerá.

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*Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA


 

 

 

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