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O admirável corpo belo, por Eudes Quintino

O admirável corpo belo

O padrão de beleza desloca-se da exigência comercial das agências da moda e meios de comunicação e ingressa no limite ético determinado pelo bem estar físico e mental, nos parâmetros de respeito à dignidade humana, um dos fundamentos de nossa Constituição.

domingo, 3 de maio de 2015

Atualizado em 30 de abril de 2015 16:45

O ser humano, pela sua própria natureza, preocupa-se com o seu bem-estar e estabelece regras rígidas de estética para o seu próprio corpo. Para tanto, muitas vezes, como um bom espartano, frequenta academias e praças de exercício para conseguir um peso que lhe seja satisfatório, de acordo com o programa de saúde adotado e com os objetivos almejados. O modelo de beleza, principalmente o feminino, está intimamente ligado aos padrões internacionais, sempre capitaneados pelas famosas musas que ocupam as passarelas.

O padrão de beleza evolui com os critérios da própria humanidade. Cada época adota seu modelo, entoando o ritmo do let's stay young forever. Atualmente, pelas exigências da indústria da moda, as modelos devem apresentar um corpo cada vez mais magro. Para tanto, sacrificam-se e muitas vezes rejeitam alimentos ou fingem saboreá-los, ingressando no transtorno psicológico da anorexia. É a beleza presente, já fugidia no corpo esquálido. Fica até difícil apontar um padrão de mulher que possa representar o belo.

Há um consenso na literatura mundial que a mulher mais bonita é Anna Karenina, personagem do autor russo Leon Tostoi. De tão formosa, fazia as pessoas perderem a fala. Para o nosso lado, com o suor e a cor indígena, José de Alencar pintou Iracema como a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asas da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. Bonita e misteriosa, Capitu foi descrita por Machado de Assis com olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Beleza é fundamental, cantava Vinicius de Morais, com as escusas devidas às mulheres não portadoras do predicado. Nenhuma delas, no entanto, somando-se a elas a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, apresentava-se magra, ou melhor, magérrima, como a exigência atual.

A França, quem diria, pela sua cultura tradicional, que prega o europeu como o centro do universo, está prestes a aprovar dois novos tipos penais protetivos à saúde. Um deles trata da incitação à magreza, compreendendo a conduta daquele que estimula, encoraja pessoa que já goza de pouco peso a fazer restrições alimentares por um longo período, justamente para entrar no reduto anoréxico. O outro proíbe modelos muito magras de exercer a atividade profissional. A definição de muito magra compreende o Índice de Massa Corporal (IMC) inferior a 18.

No Brasil já houve a tentativa legislativa neste sentido, em projeto de lei do senador Gerson Camata, que igualmente proíbe o desfile e propaganda em anúncios de modelos muito magras, compreendendo o mesmo índice de massa corporal, considerado saudável pela Organização Mundial de Saúde. Para atingi-lo, basta pegar a altura e multiplicar por ela mesma e dividir o peso pelo resultado da primeira operação. A considerar o resultado, Gisele Bündchen, que já se aposentou das passarelas, não poderia desfilar no Brasil no início de sua carreira.

Mas tal pretensão não tinha como seguir adiante, por carregar certa dose de inconstitucionalidade. A saúde pública, principalmente a da juventude, deve nortear a ação governamental, conforme preceitua a Constituição Federal. A preocupação com a aparência física é louvável, mas a modelagem do corpo para se adaptar à ditadura da moda, com o jejum obrigatório e a consequente utilização de laxantes, diuréticos e medicamentos para emagrecimento, transformam jovens saudáveis em belezas esqueléticas, atingindo a magreza em seu nível excessivo e prejudicial à saúde. Somam-se no mundo vários casos de morte por anorexia. Lembro-me, com certa melancolia, da morte da cantora Karen Carpenter, considerada uma das vozes mais envolventes, principalmente quando entoava Close to you que, juntamente com seu irmão, formou o grupo The Carpenters. Começou a fazer dietas obsessivas e desenvolveu anorexia nervosa, vindo a falecer aos 32 anos, no auge da fama.

De um lado, a imagem do corpo, a intromissão estatal nesta intimidade particular, são situações que justificam um posicionamento governamental, em ação preventiva somente, impedindo a jovem de agredir o próprio corpo e provocar sua morte, numa visão holocáustica, como árvore seca no coração de um deserto, descrito pelo Nobel da Paz Elie Wiesel. O padrão de beleza desloca-se, portanto, da exigência imposta comercialmente pelas agências da moda e meios de comunicação e ingressa no limite ético determinado pelo bem estar físico e mental, nos parâmetros de respeito à dignidade humana, um dos fundamentos de nossa Constituição. Por incrível que pareça, o Estado passa a ditar o conceito de beleza. Pelo menos tenta buscar um padrão que vai ao encontro da saúde e do bem-estar físico do cidadão.

Por outro lado, apontando agora a ilegalidade, a proposta atinge o princípio constitucional da isonomia, pois considera desiguais pessoas portadoras de IMC abaixo do referendado. O óbice afeta a garantia de exercer o trabalho, que será proibitivo para tais pessoas e tal entrave se contrapõe à igualdade social, que abrange a igualdade de ocasiões e oportunidades. A respeito, adverte Bobbio: "O processo de justiça é um processo ora de diversificação do diferente, ora de unificação do idêntico. A igualdade entre todos os seres humanos em relação aos direitos fundamentais é o resultado de um processo de gradual eliminação de discriminações, e portanto de unificação daquilo que ia sendo reconhecido como idêntico: uma natureza comum do homem acima de qualquer diferença de sexo, raça, religião, etc.".1

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1 Bobbio, Norberto. O terceiro ausente. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP, 2009, p. 93.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

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