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Vedação ao confisco tributário: um princípio confiscado

Rogerio Mollica e Stephan Righi Boechat

Apesar de estar inserido expressamente no mais alto grau da hierarquia normativa, o tão insigne princípio da proibição ao efeito de confisco está à beira do esquecimento.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Atualizado em 18 de março de 2014 12:55

No século XVIII Montesquieu nos premiou com uma citação emblemática que ilustra com clareza um dos principais problemas para se alcançar a Justiça Tributária. Dizia ele: "Não há nada que a sabedoria e a prudência devam regulamentar tão bem quanto a porção que se tira e a porção que se deixa aos súditos". De fato, o sucesso do Estado na busca do bem estar social depende, inegavelmente, de uma carga tributária equilibrada e suportável que possibilite, de um lado, a manutenção das atividades estatais e o financiamento da execução do programa constitucional e, de outro, assegure ao contribuinte a proteção do direito de propriedade e da liberdade individual.

É dentro destes contornos que a CF, ao estruturar os pilares da ordem tributária, institui as limitações ao poder de tributar, que se equiparam aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, como já reconheceu o STF por ocasião do julgamento da ADIn 939-7/DF. Entre as referidas limitações emerge o princípio de vedação ao tributo com efeito de confisco (artigo 150, IV, CRFB), proibindo a instituição de tributo que venha a subtrair a integralidade ou uma parcela vultosa da propriedade do contribuinte - independente da natureza do tributo e de qualquer contraprestação estatal.

Dentro destas perspectivas, é preciso enfatizar que a Constituição da República manifesta-se como fonte normativa altissonante na estrutura do Sistema Tributário Nacional, principalmente ao traçar a restrição e o alcance da competência tributária, assegurando que o exercício da prerrogativa estatal de exigir uma parcela patrimonial do contribuinte não venha a antagonizar com os direitos e garantias fundamentais.

Apesar de estar inserido expressamente no mais alto grau da hierarquia normativa, o tão insigne princípio da proibição ao efeito de confisco está à beira do esquecimento, principalmente por parte dos órgãos administrativos e do Poder Judiciário. O descaso com o princípio é tão evidente que o eminente doutrinador Paulo de Barros Carvalho chega ao ponto de afirmar que se trata apenas de "simples advertência ao legislador dos tributos, no sentido de comunicar-lhe que existe limite para a carga tributária. Somente isso".

É verdade que o não-confisco revela-se como conceito jurídico indeterminado em razão da ausência de critérios qualitativos objetivos para a configuração do "efeito de confisco" delineado no texto constitucional, tornando-se atribuição do intérprete avaliar a extensão do conceito. Todavia, este peculiar grau de subjetividade não justifica, de per si, que um princípio constitucional seja relegado a mera norma programática ou singela recomendação ao legislador.

A proibição ao confisco tributário também não é popular no Poder Judiciário - pouquíssimos julgados confrontam o princípio adotando critérios interpretativos rigorosos no controle difuso de constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem analisado a questão, com destaque para a ADIn 2010 em que o Ministro Celso de Mello aponta as principais diretrizes da jurisprudência brasileira para a aplicação do princípio de vedação ao tributo com efeito de confisco: deve-se adotar a teoria do mínimo necessário e da propriedade mutilada, o parâmetro da insuportabilidade da carga tributária, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade e o princípio de proteção à família, considerando-se a integralidade da carga tributária cobrada por uma só pessoa jurídica de direito público.

No entanto, diversas indagações de extrema relevância para determinar a aplicabilidade do princípio jamais foram respondidas, entre elas: a proibição ao tributo com efeito de confisco deve ser apurada, em cada caso, à vista do conjunto dos tributos cobrados pelos diversos entes federativos, ou só em face de cada incidência em particular? Qual a alíquota limite de um imposto sobre a propriedade, para que não se torne confiscatório? E a do imposto sobre a renda? É possível constatar o efeito de confisco medindo a proporção do retorno da carga tributária em relação à arrecadação (especialmente no que se refere às receitas tributárias vinculadas)?

Com efeito, é difícil traçar um parâmetro concreto que preencha o conteúdo indeterminado do princípio, ainda que a problemática da vedação ao confisco seja avaliada sob a ótica da capacidade contributiva (artigo 145, §1º, CRFB). No entanto, na ausência de outro limite que o conteúdo semântico das palavras possa expressar, ao menos existe a possibilidade de diminuição da arrecadação com o abusivo aumento da carga tributária - teoria que a famosa curva de Laffe busca comprovar. Vale dizer, é o próprio Estado que tende a perder receita quando ultrapassa o limite da capacidade contributiva.

Portanto, e no limite, quanto maior a fatia do Estado na apropriação das riquezas produzidas em seu território, tanto mais próximo se estará daquele esgotamento. Afinal, a disponibilidade financeira dos cidadãos é o termômetro do consumo e, sem ele, a tendência é a diminuição na produção e, consequentemente, também da riqueza sobre a qual incide o tributo. Ademais, a produção de riqueza necessita de poupança dos cidadãos para financiar o crédito, que por sua vez movimenta a economia alavancando negócios.

Infelizmente, contudo, o interesse arrecadatório sempre prevalece sobre o bom senso, e especialmente em nosso país a carga tributária parece desafiar a curva de Laffer - desafiando também, com isso, os próprios limites do que seria a proibição de confisco, que de tanto ser desprezado fica verdadeiramente enfraquecido.

Temos aqui uma espécie de "efeito secundário" do fenômeno do "pamprincipiologismo", de que tanto nos alerta Lenio Streck, pois com a multiplicação dos princípios anêmicos e desprovidos de normatividade e índole constitucional, alguns princípios verdadeiramente inscritos na Carta da República acabam tendo sua eficácia mitigada em virtude da confusão hermenêutica criada pela mistura descriteriosa dos princípios constitucionais com os "princípios" insignificantes.

Certo é que os conceitos jurídicos indeterminados demandam maior esforço interpretativo, mas não é por isso que o jurista pode se esquivar de sua tarefa, fundamentando-se exclusivamente em um suposto "excesso de subjetividade", máxime ao se tratar de norma constitucional.

Enfim, confiscaram o princípio, mas em meio à tão voraz fúria fiscal, o que mais precisamos é reanimar sua existência - do contrário seremos confiscados e não saberemos sequer como aplicá-lo.

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* Rogério Pires da Silva e Stephan Righi Boechat são advogados do escritório Boccuzzi Advogados Associados.

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