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Atos ilícitos praticados no dia a dia do brasileiro

Os costumes não são estáticos. Evoluem de acordo com a própria sociedade. Determinado ato que era reprovado, num repente passa a ser incorporado no rol de condutas lícitas.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Atualizado em 4 de dezembro de 2012 16:02

A Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com o Instituto Vox Populi, realizou interessante pesquisa para avaliar como as atitudes ilícitas se desenvolvem e se enraízam na sociedade brasileira. Uma determinada conduta que carrega carga ilícita ou um desvirtuamento ético, pela sua reiterada prática, passa a se incorporar na tábula social e ali se aloja como uma postura normal, fazendo parte do cotidiano. Assim é que, de acordo com a pesquisa, não emitir nota fiscal, não declarar Imposto de Renda, tentar subornar o policial de trânsito para evitar multa, falsificar carteira de estudante, dar/aceitar troco errado, subtrair energia de TV a cabo, furar fila, comprar produtos falsificados, bater ponto para o colega de trabalho, falsificar assinaturas, são atos indicativos de transgressão, mas contam com a aprovação popular, por ser a conduta plenamente justificável e receber a concordância quase que unânime. Os que não concordam se quedam diante da impotência de suas ações.

É muito difícil estabelecer um parâmetro normativo para a sociedade, com um regramento que representa o anseio popular. O homem se forma, na realidade, não em função das leis que lhe são impostas, mas sim em razão do meio em que habita, com as suas regras próprias. Enquanto a lei vem revestida de caráter cogente, autoritário, o senso popular vem equilibrado pela prática de atos que passam pelo crivo dos membros de um agrupamento, estabelecendo práticas rotineiras de conduta, com fácil aceitação. Assim, vivem-se duas coerências: uma do mundo legal, preparado em laboratório e a outra do mundo real, consubstanciada na prática do dia a dia.

Os costumes não são estáticos. Evoluem de acordo com a própria sociedade. Determinado ato que era reprovado, num repente passa a ser incorporado no rol de condutas lícitas. E, quanto maior for a transformação social, mais condutas reprováveis serão introduzidas, vez que o pensamento originário apontado pela lei, fica em desuso e sem qualquer prestígio. A lei, pelo seu caráter coletivo, é muito lenta para atingir seus objetivos, enquanto que o alardeamento popular fala mais alto e rapidamente, vez que o critério adotado é o da vantagem própria ou de terceiro.

Basta ver que o povo, apesar de não aceitar a violência, vem se ajustando e convivendo com ela. Tanto é verdade que, ao se falar em crime de furto, por exemplo, se alguém subtrair para si uma soma em dinheiro ou um objeto de valor, a população, de forma pacata e consciente, assimila a ação ilícita. A própria Justiça, por seu turno, em caso de condenação, não aplicará a pena de prisão e sim a alternativa, como a prestação de serviços à comunidade. Se se tratar de crime de roubo, aquele que é cometido mediante violência ou grave ameaça, corriqueiro nos dias atuais, após a narrativa da impotente vítima, que se viu despojada dos seus bens, recebe justificável consolo no sentido de que está viva e somente experimentou prejuízo material. A Justiça, neste caso, aplicará a pena de prisão, mas em razão dos benefícios legais, o roubador cumprirá uma parte mínima em casa de grade e logo em seguida será colocado em liberdade. Sem se preocupar em ressarcir a vítima ou, quem sabe, restituir a ela o bem que lhe pertencia. E o círculo do inconformismo vai por aí afora, assistindo a um verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade.

Feita a incursão necessária, as condutas não recomendadas ética e licitamente são praticadas de forma consciente. Vale dizer, com o conteúdo de dolo necessário para demonstrar a volição exigida na prática de um crime. Quebra-se, desta forma, o divisor estabelecido pela lei que é proibitiva, e nasce um campo social novo em que a pessoa não se considera na prática de algo que não seja recomendado pelo seu grupo. Pelo contrário, cada um tem a convicção de que está agindo acertadamente em razão do pacto social implícito de aceitação. Não há restrição para qualquer pessoa que se encontra neste limbo. "Porque, conforme observa Casaubon, si el hombre no fuera capaz de actos deliberados - esto es, plenamente libres por la intervención de la inteligencia y de la voluntad - no habría problema moral para él, como no hay para la piedra, ni para la planta, ni para el animal irracional".1

A definição daquilo que se apresenta como justo ou injusto passa a ser avaliada pela sociedade, de acordo com o critério de sua conveniência. Isto porque cada um carrega consigo uma noção do que é certo e errado, do justo e do injusto e desvincula-se radicalmente das imposições externas. Nesta linha de pensamento, o aprendizado a respeito dos valores morais que foram ofertados pelos pais, em razão da evolução dos costumes, da prática de uma nova realidade moral, bate de frente com os da sociedade que prega a assimilação das pequenas condutas ilícitas. A própria lei age desta forma quando elege crimes chamados de pequeno potencial ofensivo, por força do princípio da insignificância ou da bagatela. A sociedade, por sua própria iniciativa, assimilando as novas regras do jogo, procura conviver com a violência. E, para que o convívio seja pacífico, entabula suas normas de permissividade, contrariando frontalmente as determinações legais, morais e éticas.

O cenário político, por sua vez, carrega péssimos exemplos de administradores que se preocupam mais em se locupletar com o dinheiro público do que efetivamente canalizar verbas para a realização das políticas públicas necessárias. A corrupção se alastra e campeia abertamente pelo país em todos os níveis. A revista Veja (edição 2240, de 26/10/11), em reportagem de capa, apontou que 85 bilhões de reais foram surrupiados pelos corruptos brasileiros, importância que seria suficiente para erradicar a miséria, custear 17 milhões de sessões de quimioterapia, custear 34 milhões de diárias de UTI nos melhores hospitais, construir 241 quilômetros de metrô, construir 36.000 quilômetros de rodovias, construir 1,5 milhão de casas, dar a cada brasileiro um prêmio de 443 reais e vários outros benefícios. O péssimo exemplo que vem de cima faz com que a população se sinta impotente e chega até mesmo a aceitar a corrupção, desde que algo seja feito em benefício do povo ("rouba, mas faz"). Nesta abertura, torna-se razoável oferecer propina para o policial encarregado da fiscalização do trânsito, assim como bater o ponto para o colega de trabalho, falsificar assinatura para obtenção de alguma vantagem e outras já nomeadas pelo documento citado.

Assim vamos vivendo na terra de Macunaíma. A pesquisa feita traduz que a realidade brasileira merece ser estudada com mais acuidade. Se cada vez pequenos atos ilícitos forem sendo liberados e se juntando àqueles assimilados pela população, ocorrerá, inconscientemente, um afrouxamento das regras penais e, como consequência, o esvaziamento das normas básicas que estruturam a harmonia social. Seria, guardadas as proporções, a aplicação do laissez faire, laissez aller, laissez passer, do período do iluminismo.

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1 Casaubon, Juan Alfredo. Nociones generales de lógica y filosofia. Buenos Aires: Educa, 2006, p. 378.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp





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