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O direito administrativo do inimigo

A convivência entre particulares, sobretudo empresas, e a Administração Pública brasileira tem desvelado uma política subliminar de supressão de direitos e garantias do administrado.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Atualizado em 5 de junho de 2014 14:13

O Direito Penal do inimigo, teoria de Günther Jakobs, defende o estabelecimento de dois sistemas repressores: um para o cidadão e outro para o inimigo. Este, um sujeito de vocação criminosa, afeito a condutas reprováveis, que se contrapõe ao cidadão. Ao primeiro caberia, então, o Direito Penal do inimigo, sistema específico no qual as garantias e direitos assegurados ao acusado no Direito Penal poderiam ser suprimidos, numa repressão a priori, em nome da proteção contra atos nocivos à sociedade. A teoria suscitou severas críticas, pelo aludido risco que traria ao Estado Democrático de Direito. De fato, a proposta pela supressão de direitos e garantias fundamentais do Direito Penal representa um retrocesso na evolução do Estado de Direito, e, como tal, desestimulou a propagação dessa teoria.

Contudo, a convivência entre particulares, sobretudo empresas, e a Administração Pública brasileira tem desvelado uma política subliminar de supressão de direitos e garantias do administrado. Pior, estimula-se a crença de que aquele que faz negócios com a administração é um inimigo a ser combatido.

Criou-se, então, algo como um "direito administrativo do inimigo", no qual a premissa é a de que o administrado está sempre lesando o interesse público. Nas discussões envolvendo direitos do administrado, vige uma perigosa postura beligerante da administração, que se propaga também nos órgãos de controle e no Ministério Público.

Valendo-se dessa noção distorcida, direitos e garantias fundamentais do administrado são ignorados: nega-se a produção de provas; dificulta-se o acesso aos autos do processo administrativo; despreza-se a previsão contratual; ações civis públicas e criminais são ajuizadas lastreadas em meros indícios e buscam sempre a punição mais severa, por mais desarrazoada que seja, até fechar empresas e sua capacidade produtiva. A justificativa recai no discurso que põe na empresa o estigma de inimigo público, verdadeiro pária de conduta voltada à lesão do interesse público e, como tal, passível de severa punição. Tudo sempre amparado na noção de que o sistema garantista do Estado Democrático de Direito não se aplica aos que fazem negócios com a administração, casta digna de repúdio.

Deve haver a repressão aos desvios de conduta, de particulares e agentes públicos, na administração pública. O que se defende aqui é o bom combate, condição basilar do ato punitivo. A suposta certeza da culpa de alguém ou de que um ato é desvantajoso à administração não pode ser o único critério a arrimar a aplicação de penas ou a decisão sobre requerimentos do administrado. Antes, é preciso assegurar seus direitos, que não podem ser vistos como empecilho ao interesse público e sim pressupostos que validam e enrobustecem a decisão administrativa.

É preciso repensar a noção maniqueísta da relação público e privado. Há, sim, empresas que buscam vantagens indevidas nessa relação. Mas é cada vez maior a preocupação de tantas outras com condutas sérias. O pior desestímulo a este grupo é tratar todas elas como potenciais inimigos da sociedade. Com a recente edição da lei anticorrupção, é tanto mais crucial preservar os direitos e garantias fundamentais, pois a interpretação equivocada dos seus dispositivos - por si só já rigorosos - poderá engendrar um caráter punitivo de feições arbitrárias, em afronta ao Estado Democrático de Direito.

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* Caio de Souza Loureiro é advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

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