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Hamlet e a legislação ambiental

A responsabilização administrativa objetiva é um desincentivo à proteção do meio ambiente, pois o Estado pune igualmente aqueles que se preocupam com o meio ambiente e os que não se preocupam.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Atualizado em 2 de janeiro de 2015 14:00

Ser ou não ser, essa é a questão: será mais nobre suportar na mente as flechadas da trágica fortuna, ou tomar armas contra um mar de obstáculos e, enfrentando-os, vencer? (W. Shakespeare)

O Estado de São Paulo, tradicionalmente, tem sido um dos pioneiros na edição de normas de proteção ao meio ambiente, sendo um bom exemplo disso a lei 997, de 31 de maio de 1976 que, juntamente com o decreto-lei 134, de 16 de junho de 1975 inauguraram o sistema de combate à poluição nos Estados. Desde então, a legislação estadual de proteção ao meio ambiente veio se modernizando e, do ponto de vista jurídico e político, houve a promulgação da CF de 1988. Todavia, as competências concorrentes em matéria ambiental ainda têm dado margem a muita controvérsia e insegurança jurídica. É o caso do combate à poluição no Estado de São Paulo, não havendo clareza em relação às normas aplicáveis, existindo um universo de dúvida hamletiana.

A lei paulista 997/76 em seu artigo 2º estabelece que a poluição é "a presença, o lançamento ou a liberação, nas águas, no ar ou no solo, de toda e qualquer forma de matéria ou energia, com intensidade, em quantidade, de concentração ou com características em desacordo com as que forem estabelecidas em decorrência desta lei, ou que tornem ou possam tornar as águas, o ar ou solo: I - impróprios, nocivos ou ofensivos à saúde; II - inconvenientes ao bem estar público; III - danosos aos materiais, à fauna e à flora: IV - prejudiciais à segurança, ao uso e gozo da propriedade e às atividades normais da comunidade." Após definir o conceito de poluição a norma, em seu artigo 3o estabelece: "Fica proibido o lançamento ou liberação de poluentes nas águas, no ar ou no solo." As penas pecuniárias previstas na lei variam "de 10 a 10.000 vezes o valor da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo - UFESP". Para o ano de 2014 a UFESP está cotada em R$ 20,14, dessa forma a penalidade pecuniária varia entre R$ 201,4 e R$ 201.400,00. Não se discute se os valores estão defasados ou não.

O fato é que, quando ocorrem incidentes de poluição industrial, sem qualquer base legal, a CETESB tem aplicado a lei federal 9.605/98 e o seu regulamento administrativo estabelecido pelo decreto Federal 6.514/08. Alega a CETESB que a lei estadual está defasada no tempo e que a lei Federal é mais condizente com a realidade atual. Entretanto, vale o registro de que a infração administrativa de poluição (art. 61) no decreto Federal é punida com multa variável entre R$ 5.000,00 e R$ 50.000.000,00. Curiosamente, em atividades de menor impacto ambiental e de menor capacidade econômica do "agente infrator", a CETESB permanece fiel à lei paulista. Não se quer insinuar que a escolha da aplicação das normas Federais para os "grandes" tenha qualquer relação com o valor das multas federais comparadas às estaduais.

Não bastasse isso, a CETESB tem dado aplicação desconforme à lei federal 9.605/98 e ao seu regulamento, pois tem aplicado sanções administrativas de multa com base nos preceitos da responsabilidade objetiva, contrariando assim expressa determinação da lei 9.605/98 que (artigo 72 § 3o) estabelece que a multa simples será aplicada em caso de negligencia ou dolo, termos reafirmados pelo decreto 6.514/08 (art. 3o, § 2o). O TJ/SP tem reconhecido que a responsabilidade administrativa é subjetiva, "a responsabilidade pela infração administrativa é subjetiva e não se confunde com a responsabilidade objetiva de reparação ao meio ambiente" (TJ-SP Apelação APL 00003612420118260069 SP 0000361-24.2011.8.26.0069, 24/04/2014), todavia a CETESB não tem se curvado a tal fato, aumentando os gastos de defesa das partes, em muitas vezes impedindo o exercício do direito de defesa, pois a anulação judiciária das multas demanda o depósito integral do crédito contestado.

Ora, como sabemos, a praxe administrativa não revoga lei e, obviamente, o Estado de São Paulo deve aplicar a sua legislação em todos os casos de poluição ocorridos nos seus limites territoriais, vez que a lei 997/76 ainda está em vigor, "aplicação do regulamento da lei 997/76, aprovado pelo decreto 8.468/76, em consonância com as leis estaduais 10.547/00, 11.241/02 e seus respectivos decretos regulamentares. Inexistência de autorização para realização de 'queima controlada'. Prática ilegal. Aplicação dos dispositivos previstos no regulamento da lei 997/76, ainda em vigor" (TJ-SP APL 20545920078260400, publ. 28/02/2012). O procedimento que vem sendo adotado não é condizente com o pioneirismo que sempre foi característico do Estado de São Paulo na proteção ambiental, merecendo correção de rumos. É evidente que a falta de critérios objetivos e a indefinição quanto às normas aplicáveis aos casos concretos é extremamente danosa, pois não sinaliza inequivocamente para as atividades industriais quais são os critérios legais aplicáveis. Ademais, a responsabilização administrativa objetiva, não se admitindo excludentes de responsabilidade, notadamente quando se tratar de fato de terceiros, é um desincentivo à proteção do meio ambiente, pois o Estado pune igualmente aqueles que se preocupam com o meio ambiente e os que não se preocupam. Do ponto de vista econômico, o Estado está afirmando que vale a pena correr o risco de não investir na proteção ambiental, pois, a final, a punição será a mesma.

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*Paulo de Bessa Antunes é advogado, sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown.


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