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Regulação e concorrência: um posicionamento do STJ

José Carlos Berardo, Ana Elisa Laquimia e Gabriella Guimarães

Mais importante que a controvérsia quanto à interpretação da regulação setorial, no entanto, é o reconhecimento pelo STJ de que as empresas não podem ser compelidas a optar entre a cruz e a espada, ou seja, entre a concorrência e a regulação.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Atualizado em 29 de julho de 2015 14:14

Em setores sujeitos à regulação do Estado, o cumprimento da multiplicidade de regras impostas às empresas não é uma tarefa trivial. Não é incomum que as empresas tenham, até mesmo, que procurar formas de conciliar deveres aparentemente contraditórios. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando houver certa tensão entre as regras relativas à regulação da atividade econômica e as regras relativas à proteção à livre concorrência. Pense-se nos casos em que a regulação impõe preços mínimos, máximos ou fixos (os chamados preços administrados), a divisão territorial de um mercado ou, ainda, critérios mínimos de segurança ou qualidade. Nessas situações, a questão que surge é: até que ponto o cumprimento de determinações regulatórias poderia, ao mesmo tempo, violar a legislação concorrencial?

Recentemente, no contexto de ACP ajuizada contra distribuidoras de gás em Porto Alegre e Canoas, o STJ reformou decisão do TRF da 4ª região, que condenou as empresas por formação de cartel mediante a prática de preços tabelados e rodízio para a comercialização de produtos (REsp 1.390.875/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 9/6/15). De acordo com a 1ª turma do STJ, não é possível considerar que a atuação das distribuidoras de gás seria ilícita, uma vez que os preços do produto eram tabelados pelo próprio Poder Público e o mencionado rodízio, estruturado por meio do Sistema Integrado de Abastecimento, autorizado pelo Departamento Nacional de Combustíveis. Isto é, uma vez que a atuação dos particulares foi essencialmente pautada pelas determinações do agente regulador, sem a possibilidade de qualquer flexibilização, sua conduta não poderia ser considerada ilícita.

Segundo o STJ, a conduta das empresas seria imune à legislação de defesa da concorrência, por conta de doutrina conhecida nos Estados Unidos como State Action Doctrine, por vezes equiparada, no direito brasileiro, à excludente de ilicitude decorrente da inexigibilidade de conduta diversa. Seguindo orientação já presente na doutrina, o STJ decidiu que uma conduta não configura infração à ordem econômica se (i) houver regulação estatal a seu respeito, (ii) tal regulação tenha por objetivo atender a uma finalidade de política pública e (iii) o Estado efetivamente obrigue e supervisione o cumprimento da regulação. Ou seja, para que não haja conduta ilícita, é preciso que exista disposição regulatória expressa, cujo cumprimento esteja sujeito à supervisão estatal, e que se sobreponha às normas de proteção da concorrência. Quando todos esses requisitos se fizerem presentes, não pode a autoridade antitruste interferir no mercado regulado em questão por meio do controle de condutas anticompetitivas.

Por exemplo, a prática de preços tabelados seria lícita não somente por estar de acordo com regulação, mas antes por decorrer de mandamento expresso da norma. Em outras palavras, de acordo com o entendimento do STJ, se uma regra regulatória estabelece determinada conduta como a única possível, não se pode punir os agentes por conduta anticompetitiva; isto é, quando a própria regulação não lhes confere alternativa: praticam a conduta imposta e, se não o fizerem, estarão em desacordo com a norma. Contudo, é bom que se ressalve que, se as regras regulatórias fixam apenas limites (critérios mínimos ou máximos de preço ou outras condições) para a prestação de um serviço ou venda de um produto, as empresas não podem valer-se da regra regulatória para articular condutas restritivas à concorrência dentro da margem de liberdade que a regulação estatal lhes deu. Com efeito, o argumento da "inexigibilidade de conduta diversa" somente se aplica a hipóteses bastante restritivas em que, como bem definido pelo STJ, não haja qualquer "flexibilidade" à iniciativa privada, mas apenas "o cumprimento de regras pré-estabelecidas e impostas pelo Poder Público".

A tese subjacente à decisão do STJ parece sugerir que, nas hipóteses de a regulação estatal exigir, de maneira expressa, a supressão da liberdade de concorrência, a priorização dos valores positivados pela regulação decorre de escolha do Poder Público e, portanto, deve prevalecer sobre a liberdade das empresas.

Resta saber de que forma o CADE receberá essa decisão do STJ e de que forma a incorporará em sua rotina de julgamentos. Em outros casos, a autarquia já reconheceu a existência de excludente de ilicitude similar quando a regulação substitui a concorrência. No caso específico das distribuidoras de gás, no entanto, o CADE decidiu que a regulação setorial não isentaria a culpa das empresas pela realização de acordos de preço posteriores à liberação dos preços de frete e margens de distribuição e de revenda. O STJ, por sua vez, decidiu que essa liberação apenas teria ocorrido em momento posterior, com a suposta "liberação de preços ao consumidor".

Mais importante que a controvérsia quanto à interpretação da regulação setorial, no entanto, é o reconhecimento pelo STJ de que as empresas não podem ser compelidas a optar entre a cruz e a espada, ou seja, entre a concorrência e a regulação. Ao administrado, cabe obedecer aos termos da regulação setorial específica, sem que isso possa gerar-lhe qualquer prejuízo. E, caso a regulação gere prejuízos à concorrência, cabe às autoridades, notadamente a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, a quem incumbe expressamente a promoção da concorrência dentro da Administração Pública e perante a sociedade, recomendar sua modificação.

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*José Carlos Berardo, Ana Elisa Laquimia e Gabriella Guimarães são, respectivamente, sócio e colaboradoras do BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão. O texto contou com a colaboração de Guilherme Morgulis.

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