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A melhor defesa do goleiro Bruno

É preciso haver cautela no julgamento de casos de homicídio sem o encontro do cadáver.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Atualizado às 08:36

Já foi designada a data para que o Tribunal do Júri de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, dê início ao julgamento popular do goleiro Bruno, que é acusado de ter praticado, em concurso com outros réus, os crimes de homicídio triplamente qualificado, sequestro, cárcere privado e ocultação de cadáver de Eliza Samudio. O processo soma 38 volumes e 9.400 páginas.

É muito comum, quando da ocorrência de um crime com acentuada curiosidade popular, que muitas perguntas sejam feitas por leigos em ciências jurídicas e as respostas apresentadas irão proporcionar várias discussões a respeito, elegendo o tema como o centro dos debates. Esse contagiante interesse consegue desnudar as regras jurídicas, antes afetas somente aos profissionais da área, e vesti-las com uma roupagem mais conveniente ao julgamento do povo.

A interrogação que se coloca diante da tela de televisão e nas primeiras páginas de jornais e revistas com força suficiente para desafiar até mesmo a mais aguçada perspicácia policial é se o homicídio sem o encontro do cadáver impede o ajuizamento da ação penal e se pode ser considerado um crime perfeito, como no caso que envolve o goleiro Bruno e outras pessoas.

A legislação penal brasileira trabalha com o binômio autoria e materialidade para se dar início à persecução penal. Exige-se o demonstrativo da autoria, consistente na autoria mediata, intelectual, de execução, coautoria e participação e a consequente materialidade do delito, que vem a ser o representativo probatório do vestígio deixado pelo crime. Assim, elucidada a autoria, mas sem o comprovante da materialidade, de regra, seria impossível a propositura da ação penal.

Ocorre que, em infração que deixa vestígio, como é o caso do homicídio, faz-se o exame de corpo de delito chamado direto, no próprio cadáver, pelo perito. Mas, se ausentes os vestígios sensíveis do crime, a lei processual penal admite a realização do exame indireto, utilizando-se preferencialmente de testemunhas ou documentos. O juiz indagará as testemunhas a respeito do crime e de suas circunstâncias para se chegar à materialidade.

Proíbe, no entanto, o legislador que o exame de corpo de delito direto ou indireto seja suprido pela confissão do acusado. É a aplicação do princípio constitucional de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) e a consequente obrigação do Estado em apresentar todas as provas necessárias para o processo, em razão da regra do onus probandi.

Apesar de não imperar na nossa legislação penal uma hierarquia com relação às provas, a testemunhal sempre foi a preferida pelo nosso legislador. Trata-se de pessoa estranha à relação processual, que empresta sua colaboração ao fazer o relato de um fato e seu depoimento merece crédito pelo próprio comprometimento social. Enquanto a prova pericial tem o cunho oficial, a testemunhal recruta qualquer pessoa do povo e vale pela espontaneidade.

Pois bem. Certas cautelas e cuidados investigativos devem ser observados criteriosamente quando não for encontrado o cadáver de um homicídio. O maior erro judiciário brasileiro ocorreu, por coincidência, na cidade de Araguari (MG), durante o Estado Novo, em 1937. Os irmãos Sebastião Naves e Joaquim Rosa Naves foram presos, barbaramente torturados e acabaram confessando que mataram o primo Benedito Caetano, que desapareceu da cidade com uma razoável soma em dinheiro. O corpo teria sido jogado na cachoeira do Rio das Velhas. Os irmãos Naves foram condenados a 25 anos e 6 meses de reclusão. Quinze anos após, Benedito foi encontrado vivo na fazenda de seu pai. Joaquim já havia falecido e Sebastião mal teve tempo para ver triunfar sua ação indenizatória contra o Estado.

Leopoldo Heitor, conhecido como advogado do diabo, foi acusado de ter matado Danna de Teffé, em 1964 com quem, supostamente, mantinha um relacionamento amoroso. O cadáver da vítima não foi encontrado e o advogado absolvido em três julgamentos pelo Tribunal do Júri. O caso teve grande repercussão na imprensa, obrigando a polícia a vasculhar vários locais em busca da ossada e a justiça ficou de mãos atadas, pois não tinha o corpo de delito.

Daci Antonio Porte, na cidade de Uberlândia, em 1988, em situação adversa, foi condenado a 13 anos de prisão por ter matado sua companheira Denise Lafetá Saraiva, cujo cadáver também não foi encontrado. Apesar de ter sido impronunciado em razão da ausência do cadáver, o Tribunal de Justiça acatou o recurso ministerial e veio a pronunciá-lo. Os jurados entenderam que as provas documentais e testemunhais eram suficientes para demonstrar a materialidade.

No ano de 2003, em Brasília, com base única e exclusivamente no laudo pericial, o ex-policial José Pedro da Silva foi condenado pela morte da adolescente Michele de Oliveira Barbosa, com quem teve um relacionamento e resultou gravidez. O corpo jamais foi encontrado. A condenação foi possível graças ao exame de DNA do sangue da vítima e de fios de cabelo encontrados no carro do homicida. Foi o elo probatório suficiente para que os jurados se convencessem da culpa e autorizassem a aplicação judicial da pena de 13 anos de reclusão, que contemplou também o crime de ocultação de cadáver.

Ocorre que, nos casos de homicídio sem o encontro do cadáver e sem testemunha, a prova pericial ocupa lugar de destaque. A tecnologia científica da prova brasileira, de padrão semelhante à desenvolvida pelos países mais avançados, invadiu o trabalho pericial e oferece laudos minuciosos, da mais alta credibilidade, com um embasamento científico suficiente para comprovar a contento a materialidade de um crime. O perito invade o universo microscópico com equipamentos eletrônicos de última geração e retorna com o relato seguro a respeito do fato perquirido. Basta ver o resultado do julgamento dos Nardoni, que possibilitou a condenação sem o suporte testemunhal.

Agora, no caso do goleiro Bruno, volta à cena o crime de homicídio sem a correspondente materialidade. Com relação à suposta vítima há um silêncio sepulcral, sem qualquer notícia a respeito de seu paradeiro. Um dos advogados chegou até a arrolá-la como testemunha de defesa, mas, de acordo com a certidão do oficial, não foi encontrada nos endereços indicados. O Código de Processo Penal diz que para se encaminhar o julgamento para o Tribunal do Júri com relação à autoria basta a presença de elementos indicativos da prática do ilícito, porém, com relação à materialidade, exige prova inconcussa, certa e induvidosa.

Cabe agora aos jurados decidir a respeito de tema tão tormentoso, já que o goleiro Bruno e demais réus elegeram a ausência de materialidade como tese principal da defesa. O jurado, diferentemente do juiz monocrático, julga de acordo com sua consciência e os ditames da justiça, muitas vezes passando por cima de provas que, apesar de evidentes, não os convenceu.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp





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