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Uma lição de licença

Licenciar uma marca significa mais do que autorizar terceiro a utilizar um símbolo comercial. Por trás de todo licenciamento existe a intenção de construir uma imagem, fomentar negócio, serviço ou produto.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Atualizado em 18 de outubro de 2016 08:33

A recente e badalada mudança no uso exclusivo da marca Ovomaltine®, que saiu de uma longa relação com o Bob's® e foi para o McDonalds®, trouxe a atenção do mercado e dos profissionais da área para as implicações práticas do licenciamento de marcas e seus respectivos contratos. Segundo as informações tornadas públicas sobre o caso, o Bob's® detinha, desde 1959, o uso exclusivo da marca Ovomaltine® para oferta e comercialização de milk-shakes. O produto fez tanto sucesso que virou símbolo e preferência entre os consumidores, chegando ao ponto de Ovomaltine® não ser identificado como uma marca de terceiro, mas como sinônimo de milk-shake crocante de chocolate.

Agora, depois de prováveis longas negociações, o McDonalds® obteve o direito, de usar de forma exclusiva, a marca no milk-shake de seu cardápio, esperando atrair os fiéis consumidores da bebida e alavancar suas vendas no segmento. É importante ressaltar, entretanto, que o uso do achocolatado Ovomaltine® não foi restringido a uma rede de fast-food, uma vez que se trata de produto disponível no mercado. Em outras palavras, qualquer restaurante poderá utilizar o achocolatado em seus milk-shakes, sorvetes e demais sobremesas, mas, obviamente, não poderá usar a marca em seu cardápio para atrair o consumidor. Uma pequena e importante nuance, própria de negociações envolvendo o uso de marcas.

O caso acima demonstra que licenciar uma marca significa mais do que autorizar terceiro a utilizar um símbolo comercial. Por trás de todo licenciamento existe a intenção de construir uma imagem, fomentar negócio, serviço ou produto, seja através de uma nova marca ou a partir do prestígio adquirido por uma marca já consolidada após anos de investimentos. Para tanto, um contrato bem estruturado é essencial para garantir que licenciante e licenciado estabeleçam uma relação pautada em direitos e deveres claros e objetivos, com foco principal na manutenção do bom nome e bom uso da marca.

A prática deixa evidente que um contrato mal redigido pode significar, no curto e no longo prazo, a troca de inúmeras notificações extrajudiciais, desentendimentos acerca do que é ou não obrigação contratual, anos de disputa judicial, a perda do prestígio da marca ou, como em muitos casos, a perda de anos de investimentos realizados na consolidação de um produto ou serviço no mercado.

Para que se possa evitar os desgastes enumerados acima, um contrato de licenciamento deve seguir algumas diretrizes e apresentar certas disposições essenciais em sua estrutura básica. Vamos a elas.

Primeiramente, o contrato deve possuir a qualificação completa e correta das partes, incluindo o endereço e número do CNPJ das empresas envolvidas. Pode parecer básico, mas é importante verificar se as empresas contratantes estão regularmente inscritas no cadastro do Ministério da Fazenda. Também é recomendável que se solicite cópia dos atos constitutivos, para verificar a estrutura básica da empresa, bem como os sócios/acionistas, que serão envolvidos na execução do contrato.

O objeto deve ser bem delimitado, com indicações específicas dos produtos e/ou serviços que utilizarão a marca licenciada. No caso paradigma, o uso da marca estava limitado a um produto, de maneira que a utilização em outro poderia implicar na violação de direitos de terceiros.

É importante que se determine a forma que a marca deve ser empregada e os padrões que devem ser respeitados em sua utilização. Isto não quer dizer que o contrato tenha que estabelecer de forma estática a maneira específica de utilização da marca, mas sim que deve restar formalizado quais parâmetros o licenciado deverá seguir em sua operação. Em outras palavras, recomenda-se que o contrato estabeleça quais manuais o licenciado deverá seguir, os procedimentos para proposição e aprovação de produtos e formas de utilização da marca, dentre outros aspectos relacionados. Neste contexto é que se insere a cláusula do controle de qualidade. É altamente recomendável que se preveja em contrato a forma pela qual o licenciante exercerá seu direito de garantir que os produtos e serviços que utilizam a marca licenciada estejam de acordo com a qualidade que se pretende transmitir aos consumidores. Para tanto, o licenciante pode estabelecer visitas às instalações produtivas e estoques do licenciado, envio de produtos em determinada periodicidade ou o respeito às diretrizes estabelecidas por órgãos de controle de qualidade.

Ademais, recomenda-se que se indique no contrato quais marcas serão licenciadas e seus respectivos números de registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o INPI. Isto permitirá que as partes saibam de maneira clara quais marcas farão parte da licença, baseadas no que se encontra no órgão governamental responsável pela atribuição dos direitos marcários ao titular da marca, que quase sempre é o licenciante. Quase sempre, pois uma marca também pode ser objeto de sublicença e, neste caso, o sublicenciante não é o titular dos direitos sobre a marca licenciada.

O contrato deve estabelecer o prazo de vigência da licença e as hipóteses de renovação, caso aplicável. Cláusulas de vigência confusas podem ter impacto significativo caso uma das partes resolva retirar-se da relação contratual.

Recomenda-se também que o contrato preveja e enumere de maneira clara as formas e hipóteses de resolução. Se mal redigidas, estas disposições podem causar graves transtornos caso a relação entre as partes não se desenvolva da forma esperada. Esse ponto merece especial atenção das partes, visto que representa importante ferramenta contratual no caso de insucesso do negócio, possibilitando às partes terminarem o acordo da maneira menos prejudicial possível.

Tratando agora de diretrizes formais, é importante que o contrato seja redigido em formatação que possibilite uma leitura confortável. O dia a dia demonstra que contratos redigidos sem espaçamento e com letras pequenas, por exemplo, causam uma sensação de desgaste durante sua leitura, dificultando a compreensão e interpretação. Portanto, é melhor que o contrato tenha muitas páginas, mas uma fonte maior, que poucas páginas e uma fonte pequena.

Formatação da página, separação do contrato em cláusulas temáticas, enumeração dos dispositivos e a inserção dos famosos "considerandos", são também bastante úteis para a elaboração de um instrumento organizado e de fácil leitura. Hoje as decisões comerciais têm que ser tomadas de forma rápida, necessitando que a checagem de algum dispositivo contratual seja feita de maneira imediata. Por isso, um contrato organizado em sua formatação ajudará a economizar tempo valioso.

No que se refere propriamente à redação dos termos contratuais, recomenda-se que o profissional responsável por fazê-lo preste bastante atenção às nomenclaturas e termos específicos, que são comumente utilizados para facilitar a leitura e compreensão do contrato. Portanto, é importante que se mantenha a coerência e equivalência entre nomenclaturas, para que não haja mal-entendidos posteriormente.

O nome e cargo dos representantes das partes, bem como a data e local de assinatura devem ser indicados no contrato. A ausência destas informações básicas causa transtornos relevantes quando o contrato precisa ser revisitado. Muitas vezes isso ocorre anos depois de sua assinatura. Sem indicação de data não se pode verificar, por exemplo, em que momento de sua vigência o contrato se encontra, quando ele expirará ou quando está na hora de prorrogar, coisas essenciais para o planejamento comercial das empresas envolvidas.

É importante também que duas testemunhas assinem o contrato e indiquem nome e o número de um documento de identificação. Sempre bom lembrar que o cumprimento destas formalidades é de grande relevância para execução do contrato, principalmente no caso de descumprimento, uma vez que o torna título executivo extrajudicial.

Por fim, destaca-se como diretriz principal a elaboração do contrato em linguagem de fácil compreensão. Isto significa dizer que é preciso abandonar o "juridiquês" e redigir o documento de forma que não só os advogados envolvidos, mas principalmente as partes e aquelas pessoas que efetivamente recorrerão ao contrato com frequência, não tenham dúvidas de seu conteúdo e das obrigações e deveres lá contidos.

A observância dos pontos anteriores não será suficiente à redação de um contrato de licenciamento completo, uma vez que muito de seu conteúdo possui cunho comercial e, portanto, depende das negociações entre as partes. Mas, é seguro afirmar que, uma vez seguidas as orientações acima, o resultado final será um instrumento que, no mínimo, possibilitará uma relação jurídica segura entre as partes, que não terão dúvidas de seus deveres e obrigações e quem sabe, possam construir um negócio tão longevo quanto foi o do Bob's® e Ovomaltine®.
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*Guilherme Alves e é advogado do escritório Daniel Advogados. Graduado pela UFRJ.



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