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Ainda a estabilização da tutela antecipada

Apenas a tutela antecipada antecedente é apta a estabilizar-se. Se, por exemplo, o autor desde logo formula o pedido de tutela final e requer já na inicial, incidentalmente, a antecipação de tutela, e essa é concedida, se não houver recurso, a tutela antecipada não se estabilizará.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Atualizado às 07:17

1. Introdução

Como visto nos dois textos anteriores desta série, se o réu não interpuser recurso contra a decisão que, em primeiro grau, concede a tutela antecipada antecedente, essa estabilizar-se-á. O processo, uma vez efetivada integralmente a medida, será extinto. Todavia, a providência urgente manterá sua eficácia por tempo indeterminado. Sua extinção dependerá de uma decisão de mérito, em uma nova ação, que a reveja, reforme ou invalide (art. 304, caput e §§ 1.º e 3.º).

Exemplificando: concede-se tutela antecipada antecedente, determinando-se prestação pecuniária mensal de natureza alimentar - e o réu não recorre do provimento antecipatório. Sem que haja nenhuma declaração da existência do direito aos alimentos, a ordem de pagamento das prestações periódicas permanecerá em vigor por tempo indeterminado. Para eximir-se do cumprimento de tal comando o réu terá o ônus de promover ação de cognição exauriente e nela obter o reconhecimento da inexistência do dever de prestar alimentos.

Apenas a tutela antecipada antecedente é apta a estabilizar-se. Se, por exemplo, o autor desde logo formula o pedido de tutela final e requer já na inicial, incidentalmente, a antecipação de tutela, e essa é concedida, se não houver recurso, a tutela antecipada não se estabilizará.

2. Limites à estabilização

Há óbices gerais, sistemáticos, que impedem a incidência do mecanismo da estabilização, em termos absolutos, em todo e qualquer tipo de conflito. Quando menos, devem surgir dúvidas e controvérsias quanto à aplicabilidade da estabilização em determinadas hipóteses. Pode antever-se exemplificativamente algumas dessas situações - tomando-se em conta inclusive as disputas que se estabeleceram relativamente à atual ação monitória:

(i) quando o réu do processo urgente preparatório for citado por edital ou hora certa (modalidades de citação ficta).

Não se poderá imputar a consequência da estabilização, em caso de não comparecimento do réu ao processo. Haverá de lhe ser designado um curador especial, que não apenas estará autorizado mas terá o dever funcional de adotar as medidas cabíveis em defesa do réu - inclusive impugnar a medida urgente. A mesma constatação será aplicável aos casos em que o réu for incapaz sem representante legal (ou com interesses colidentes com o do representante) ou estiver preso (art. 72);

(ii) causas que envolvam direitos indisponíveis.

Como visto em texto anterior, a estabilização da tutela antecipada consiste numa modalidade de técnica monitória (como a usada na procedimento especial da ação monitória). A técnica monitória tem por função estabilizar a produção de resultados concretos em prol do autor naqueles casos em que o réu, podendo dispor de seu direito de defesa, abre mão de impugnar a medida concedida. Há íntima relação entre o mecanismo monitório e o princípio da disponibilidade. E esse pressuposto de disponibilidade da defesa não está presente quando o objeto do litígio é um direito propriamente indisponível. Por exemplo, seria apta a estabilizar-se uma medida de antecipação de tutela de exoneração de alimentos, concedida em caráter antecedente?

(iii) processos urgentes preparatórios em face da Fazenda Pública.

A questão sobre o cabimento de tal mecanismo em face da Fazenda Pública já se pôs no âmbito da ação monitória. O STJ editou o enunciado sumular n.º 339, no sentido de que "é cabível ação monitória contra a Fazenda Pública". A súmula ainda não resolvia definitivamente a questão, pois, entre os precedentes que a formaram, alguns afirmavam peremptoriamente a incidência do efeito principal da ação monitória (formação imediata de título executivo judicial, em caso de ausência de embargos ao mandado), ao passo que outros admitiam formalmente a ação monitória contra a Fazenda Pública, mas adicionando, ao menos em tese, a necessidade de observância de mecanismos incidentes no processo comum de conhecimento (notadamente, o reexame necessário) - o que eliminaria o efeito principal monitório.

O CPC/15 disciplinou o tema expressamente, no âmbito da ação monitória. Adotou a segunda orientação - que dizima o efeito principal monitório: se não houver embargos ao mandado, haverá reexame necessário (art. 701, § 4.º). Logo, não se constituirá de pleno direito o título executivo. O tribunal que seria competente para o recurso, de ofício, revisará a decisão concessiva da tutela monitória. Se é assim na ação monitória, torna-se sistematicamente muito difícil, se não inviável, reconhecer a incidência do efeito monitório no caso de falta de recurso da Fazenda contra a tutela antecipada antecedente.

Há ainda um segundo óbice, de caráter objetivo. Se a posição jurídico-material atingida pela tutela antecipada tem caráter indisponível, não parece possível que ela possa ser neutralizada, por tempo indeterminado (e talvez definitivamente) pelo fenômeno da estabilização. Imagine-se o caso em que se obtém tutela antecipada antecedente para sustar os efeitos do ato de exoneração de um servidor, por falta grave. Não seria razoável estabilizar-se a suspensão da eficácia de tal ato sem a cognição exauriente dos seus fundamentos de legitimidade.

3. Estabilização, efeitos práticos, declaração e (des)constituição

Além disso - diferentemente da atual ação monitória, que se presta especificamente à cobrança de direitos obrigacionais, portanto compatíveis com uma estrutura dispositiva e aptos à produção de resultados concretos independentemente da produção da coisa julgada -, a estabilização da tutela antecipada aplica-se, em seus termos literais, a toda tutela antecipada antecedente, mesmo aquelas destinadas a antecipar parcialmente o resultado concreto de futuras ações precipuamente declaratórias e constitutivas.

No entanto, um ato jurídico não poderá ser "declarado" válido, inválido, existente ou inexistente por meio desse mecanismo monitório. Do mesmo modo, uma situação jurídica não tem como ser constituída ou desconstituída mediante a técnica da estabilização.

A tutela declaratória (ou seja, a eliminação definitiva de dúvidas) e, no mais das vezes, a tutela constitutiva (ou seja, a alteração de estados jurídicos) só têm serventia ao jurisdicionado se forem revestidas da estabilidade da coisa julgada material. Para o jurisdicionado não basta (e nem mesmo parece ser algo logicamente concebível) a eliminação provisória da dúvida sobre a existência ou não de uma relação de filiação; não basta a invalidação provisória de um contrato; não há como se ficar apenas provisoriamente divorciado - e assim por diante.

Pense-se no seguinte exemplo. Promove-se medida de urgência, em caráter antecedente, para suspenderem-se os efeitos de uma assembleia geral societária. A princípio, a medida seria preparatória de subsequente ação de invalidade do conclave. A providência urgente não é impugnada pelo réu e estabiliza-se. Por tempo indeterminado, permanecerão sustados os efeitos das deliberações assembleares. Mas isso não significará que tais deliberações tenham sido desconstituídas, suprimidas do mundo jurídico. Nenhum pronunciamento terá havido acerca da validade da assembleia e suas decisões. E a suspensão de eficácia de tais atos, ainda que "estável", não poderá ser considerada definitiva, intocável (v. a seguir). Tal cenário de insegurança tende a não ser satisfatório às partes envolvidas no conflito - no mais das vezes, nem mesmo àquela parte que pleiteou e obteve a providência urgente que se estabilizou. Nesse contexto, a despeito da pretensa estabilização dos efeitos da medida urgente, continuará havendo a necessidade de tutela jurisdicional - uma proteção definitiva, apta a afastar qualquer reabertura da discussão. Em um caso como esse, o próprio autor da medida urgente estabilizada terá interesse jurídico de promover ação de cognição exauriente - hipótese essa, aliás, expressamente admitida pelo CPC (art. 304, § 2.º: "qualquer das partes poderá demandar a outra..."; art. 304, § 6.º: "ação ajuizada por uma das partes...").

4. Alcance objetivo e subjetivo da estabilização

Terá de ser considerada, ainda, a hipótese de recurso parcial, sob o aspecto objetivo ou subjetivo. A solução a adotar não deverá divergir daquela aplicável no âmbito dos recursos, da ação rescisória, da impugnação ao cumprimento de sentença, dos embargos de executado ou dos embargos monitórios.

Havendo litisconsórcio passivo no processo urgente preparatório, a impugnação apresentada por um dos réus aproveitará àqueles que não impugnaram na medida em que os fundamentos apresentados não digam respeito exclusivamente ao impugnante. Vale dizer: fundando-se a impugnação em defesas comuns aos litisconsortes passivos, a tutela urgente também não se estabilizará em face dos réus que permaneceram inertes. Trata-se da diretriz externada nos arts. 919, § 4.º, e 1.005, para os embargos de executado e os recursos, respectivamente.

Por outro lado, quando houver cumulação de comandos concessivos de medidas urgentes, a formulação de impugnação apenas impedirá a estabilização dos efeitos relativos aos capítulos decisórios efetivamente impugnados. Exemplificando: no processo urgente preparatório, deferiram-se liminarmente duas providências antecipatórias independentes entre si. Se o réu impugna apenas uma delas, estabilizam-se os efeitos da outra.

Idêntica diretriz será aplicável às hipóteses em que a providência urgente for quantitativamente decomponível, e o réu impugnar apenas uma fração dela (ex.: determina-se o sequestro de cinco bens; o réu impugna a determinação da medida apenas no que tange a três deles). Estabilizar-se-ão os efeitos da parcela não impugnada.

5. Ausência de coisa julgada material

A estabilização da tutela antecipada não gera coisa julgada material. Os efeitos da medida de urgência poderão ser extintos em posterior ação. Nos termos do art. 304, § 2.º: "Qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput". A ausência de coisa julgada é também explicitada no § 6.º do art. 304: "A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2.o deste artigo".

A expressa exclusão da coisa julgada material na hipótese constitui um ponto positivo. Anterior projeto de lei (Projeto de Lei 186/2005, do Senado Federal), destinado a instituir a estabilização da tutela no Código anterior, pretendia imputar a autoridade de coisa julgada material à decisão concessiva da medida urgente, quando estabilizada. Mas isso seria incompatível com a cognição meramente sumária que respalda a concessão da medida de urgência.

O instituto da coisa julgada é constitucionalmente incompatível com decisão proferida com base em cognição superficial e, por isso mesmo, provisória, sujeita à confirmação. Há uma vinculação constitucional da coisa julgada à cognição exauriente. Ainda que não exista disposição expressa nesse sentido, isso é uma imposição da proporcionalidade e da razoabilidade extraíveis inclusive da cláusula do devido processo (CF, art. 5º, LIV). A imutabilidade da coisa julgada - qualidade excepcional no quadro da função pública - não pode ser atribuída indistintamente a qualquer ato jurisdicional. O que confere idoneidade para o ato ficar imune à revisão não é só a circunstância de ele ter sido precedido da oportunidade de manifestação das partes, mas sobretudo a profundidade da cognição que se pôde desenvolver. A emissão de decisões amparadas em cognição sumária (superficial) não é, em si mesma, incompatível com as garantias do processo. Renuncia-se a uma investigação mais completa e aprofundada das questões relevantes para a solução do conflito em troca de uma decisão célere. Mas se paga um preço pelo emprego da cognição superficial. A contrapartida razoável consiste na impossibilidade de que a decisão adquira o mesmo grau de estabilidade atribuível ao resultado da cognição exauriente. Adota-se solução de compromisso: sacrifica-se a profundidade e se produz um pronunciamento urgente e apto a gerar os resultados concretos desejados, mas que não constitui decisão definitiva.

O Código está em consonância com essa ordem de ideias.

6. Ação de revisão e outras ações de cognição exauriente: legitimidade e interesse

Como já afirmado, qualquer das partes detém legitimidade e interesse para propor ação para discutir aquela que seria a tutela final. Mas o Código é impreciso nesse ponto. Para a ação de revisão (desconstituição) da tutela estabilizada, apenas o réu (que sofre os efeitos da tutela antecipada) tem interesse jurídico. São coisas distintas.

Um exemplo deixa isso mais claro. Estabilizou-se uma tutela antecipada antecedente determinando o pagamento de alimentos ao autor pelo seu suposto pai, o réu. A estabilização, já se viu, atinge apenas a tutela de repercussão prática, consistente na determinação de pagamento de alimentos. Não há comando judicial afirmando a existência da relação de filiação. De modo que, da tutela estabilizada, o autor não retira nenhum outro efeito além da ordem de pagar alimentos. Nenhuma outra consequência da relação de filiação foi-lhe atribuída (p. ex., direito sucessório, direito ao nome etc.).

Ambas as partes têm interesse jurídico para promover ação versando sobre aquele que seria o objeto da tutela final: a existência ou inexistência da relação de filiação. É nesse sentido que deve ser compreendido o art. 304, § 2.º, no ponto em que prevê que "qualquer das partes" pode promover a ação de cognição exauriente.

Mas, para uma ação de revisão da ordem de pagar alimentos, o autor do anterior pedido de tutela antecipada não tem interesse de agir. A ninguém é dado pretender providência judicial contrária à sua própria esfera jurídica. Além disso, se o autor pretende abdicar dos alimentos, basta renunciar a eles. Isso será suficiente para extinguir a eficácia do comando impositivo dos alimentos. Então, apenas o réu tem interesse jurídico para pedir a revisão da tutela estabilizada.

7. Prazo decadencial da ação de revisão

A diferenciação destacada no tópico anterior é relevante também para a questão do prazo para propositura da demanda.

O art. 304, § 5.º, estabelece prazo de dois anos para o ajuizamento de ação de revisão da tutela estabilizada. O prazo é computado a partir da data de ciência, pela parte, da extinção do processo gerada pela estabilização da tutela provisória.

Trata-se de prazo decadencial, pois limita temporalmente o exercício de um direito potestativo (o direito de desconstituir a tutela que se estabilizou).

Mas esse prazo aplica-se especificamente à ação de revisão (desconstituição) da tutela estabilizada. Já a ação destinada à discussão do mérito da pretensão principal não se submete àquele prazo. Poderá sujeitar-se eventualmente a outros prazos decadenciais ou prescricionais, conforme a pretensão veiculada. No exemplo acima dado, a ação de investigação de paternidade, por sua natureza declaratória, seria inclusive imprescritível.

Então, usando-se ainda o mesmo exemplo, pode-se ter a seguinte situação: passados os dois anos sem a propositura da ação de revisão da ordem de pagar alimentos, haverá a decadência do direito à desconstituição. Mas ainda será possível que qualquer das partes promova ação tendo por objeto a relação jurídica de filiação. Se, nesse contexto, a sentença vier a declarar a inexistência da relação de filiação, estará eliminada essa duvida objetiva - e esse comando sentencial deverá ser considerado em outras ações futuras. Mas essa sentença não afetará a tutela antecipada que se estabilizou.

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*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente em Direito Processual (USP). Mestre e doutor (USP). Professor da UFPR.

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