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Juizados especiais, pesadelo de justiça

As decisões judiciais proferidas nesses juizados são cada dia mais lacônicas, superficiais e produzidas em série.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Atualizado em 23 de agosto de 2012 14:43

Ultimamente, a comunidade jurídica debate muito acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Porém, existe um tema que, diariamente, aflige um número bem maior de jurisdicionados e causa problemas tão ou mais graves que aqueles decorrentes do vigente CPC: a lei 9.099/95 e os problemas decorrentes de sua aplicação. A lei referida, com quase 18 anos de vigência, tem gerado inúmeros transtornos para os jurisdicionados. Principalmente para aqueles que figuram na posição de réus.

Entre os vários problemas existentes nos juizados especiais, certamente um dos principais é a violação do princípio da igualdade. Como bem registrado na doutrina, "quem vivencia os Juizados Especiais Cíveis na atualidade pode constatar a violação flagrante do princípio da igualdade nos Juizados Especiais. Não seria exagero dizer que o réu já entra derrotado no procedimento sumaríssimo, criando-se verdadeiro processo civil do autor" (Miranda Netto, Fernando Gama de, in Juizados Especiais Cíveis entre autoritarismo e garantismo).

Nos Juizados Especiais, as sentenças raramente são fundamentadas de forma adequada. Por força da regra do artigo 46 da lei 9.099/95, quando tais decisões são confirmadas nas Turmas Recursais, pelos seus próprios fundamentos, "a súmula do julgamento servirá de acórdão". Isso leva ao absurdo, pois muitas vezes os inexistentes fundamentos da sentença servem de "fundamento" para a sua confirmação. Uma loucura.

As decisões judiciais proferidas nesses Juizados são cada dia mais lacônicas, superficiais e produzidas em série, servindo uma mesma decisão para vários processos, por mais diferentes que sejam as questões debatidas nos autos. A regra do artigo 38 da lei 9.099/95, que exige que a sentença mencione os elementos de convicção do juiz, não pode ser interpretada de forma a permitir que o processo seja julgado sem que as teses relevantes da defesa sejam examinadas.

Liebman teve a oportunidade de dizer que "tem-se como exigência fundamental que os casos submetidos a juízo sejam julgados com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que percorreu para chegar à decisão a que chegou. Só assim a motivação poderá ser uma garantia contra o arbítrio" (Liebman, Enrico Tullio, in Do arbítrio à razão - reflexões sobre a motivação da sentença). Tal orientação, ainda atual, deveria pautar os julgamentos realizados nos Juizados Especiais, onde, cada dia mais, o arbítrio tem se tornado a regra.

A gratuidade do processo para o autor da ação é outro ponto que merece ser revisto. Hoje tentar a sorte em uma ação infundada nos juizados especiais é melhor do que jogar na Mega-Sena, uma vez que nas loterias é preciso pagar para apostar. A banalização do instituto do dano moral e a judicialização das relações de consumo, quando somadas à disposição contida no artigo 54 da lei 9.099/95, geram como resultado a multiplicação dos processos nos Juizados Especiais. Atualmente, qualquer aborrecimento ou dissabor dá origem a uma ação de indenização por dano moral.

Se não bastassem os graves problemas já listados - para falar apenas de alguns - existe ainda outro, identificado pela doutrina como sendo um "ativismo judicial distorcido, decorrente da postura de certos magistrados de realizar sua visão de justiça a qualquer custo, em franco confronto com a legislação, com o entendimento dos tribunais a que se vinculam administrativamente e até com a jurisprudência do STJ e STF" (Quintas, Fábio Lima, in A jurisdição do Superior Tribunal de Justiça sobre os Juizados Especiais Cíveis - Antecedentes, perspectivas e o controle por meio da reclamação).

Inúmeras são as decisões proferidas diariamente nos Juizados Especiais violando normas de lei federal e divergindo do entendimento dos tribunais a que se vinculam administrativamente. O mesmo se dá em relação à jurisprudência do STJ e STF, costumeiramente ignorada nos Juizados Especiais, que, sem o menor pudor, julgam milhares de casos em desacordo com o posicionamento das cortes superiores.

Já passa do tempo de se modificar a lei 9.099/95 para nela incluir mecanismos de controle das decisões proferidas nos Juizados Especiais, de forma a permitir a revisão de tais julgados quando contrários à jurisprudência do STF e, principalmente, do STJ e dos tribunais a que esses juízos se vinculam. Não se pode mais tolerar que o mesmo tema seja decidido nos Juizados Especiais de forma totalmente diversa do entendimento do STJ sobre a matéria. Porém, caso não seja modificada a lei, muito em breve, diante da multiplicação de reclamações no STJ contra decisões de Juizados Especiais, iremos assistir à criação, pela jurisprudência, de obstáculos à admissão de tais reclamações.

Não se pode negar a importância dos Juizados Especiais, que, hoje, certamente, devem responder pelo julgamento de quase metade dos litígios cíveis. É inegável também a existência, nesses juízos, de muitos magistrados sérios e comprometidos com a solução dos litígios que lhe são levados à apreciação. Contudo, é urgente a realização de uma revisão da lei 9.099/95, de forma a corrigir os problemas decorrentes da sua aplicação.

O saudoso baiano J. J. Calmon de Passos chegou a afirmar que os Juizados Especiais eram "uma arena gratuita para brigas de galos jurídicas, custeada a diversão com os recursos arrecadados do pagamento de impostos pelos contribuintes" (Calmon de Passos, J.J., in Reforma do Poder Judiciário - Revista Brasileira de Ciências Criminais). De outro lado, o ministro Luiz Fux chegou a tratar esses juízos como "um sonho de Justiça". O tempo dirá quem tem razão. Porém, se mudanças na lei não forem realizadas, muito em breve os Juizados Especiais se tornarão um pesadelo de Justiça.

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* Ulisses César Martins de Sousa é conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e sócio do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados

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