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A lei de tráfico de pessoas e a remoção de órgãos humanos, por Eudes Quintino

A lei de tráfico de pessoas e a remoção de órgãos humanos

Trata-se de crime praticado mediante ação múltipla, com a descrição de várias condutas, representadas por verbos diferentes, inseridos no mesmo tipo penal e basta a realização de uma só delas para que seja consolidado o ilícito.

domingo, 23 de outubro de 2016

Atualizado em 21 de outubro de 2016 11:48

A lei 11.106, de 28/3/2005 alterou alguns dispositivos do Código Penal e a ele acrescentou o artigo 231-A que prevê o delito de tráfico internacional de pessoas, consistente em promover, intermediar ou facilitar a entrada no território nacional, de pessoa que venha a exercer prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no exterior. Também traz o tipo penal de tráfico interno de pessoa, nas modalidades de promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoa que venha a exercer a prostituição.

Nas duas modalidades, conforme se observa, o combate é voltado para a exploração sexual, seja no território nacional ou fora dele.

A lei 13.344, sancionada em 7/10/2016, ainda na vacatio legis, com vigência para 45 dias, teve origem nos resultados obtidos na Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico Nacional e Internacional de Pessoas, que tramitou perante o Senado Federal, acrescenta agora o artigo 149-A no Código Penal, o crime de tráfico de pessoas, numa dimensão mais ampla do que a lei anterior, compreendendo o recrutar, o agenciar, o transportar, comprar ou alojar pessoas, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: a) remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano; b) submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; c) submetê-la a qualquer tipo de servidão; d) adoção ilegal; e) exploração sexual.

Somente o primeiro item, remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, será objeto do presente estudo.

Os avanços científicos, principalmente os relacionados com os transplantes humanos, que vêm desempenhando um fator importante para qualidade de vida do cidadão, assim como para sua longevidade, representam uma grande conquista da humanidade. Mas, ao mesmo tempo, exige um acompanhamento mais rigoroso justamente para que os procedimentos sejam realizados no âmbito da legalidade. A legislação brasileira a respeito dos transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano permite somente que a doação em vida seja feita por pessoa juridicamente capaz, para o cônjuge, ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou para qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial. Já a doação post mortem só pode ser feita pelo cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a regra sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. (lei 9.434/1997).

Com efeito, o sucesso das variadas modalidades de transplante, despertou a atenção de especuladores que, clandestinamente, começaram a praticar o comércio com a venda de órgãos humanos, no chamado mercado negro. "Quase sempre, afirmam com a costumeira segurança Berlinguer e Garrafa, as informações sobre os casos de comércio de funções e partes do corpo humano se referem a dois sujeitos: um pobre, o vendedor, e um outro dotado de maiores conhecimentos, poderes e poder de compra, que é o recebedor-comprador. Entre os dois se coloca organicamente uma terceira figura: o intermediário ou procurador, que age individualmente ou, o que é mais comum, como representante de uma empresa"1.

A lei 9.434/97, que cuida da disposição de tecidos e órgãos do corpo humano, traz elencados nos artigos 14 a 20 vários tipos penais referentes a condutas relacionadas com remoção, compra, venda, transporte, guarda ou distribuição de órgãos humanos, assim como realização de transplante ou enxerto sabendo que as partes do corpo humano foram obtidas em desacordo com o dispositivo da lei.

A novatio legis em comento, por sua vez, que introduziu a nova norma incriminadora ao artigo 149-A do Código Penal, no entanto, carrega uma tutela penal diferenciada, pois abrange o homem em sua individualidade, na sua mais ampla liberdade, conferindo a ele todos os suportes protetivos compreendidos nos princípios da dignidade da pessoa humana, da promoção da cidadania e dos direitos humanos, dentre outros.

Trata-se de crime praticado mediante ação múltipla, com a descrição de várias condutas, representadas por verbos diferentes, inseridos no mesmo tipo penal e basta a realização de uma só delas para que seja consolidado o ilícito. Cada uma revela, dentro da elasticidade a ser retirada dos núcleos do tipo, que o agente age em seu próprio interesse ou faz parte de um grupo bem organizado, com funções adredemente distribuídas e espalhadas nas diversas rotas, incluindo as de turismo, para a realização de transplantes, numa perfeita conexão nacional e internacional para a retirada de órgãos bem cotados no mercado negro, deixando antever a finalidade lucrativa contida na intolerável conduta, agindo sempre com emprego de grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, contra as incautas vítimas.

Ludemir, em impressionante relato, faz ver que a escassez de órgãos para transplantes, provocou um interesse mundial, ditado pelo mercado negro: "Surgiram verdadeiros "pacotes" de viagem para levar os pacientes renais crônicos da Europa, América do Norte e Japão para operações clandestinas, em hospitais conhecidos no próprio dia do transplante. Em 1998, essas iniciativas custavam US$ 200 mil. Incluíam a viagem de avião, a comissão de agentes de aduanas e aeroportos, a dupla operação (a extração do rim e o transplante), o aluguel de clínicas privadas e a hospedagem de familiares"2.

O recrutar compreende toda ação de seleção de uma ou mais pessoas, reunindo-as e concentrando-as num só local, para a facilitação das outras fases da empreitada criminosa. Agenciar revela a intenção de participar da proposta criminosa como agente ativo ou intermediário, exercendo geralmente certa liderança no comando das ações, buscando pessoas e as oferecendo para a remoção de seus órgãos, como se fossem meras peças de reposição; o comprar, a mais hedionda das condutas, revela de forma inequívoca a vontade de realizar comércio com seres humanos, introduzindo-os no comércio paralelo como se fossem bens de circulação negocial, com valores altamente cotados pelos mercadores. O alojar significa dar guarida, dar o teto provisório às vítimas que, de uma forma ou de outra, foram selecionadas e se encontram custodiadas com a segurança necessária.

É interessante observar que, pela leitura extraída do novo tipo penal, vencida a primeira fase da conduta, com a realização total ou parcial da ação, ocorre a ofensa à liberdade individual da vítima, proprietária de um inesgotável latifúndio chamado corpo humano, que carrega a semente universal da continuidade da humanidade. Se, porém, forem praticadas outras condutas relacionadas agora efetivamente com a remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, aplicam-se os crimes catalogados nos artigos 14 a 20 da lei 9.434/97, de acordo com a regra do concurso material prevista no artigo 69 do Código Penal.

No mesmo sentido o entendimento do arguto promotor de Justiça César Dario Mariano da Silva: "Nos casos de crimes posteriores serem efetivamente cometidos, aí sim haverá concurso material entre eles (art. 69 do CP), que atingem diferentes bens jurídicos da vítima"3.

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1 Berlinguer, Giovanni; Garrafa, Volnei. O mercado humano; tradução Isabel Regina Augusto. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2 ed., 2001, p.158.

2 Ludemir, Julio. Rim por rim. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 265.

3 Novo tipo penal de tráfico de pessoas - primeiras impressões.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.

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