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O problema do peso do funcionalismo no orçamento público - ou: o sistema de justiça* não é o vilão

Uma análise fria e calcada em números mostra que não há um problema de superlotação de nossa máquina pública, mas sim de distribuição, alocação e racionalização.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Atualizado às 08:13

Frequentes são as reportagens que acusam a superlotação da máquina pública, os salários exorbitantes do funcionalismo, o excesso de servidores comissionados, e o peso extravagante do gasto com agentes públicos nos orçamentos das três esferas da Federação. Direitistas liberais e estatistas de esquerda pelejam sobre o tema. Liberais partem do princípio de que a máquina, como um todo, é superlotada e advogam o seu enxugamento, extinções de cargos, e contenção de aumentos salariais. Os esquerdistas, socialdemocratas, nacional-desenvolvimentistas e filo-socialistas, a seu turno, defendem que, na verdade, faltam servidores, remunera-se mal os que temos e que os gastos com o funcionalismo não são problemas relevantes de nossa economia, mas sim os juros escorchantes pagos ao sistema financeiro e a baixa tributação de grandes fortunas. Em nossa opinião, ambas as correntes ideológicas têm razão em parte, mas se equivocam nas generalizações. Uma análise fria e calcada em números mostra que não há um problema de superlotação de nossa máquina pública, mas sim de distribuição, alocação e racionalização.

Dez milhões1, aproximadamente, segundo o IBGE, é o número total de servidores públicos nas três esferas da Federação, entre agentes políticos e agentes administrativos. Estão incluídos servidores concursados, de carreira, e servidores comissionados, não concursados, espalhados por todo o território nacional, numa escala hierárquica que vai do Presidente da República a um agente de uma agência do INSS em uma cidadezinha de Roraima; do Ministro da Fazenda a um técnico da receita federal empregado numa agência em Lages-SC; de um desembargador do TJMG a um humilde escrevente lotado em Porteirinha-MG. Dez milhões representa cerca de 5% da população. Não é uma percentagem exorbitante. A União conta com cerca de dois milhões de servidores que se espraiam do Oiapoque ao Chuí, lotados em uma galáxia de órgãos e superintendências, departamentos, seções, secretarias, cartórios, subsecretarias e mesmo sinecuras dos três poderes. Constituem, portanto, 1%, aproximadamente, de nossa população, e consomem 5% de nosso PIB, conforme dados do Ministério do Planejamento. Mais uma vez não é um número nada absurdo, tendo em vista que, mesmo os defensores ideológicos de um estado mínimo, devem reconhecer que a União, para exercer as suas mínimas funções (segurança pública, aplicação da justiça, fornecimento de previdência e um mínimo saúde e educação aos mais carentes), necessita de uma mão de obra robusta e que destinar 5% de nossa população e 5% de nossas riquezas totais para o exercício destas funções não é nada superabundante.

Em relação à população economicamente ativa, de acordo com reportagem do Correio Brasiliense, de 30/10/16, de cada 100 trabalhadores brasileiros, 12 são servidores públicos, enquanto dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que a média nos países desenvolvidos é de 21 funcionários para cada 100 empregados. Dinamarca e Noruega, ex.gr., empregam um terço de seus cidadãos economicamente ativos no funcionalismo público2. Ainda segundo dados da OCDE, a França emprega 17,9% de sua força de trabalho no setor público, e o Reino Unido, mesmo após a revolução desestatizante de Margareth Tatcher, 21,5%.3

Não há, pois, um problema de superlotação. Políticos e ideólogos de esquerda e sindicalistas de servidores públicos têm plena razão neste ponto.

Por outro lado, é inequívoco que o funcionalismo em todas as esferas de Poder e da Federação custa muito caro ao erário da União, Estados e Municípios, consumindo receitas que poderiam ser aplicadas em recursos materiais para os serviços e para o investimento públicos. Isso é um fato difícil de contestar e a direita liberal, preocupada com o bolso do contribuinte, acerta em sua crítica, neste aspecto. No orçamento da União, o gasto com o funcionalismo é de cerca de 39% das despesas totais. Já chegou a um insustentável percentual de 54% em 1995, antes da entrada em vigor da lei de Responsabilidade Fiscal. É um percentual alto, responsável, em grande medida, por nossa astronômica carga tributária, com impactos negativos sobre a geração de empregos, o crescimento da produtividade e o investimento na própria qualidade dos serviços públicos. Há sim que se "cortar na carne" estas despesas, como disse um improvável candidato evangélico-liberal nas eleições presidenciais de 2014. Mas em que âmbitos e setores se deve cortar? Ou não seria melhor realocar? Onde há excesso e onde há escassez de agentes públicos? Os números revelam que o problema é de racionalização dos gastos com o funcionalismo, de alocação e de distribuição, não de superlotação.

Pois bem, onde cortar e/ou realocar? No Judiciário federal que acaba de receber 41% de reajuste salarial, o que causou revolta a muitos contribuintes de verde-e-amarelo? Não nos parece. Averiguemos comparativamente as outras esferas do Poder. O Governo Dilma chegou a contar com 39 Ministérios. A reforma ministerial de Temer diminuiu o número para 26, mas ainda é um excesso em comparação com a maioria dos países desenvolvidos. Durante o Governo Dilma, o gasto com os Ministérios chegou a cerca de 400 bilhões de reais, dando emprego a 113 mil servidores comissionados (ou apadrinhados?)4.

Os Ministérios já contam com cerca de 757 mil servidores de carreira, concursados. É de se indagar se há realmente necessidade de se empregar ainda mais servidores estranhos ao quadro. Por que empregar mais 113 mil servidores com vencimentos altíssimos? Por que não se aproveitam os servidores estáveis do quadro para as funções de livre nomeação e exoneração? As respostas adiante parecem-nos óbvias. Não negamos que cargos de altíssima responsabilidade e complexidade, Secretarias de Ministérios, por exemplo, muitas vezes necessitam da contratação de sumidades não empregadas no serviço público, por uma questão de mérito e capacitação. Mas não é crível que todos os 113 mil estavam do Governo Dilma estavam nesta situação.

As respostas evidentes para as questões levantadas são: fisiologismo, patrimonialismo e nepotismo, males que remontam à expedição de Martim Afonso de Souza (1530-1532), conforme já foi fartamente explorado pela nossa literatura política desde o clássico "Os Donos do Poder" (1.958) de Raymundo Faoro, jurista, historiador e politólogo de linhagem weberiana.

É compreensível que o Executivo conte com um número maior de servidores comissionados, devido ao grande número de Ministérios. Mas se nele o número já é excessivo, no Congresso Nacional, que emprega 28 mil funcionários, sendo 70% deles comissionados, conforme informações do Portal Congresso em Foco5, o excesso é de uma desproporcionalidade abissal. Só no Senado, cada Senador emprega, em média, 140 assessores. O Senador Fernando Collor, por exemplo, possui cerca de 90, segundo reportagens amplamente divulgadas na web.

Estes números nos mostram onde está o cerne do problema: o establishment político de Brasília6, tomando de empréstimo uma expressão tão cara aos norte-americanos e tão presente em suas últimas eleições presidenciais. E a razão desta superlotação esdrúxula de servidores comissionados no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e no Congresso, repitamos, é simples e óbvia: fisiologismo, nepotismo, patrimonialismo. Some-se a isso o nosso ineficiente presidencialismo de coalizão que obriga os titulares do executivo a agraciarem a base aliada com cargos para garantir a governabilidade.

De certo, este exército de assessores, muitos deles "aspones", é composto de apaniguados políticos, familiares, familiares de credores de campanha, cabos eleitorais, militantes desempregados provenientes da UNE, da CUT ou das máquinas partidárias às direitas e às esquerdas, por exemplo. Certamente, entre estes "marajás" estará, em hipótese, um filho formado em Direito de um colega Senador que, de tanto jogar videogame ou fumar cannabis na faculdade, não consegue passar na prova da OAB (nepotismo cruzado).

Dos diversos órgãos dos três Poderes, aquele em que há menos excesso, parece-nos, é o Judiciário. Na esfera federal, a desproporção entre o número e o gasto com servidores do Legislativo em relação ao Judiciário é aberrante. Apenas os dois prédios do Congresso em Brasília despendem 7,4 bilhões com servidores públicos, conforme dados do Ministério do Planejamento. Enquanto todo o Judiciário da União (Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar, além do STF), que conta com 60 tribunais, incluindo os superiores e os regionais - STF, STJ, TST, TSE e STM, 5 TRF, 24 TRT e 26 TRE, além de milhares de varas - consome 24,3 bilhões com servidores. A desproporção é gritante: apenas as duas casas legislativas têm um custo com funcionalismo público equivalente a 30% do que se gasta com os servidores de 60 órgãos do Judiciário Federal, incluindo suas sedes e suas milhares de varas de primeira instância espalhadas em todo território nacional onde há, inequivocamente, muitíssimo mais trabalho que no Congresso Nacional.

Em grande medida, a morosidade do judiciário se deve à escassez de juízes, promotores, procuradores e defensores públicos. Há aí, portanto, um evidente problema de alocação e distribuição racional do funcionalismo.

Mesmo dentro do executivo há um problema grave de distribuição. Gasta-se tanto para empregar assessores em Ministérios de relevância social duvidosa, em funções de relevância zero, enquanto áreas fundamentais ficam carentes de recursos humanos e materiais, como acontece com os presídios ou com a PF e a representação diplomática. Há também uma multidão de humilhados e ofendidos de parcos recursos sem uma defesa judicial efetiva porque faltam defensores públicos, enquanto sobejam "aspones" nos Ministérios. Há uma multidão de miseráveis desassistidos de atendimento médico, psicológico e odontológico nas regiões mais pobres do Brasil, enquanto o Legislativo Federal emprega um batalhão de xerocadores de papel pagos a peso de ouro. Um porteiro do Congresso Nacional recebe 9 vezes mais que um policial no Espírito Santo.

O serviço público não tem como função reduzir o desemprego, mas prestar serviços de qualidade e relevância ao povo soberano.

O problema da nepotista, patrimonialista, desproporcional e perdulária distribuição do gasto com o funcionalismo não está só dentro da União, mas também na relação da União com os demais entes federativos. Não é preciso invocar números para notar a obviedade de que é nos estados que se concentra o grosso dos professores públicos, dos agentes de segurança pública (policiais civis e militares, agentes penitenciários) e de servidores do judiciário. A demanda das Justiças e MPE é muitíssimo maior que das Justiças e MPF, conforme dados do CNJ, contudo os órgãos estaduais dispõem de menos recursos materiais e seus servidores recebem menor remuneração. A razão da disparidade também é evidente: o canhestro pacto federativo de nosso Estado altissimamente centralizado, no qual a fúria arrecadatória da União deixa os estados e municípios à míngua.

Estas incongruências, desequilíbrios e desproporcionalidades revelam que a máquina administrativa brasileira, per se, é uma crônica e dificilmente vencível afronta a diversos princípios constitucionais, a começar pelo princípio da igualdade. É uma máquina inconstitucional.

A "falência" do Estado do Rio de Janeiro, a lastimável situação dos presídios do Norte do país ou a greve de policiais militares do Espírito Santo têm, em larga medida, entre suas razões a pantagruélica voracidade arrecadatória da União.

As esquerdas, sociais democratas, filo-socialistas e sindicalistas do serviço público minimizam o problema do peso ou das disfunções do funcionalismo, lançando toda a culpa de nossa altíssima carga tributária, da má qualidade dos serviços, da injusta distribuição de renda, do desemprego e de nosso ridículo crescimento econômico, nos juros altíssimos da dívida pública e no estamento financeiro que se beneficia dela.7 Tem razão em parte, mas minimizam o problema do desperdício de dinheiro público da máquina administrativa, que incluem os gastos com servidores empregados em funções irrelevantes ou que são remunerados de forma desproporcional ao nível de relevância de sua função, bem como à sua produtividade.

Equivocam-se, também, em pensar que o estamento financeiro comanda o establishment político de Brasília, uma visão equivocada que tem como esteio a falaciosa teoria da "superestrutura" de Karl Marx. Em verdade, o estamento político e o financeiro vivem em simbiose, em relação de coordenação, não de subordinação, e é exatamente isto o que a Ciência Política chama de patrimonialismo. Veja-se o exemplo do primeiro Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma: sua indicação foi compactuada com o CEO do Bradesco. E esta simbiose independe de siglas, e de ideologias políticas. Nenhum partido demonstra estar alheio a estas associações nefastas. Os juros da dívida pública, assim como a baixa tributação dos mais abastados são apenas parte do problema de nosso Estado. De fato, há que se auditar a dívida pública e de se corrigir as distorções no sistema tributário. Mas não se deve desdenhar o gasto perdulário com servidores públicos e com a distribuição irracional e fisiológica da despesa com pessoal.

Direitistas liberais, por outro lado, costumam ter uma visão distorcidamente maximizada da superlotação do estado, e soluções simplistas como extinções gerais de cargos ou privatizações.

"Para todo problema complexo, há uma solução simples, elegante e errada!", sábia boutade do jornalista norte-americano H.L. Menchen (1880-1956). Neste engodo caem, conscientemente ou não, os ideólogos da direita e da esquerda.

Por derradeiro, é preciso anotar que nada há de mal algum em que servidores públicos sejam bem remunerados. Muito pelo contrário, devem sê-lo para que se atraia e se mantenha mão de obra mais bem qualificada, com resultados positivos para o bom andamento dos serviços públicos, bem como para que se evite a corrupção. Mas é preciso que estes servidores executem tarefas e funções de real relevância social e recebam proporcionalmente a sua produtividade e relevância funcional. Há que se cortar, realocar e redistribuir racionalmente.

Parece-nos, em conclusão, ser evidente que o problema real e grave do peso do funcionalismo no orçamento é antes um problema de distribuição, alocação e racionalização que de superlotação, ou de "inchaço", e que o cerne do problema não está no Sistema de Justiça (Judiciário, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas), mas no establishment de Brasília encastelado no Executivo e no Legislativo Federais.
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* Adotamos a expressão Sistema de Justiça para não restringir a análise ao Poder Judiciário, incluindo também os Ministérios Públicos e as Defensorias Públicas.

1 Fonte: Portal Inovare Pesquisa. Reportagem: "Os Servidores Públicos no Brasil", de 23/11/15. Disponível em clique aqui. Acesso em 9/2/17.

2 Fonte: Correio Brasiliense. Reportagem: "Brasil tem menos servidores públicos que os países desenvolvidos", de 30/10/16. Disponível em clique aqui. Acesso em 8/2/17.

3 Fonte: Nexo Jornal. Reportagem: "Por que o número de servidores públicos a cada mil habitantes cresceu 42% em 14 anos", de 9/8/16. Disponível em clique aqui. Acesso em 8/2/17.

4 Fonte: Revista IstoÉ. Reportagem: "A Insustentável Máquina do Governo", de 1/4/15. Disponível em clique aqui. Acesso em 10/2/16.

5 Fonte: Portal Congresso em Foco. Reportagem: Congresso tem 70% de funcionários comissionados, de 28/7/14. Disponível em clique aqui. Acesso em 10/2/17.

6 O que não quer dizer que o problema se repita nas cúpulas dos Governos Estaduais e Municipais. Veja-se o exemplo do Executivo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo.

7 Veja-se, por exemplo, a opinião do consultor de Ciências Políticas do instituto ILAESE, publicada no site do Sindicato dos Servidores do Judiciário Federal em Minas Gerais: clique aqui. Acesso em 8/2/17.

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*Vinícius de Oliveira é analista Judiciário da União lotado no TRE-MG.


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