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Primeiras considerações sobre a última versão do Projeto de Código Penal

Primeiras considerações sobre a última versão do Projeto de Código Penal, apresentada em 10/12/13

Senador Pedro Taques corrigiu muitos dos pontos que incomodavam no projeto inicial do novo CP. No entanto, estruturalmente, a proposta ainda apresenta diversos problemas.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Atualizado às 10:13

Tramita no Senado Federal projeto que visa alterar toda a legislação penal. Primeiramente, uma Comissão de Juristas apresentou o PL 236/12, que foi objeto de diversas emendas, tendo sido substituído, em agosto do ano corrente, por relatório preliminar da lavra do Senador Pedro Taques. Também esse relatório preliminar foi objeto de emendas, sendo certo que, no dia 10 de dezembro próximo passado, o senador Pedro Taques ofertou seu relatório final.

Comparando-se o projeto originário com o relatório preliminar, restaram inegáveis as alterações. O Senador reviu a legalização do aborto, do tráfico de órgãos e da prostituição de adolescentes. O parlamentar também voltou atrás em medida que visava tratar como porte para uso próprio o fato de trazer consigo quantidade de drogas suficiente para cinco dias de consumo. Digno de nota o fato de o relatório preliminar ter afastado a criação do crime de bullying, bem como os polêmicos crimes de abandono de animais e omissão de socorro relativamente aos animais.

Já, entre o relatório preliminar e o final, as mudanças não foram tão significativas assim, restando a sensação de que o parlamentar fora menos aberto às sugestões de seus pares, nesta segunda etapa.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o texto final agrava ainda mais a parte que trata da responsabilidade penal da pessoa jurídica, toda a matéria de crimes tributários, bem como os crimes contra o meio ambiente. Se esse endurecimento fosse repercutir em melhoras para a sociedade, eu o aplaudiria, entretanto, estou certa de que os resultados serão deletérios, sob a perspectiva da segurança pública, econômica e até mesmo política. Vejamos alguns dos pontos problemáticos.

O projeto mitiga o nexo de causalidade:

Nos arrazoados que antecederam o relatório preliminar, o parlamentar deixou claro que o novo CP adotará a teoria da imputação objetiva, em substituição à teoria da causalidade. Por tal motivo, afastou-se o dispositivo que conceituava a causa e também o que disciplinava a chamada causa superveniente.

Com efeito, se aprovado o novo Código, não mais encontraremos a máxima de que se "considera causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria se verificado", bem como a de que "a superveniência de causa relativamente independente afasta a imputação". A mudança pode não parecer significativa, mas é.

A teoria da imputação objetiva se funda na criação do risco, no incremento do risco e na não diminuição do risco. Apesar de muitos estudiosos dizerem que se trata de teoria garantista, na verdade, ela facilita muito a acusação. Se não era admissível condenar alguém apenas com base no laudo pericial (causalismo estrito), não parece razoável prescindir da demonstração do nexo de causalidade. Na chamada sociedade de risco, resta muito simples argumentar no sentido de que alguém criou, aumentou, ou não diminuiu o risco de algum resultado danoso se verificar. Nesse contexto, mitigar o nexo da causalidade até facilita punir os culpados, mas também abre portas para o arbítrio e para indevidas perseguições.

O projeto muda o foco de quem faz o mal para quem deixa de fazer o bem:

Desde a versão original, ao conceituar partícipe, o projeto de novo Código reza que "consideram-se partícipes aqueles que deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem".

Nessa última versão, tal previsão está no artigo 35, parágrafo 1º., inciso II, letra b).

Não há nada parecido na legislação atual. Essa pequena letrinha pode parecer insignificante, mas não é. Com ela, o sujeito que está ao lado do agressor, aquele que, no máximo, poderia ser responsabilizado por omissão de socorro, poderá responder pela agressão perpetrada.

Com esse novel dispositivo, não será necessário fazer grande esforço para punir por homicídio o indivíduo que estava ao lado do assassino, mas que, por falta de coragem, não tomou nenhuma medida para impedir o resultado morte.

No campo da chamada criminalidade econômica, essa novidade se revela bombástica. Trabalhar no setor de compliance de qualquer empresa será atividade de alto risco. Afinal, a função de referido setor é realmente a de evitar irregularidades e, por conseguinte, crimes.

Desse modo, o funcionário do compliance que deixar de evitar a prática de um crime em qualquer dos departamentos da empresa poderá ser responsabilizado pela conduta criminosa. É um verdadeiro atentado ao Estado Democrático de Direito.

A legislação referente à lavagem de dinheiro já permite uma elasticidade sem precedentes. A aprovação da participação por omissão aumentará exponencialmente o alcance dessa figura já bastante problemática.

Nem os indivíduos, nem a sociedade ganha, quando o foco do Direito Penal se move daquele que realmente pratica o ato criminoso, para aquele que deixa que o ato seja praticado. Esse movimento possibilita uma indevida e indesejável ingerência do Estado.

O projeto institui a responsabilidade penal da pessoa jurídica

Desde a primeira versão, o projeto de novo CP estabeleceu a responsabilidade penal da pessoa jurídica para os crimes contrários ao meio ambiente, à ordem econômico-financeira e à administração pública, títulos que somam mais de 100 tipos penais.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica subverte todos os princípios do Direito Penal e, na amplitude da proposta, atenta contra a própria CF, que somente previu esse tipo de responsabilidade para os crimes contra o meio ambiente.

Se o projeto inicial já era inadmissível, a cada revisão feita pelo Senador, a situação se agravou. No projeto preliminar, por exemplo, passou-se a prever que as empresas poderiam ser punidas independentemente da identificação da pessoa física e, ainda, estabeleceu-se a pena de dar publicidade à condenação nos meios de comunicação.

Na versão final, o projeto de novo CP passou a prever que a pena poderá ser aplicada à empresa sucessora, dada a possibilidade de a empresa processada ser encerrada com o fim de fugir da punição.

É verdade que a responsabilidade penal da pessoa jurídica não é novidade no ordenamento pátrio, pois já é prevista na lei dos crimes ambientais. Sabe-se, igualmente, que esse tipo de responsabilidade já existe em outros países, como é o caso de EUA, França, Espanha e Portugal.

No entanto, nenhum desses países tem os mesmos problemas de segurança pública que assolam o Brasil.

Infelizmente, aqui, ocorrem 50 mil homicídios e 50 mil estupros por ano. As Polícias, o MP e o Judiciário não dão conta sequer de punir os casos que vêm à tona. Há mandados de prisão prescrevendo por falta de cumprimento. Prevenir essas práticas revela-se utopia.

Ora, se não somos competentes para o básico, como pretender abraçar seara alheia?

Atualmente, dirigentes de empresa já são investigados, processados e punidos, pela prática de crimes. Às pessoas jurídicas, podem ser aplicadas sanções civis e administrativas. Não há porque desviar recursos pessoais e materiais da apuração dos crimes que realmente atormentam a população.

Ademais, não se pode deixar de pensar que a academia e os meios de comunicação tratam aqueles que produzem riqueza para o país como criminosos em si. Resta, portanto, bastante perigoso esse instrumento de responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas, sobretudo em uma América Latina de tendências marxistas e totalitárias.

Importante, ainda, lembrar que criminosos não fundam empresas, eles armam fachadas; usam-nas e delas se desfazem com facilidade.

As normas instituídas nos artigos 38, 66, 67 e 68 do projeto final de CP somente alcançarão os empresários sérios, que têm o que perder. Essa perseguição às empresas vitimará os empregados, os consumidores e a economia. Nem tudo que é moderno se revela bom.

Muitas das penas instituídas para as pessoas jurídicas podem resultar na própria extinção da empresa. Por mais que se reflita acerca da adoção de tal instituto, impossível compreender a quem, ou ao que, realmente ele serve.

A pena de multa desrespeita o princípio da legalidade e pode aniquilar pessoas físicas e jurídicas

Ao ler conjuntamente os artigos 61, 72 e 84 do projeto final de CP, nota-se que toda a sistemática da pena de multa será completamente modificada. Se aprovado o projeto, o juiz poderá aplicar multa mesmo aos crimes para os quais o legislador não cominou esse tipo de pena. E a aplicação da multa não dependerá de o crime causar prejuízo, bem como não será substitutiva à pena privativa de liberdade. Essa nova sistemática afronta o princípio da legalidade.

Além disso, os valores a que podem chegar as multas, seja para pessoas físicas, seja para pessoas jurídicas podem caracterizar confisco, restando, uma vez mais, desrespeitada a Constituição Federal.

De fato, atualmente, a multa será, no máximo, de 360 dias-multa, cujo valor máximo é de cinco salários mínimos, sendo certo que, se o juiz entender insuficiente, poderá multiplicar por três.

Pelo projeto, a multa poderá chegar a até 720 dias-multa, cujo valor máximo será de vinte salários mínimos. Como se não bastasse, se o juiz entender insuficiente, poderá multiplicar por vinte, no caso de pessoa física e duzentos, no caso de pessoa jurídica. Não há como deixar de vislumbrar os perigos que essa possibilidade de punição sem prévia previsão e largos parâmetros encerra.

Cria-se, ainda que por vias indiretas, o crime de tratamento médico arbitrário

Ao tratar do constrangimento ilegal, o CP vigente afasta o crime, no caso de intervenção médica necessária para salvar a vida do paciente.

Pelo artigo 150, parágrafo 3º., do projeto de novo Código, essa intervenção será criminosa se o paciente maior de idade e capaz se manifestar contrariamente ao tratamento, ainda que tal negativa implique a morte.

Em outros ordenamentos, a intervenção médica não consentida pode ser considerada constrangimento ilegal, lesão corporal, ou mesmo caracterizar um tipo bem específico chamado tratamento médico arbitrário. Isso ocorre, por exemplo, em Portugal.

Essa incriminação tem fundamento no princípio da autonomia individual, que norteia (e deve nortear) a Bioética e o Biodireito. Por força do princípio da autonomia individual, estabelece-se uma relação horizontal (e não mais vertical) entre médico e paciente.

Não obstante reconheça a nobreza da origem de tal incriminação, temo, profundamente, pelo risco de engessar a medicina, sobretudo em um país com carências escancaradas todos os dias nos meios de comunicação.

Nem todos os valores (autonomia, no caso) precisam do Direito Penal para que sejam tutelados. Em uma situação de emergência, resta muito injusto fazer com que o médico se preocupe em não incorrer em um tipo penal. Como já escrevi em outra seara: ninguém pode ser tratado como criminoso por salvar uma vida.

O médico é treinado para salvar. Intimidá-lo com potencial processo-crime por fazer aquilo que ele aprendeu a fazer pode ensejar riscos à própria saúde pública. As decisões precisam ser tomadas em curto espaço de tempo, muitas vezes, em meio à carência de recursos. Por melhores que sejam os fins, o Direito Penal, aqui, definitivamente, não é o melhor meio.

O projeto endurece muito o tratamento dispensado aos crimes tributários e previdenciários

A sistemática vigente, no que concerne aos crimes tributários e previdenciários, é radicalmente alterada pelo projeto de novo Código Penal. Além de prever crimes tributários e previdenciários que se caracterizam independentemente de qualquer resultado, ou seja, mesmo quando não há redução ou supressão de tributos ou contribuições sociais, o projeto eleva significativamente as penas.

Em outras palavras, o projeto diminui os requisitos atuais para que os crimes se verifiquem e, ao mesmo tempo, eleva as punições.

Além disso, a leitura dos extensos artigos 360 e 361 revela que o projeto derruba a Súmula 24 do Supremo Tribunal Federal, que vincula o início da ação penal ao término da discussão fiscal, O texto final também afasta qualquer possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento. Aliás, em postura inegavelmente invasiva, o projeto praticamente proíbe o próprio legislador de, futuramente, estabelecer qualquer plano de parcelamento, com consequências penais.

Quando se pensa em sonegadores contumazes, é possível compreender a intenção do parlamentar. No entanto, sabe-se que muitos inquéritos e processos são instaurados em face de pessoas que se esforçam para cumprir todas as normas, mas, em virtude da falta de clareza e até do arbítrio, não conseguem fazer frente às inúmeras exigências. Dessa forma, resta justificada a preocupação com o endurecimento pretendido pelo texto final do projeto.

Salvo melhor juízo, as propostas vão na contramão do propugnado pela melhor doutrina e até pelas últimas leis, que vieram para viabilizar acordos, com efeitos penais.

A legislação vigente já transformou o Ministério Público e o Poder Judiciário em instâncias de cobrança, se aprovado o projeto de novo Código, a situação tende a se agravar, pois o elemento fraude (que deveria ser indispensável para verificar-se um crime) é ainda menos presente no texto proposto que no atual.

Evasão de divisas

Após a edição da lei de lavagem de dinheiro e, sobretudo, após a exclusão do rol de crimes antecedentes, entendo não haver sentido para a manutenção do crime de evasão de divisas.

De fato, se o dinheiro tiver origem lícita, mas os impostos devidos não forem recolhidos, estar-se-á diante de crime contra a ordem tributária. Por outro lado, se o dinheiro tem origem ilícita, ainda que os impostos sejam recolhidos, estar-se-á diante de lavagem de dinheiro.

Ora, por óbvio, diante dessas duas figuras, não resta espaço para o crime de evasão de divisas, pois se o dinheiro tem origem lícita e os impostos forem recolhidos, o indivíduo tem direito de guardá-lo onde bem entenda. Tal decisão está na esfera da privacidade.

Por essa convicção, creio que o projeto também segue na contramão, uma vez que, não só mantém a figura da evasão de divisas, como recrudesce significativamente o tratamento dispensado à matéria, prevendo penas de 3 a 8 anos de prisão no artigo 378.

Os crimes contra o meio ambiente, em especial os contrários à fauna, cominam penas desproporcionais

O projeto original sofreu severas críticas, em virtude de criar os crimes de omissão de socorro aos animais e de abandono de animais, cominando penas superiores às referentes as mesmas condutas, quando praticadas com relação aos seres humanos. Já no relatório preliminar, o Senador Pedro Taques excluiu esses crimes, sofrendo, por conseguinte, fortes pressões dos ativistas.

Em resposta a essas pressões, no relatório final, o parlamentar, mesmo não tendo trazido aquelas estranhas figuras de volta, elevou significativamente as penas dos crimes já existentes (artigos 405 a 415).

Além desse aumento, foram retiradas importantes excludentes, como a referente ao abate necessário para a preservação das lavouras, pomares e rebanhos, bem como ao abate de animais nocivos.

Com a legislação vigente, já são inúmeros os problemas enfrentados, pois é quase impossível abater licitamente animais que, de tão protegidos, acabam se transformando em verdadeiras pragas, seja para as plantações, seja para os seres humanos. Ora, se esse é o quadro, havendo as excludentes, que dirá se o projeto for aprovado!

O texto proposto cria ainda uma nova excludente um tanto quanto inusitada, na medida em que consigna que não será crime a apanha de insetos para fins científicos.

Artigo 405, §7º - Não será considerado crime nos termos deste artigo a apanha de insetos e outros invertebrados no caso de atividades científicas ou didáticas ou de controle de pragas e de doenças, desde que realizadas por especialistas de universidades e institutos de pesquisas.

Pode parecer um dispositivo inofensivo; entretanto, se o legislador diz que a apanha de insetos para fins científicos não será crime, forçoso concluir que apanhar e, portanto, matar inseto para fins não científicos será; chegando-se à terrível conclusão de que matar barata será crime!

Por óbvio o leitor dirá que se trata de um exagero. Que essa interpretação não é razoável. No entanto, infelizmente, as instâncias de controle nem sempre são razoáveis e a literalidade da norma bem permite a ilação.

O projeto ainda cria a figura de pescar cetáceos e chega a cominar pena de oito anos para quem coloca galos para brigar, causando a morte do animal. Ora, a pena mínima do homicídio, pelo projeto, será de oito anos e, com todo respeito aos mais sensíveis, o país inteiro come peru no Natal!

Por mais que a proteção aos animais mobilize, não se justifica que a resposta a eventuais abusos seja exclusivamente penal, mormente quando, para tanto, se subvertam todos os princípios inerentes a este ramo do Direito.

Fechando esse início de conversa

Impossível negar que o Senador Pedro Taques tenha corrigido muitos dos pontos que incomodavam sobremaneira no projeto inicial. Por questão de justiça, também preciso agradecer a gentileza com que o parlamentar e sua assessoria nos receberam, acolhendo, inclusive, várias sugestões. Mas ainda há aspectos que haveriam de ser melhor discutidos, pela importância dos valores envolvidos. Os listados nesta breve intervenção são apenas alguns deles. Cada um renderia um livro.

São muitas as novidades: cria-se a figura da culpa gravíssima, que dificulta, ainda mais, a já intrincada diferenciação entre culpa consciente, culpa inconsciente e dolo eventual; descriminaliza-se a exploração da prostituição alheia, legalizando, portanto, a atuação do empresário do sexo; criam-se agravantes e qualificadoras pautadas na discriminação, alargando-se, significativamente, os contornos do atual crime de racismo. Em resumo, há matéria para longo e intenso debate.

Mesmo reconhecendo que há méritos no projeto final apresentado ao Senado Federal, seguindo os ensinamentos de São Tomás de Aquino, tenho sérias dúvidas acerca da oportunidade de realizar-se reforma tão ampla, pois, salvo melhor juízo, os pontos positivos não suplantam os negativos.

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Janaina Conceição Paschoal é advogada e professora Livre Docente de Direito Penal da USP.

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