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A vida e a morte disputando o mesmo corpo, por Eudes Quintino

A vida e a morte disputando o mesmo corpo

A vida humana, de inestimável valor, deve prevalecer em qualquer hipótese de perigo e cabe ao homem praticar as condutas necessárias para fazer prevalecer a spes vitae.

domingo, 12 de março de 2017

Atualizado em 10 de março de 2017 12:41

Uma mulher, com 21 anos, grávida de gêmeos, sofreu uma grave hemorragia cerebral. Levada ao hospital, apesar dos esforços médicos, o quadro evoluiu para pior e três dias após a internação foi decretada sua morte encefálica. A gestação iniciava o segundo mês e a equipe médica decidiu mantê-la biologicamente viva para que os embriões pudessem se desenvolver. Um verdadeiro aparato médico envolvendo também enfermeiros, fisioterapeutas e nutricionistas monitoraram 24h a gestação artificial. Até música infantil fez parte do ambiente da UTI. Os bebês nasceram pouco antes de completar sete meses, com saúde compatível com os prematuros desta idade.

Elogiável a conduta da equipe responsável pela manutenção da gestação, que não mediu esforços para conseguir salvar as crianças, certamente com o apoio e autorização da família e até mesmo com a manifestação favorável da Comissão de Ética Médica do hospital. É de se observar que qualquer conduta contrária por parte dos médicos, em havendo condições de viabilidade dos embriões, seria, do ponto de vista legal, a prática de um aborto, além da inevitável quebra do Juramento hipocrático. E, nesta linha de raciocínio legal, sem querer hierarquizar os seres, a vida da mãe vale mais do que a do embrião, permitindo-se, nesta hipótese, o aborto (art. 128, inciso I Código Penal).

A morte encefálica, diferentemente da cardiopulmonar, introduzida há pouco tempo na área médica, justamente para facilitar a doação de órgãos, tem lugar quando todas as medidas de suporte vital resultaram fracassadas, fazendo ver que o paciente encontra-se em situação de irreversibilidade absoluta. Não se confunde com a prática eutanásica, que é a conduta em que, por ação ou omissão, alguém antecipa a morte de um doente que, apesar da gravidade da doença, ainda tem vida encefálica.

No Brasil, a decretação da morte encefálica foi permitida pela lei 9.434/1997, estabelecendo que será registrada por dois médicos que não sejam participantes da equipe transplantadora e que obedecerão, obrigatoriamente, os critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. O primeiro deles consiste na realização do exame clínico, que deve ser repetido pelo prazo mínimo de seis horas de observação. O segundo deve ser realizado obrigatoriamente por um médico neurologista. Após, faz-se o exame complementar utilizando-se a angiografia cerebral, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral ou ultrassom cerebral com DOPPLER e outros, se necessários.

Vencido tal procedimento, o paciente é juridicamente declarado morto. Tem-se que, apesar dos sinais vitais permanecerem, a vida já se escoou e o corpo humano nada mais é do que um cadáver. Assim, no caso da mãe que teve a morte encefálica declarada, toda conduta daí por diante foi realizada no cadáver, seguindo as normas éticas e jurídicas para tanto. Todo o tratamento dispensado foi no sentido de manter a mãe como se viva fosse para que pudesse exercer com sucesso a função de incubadora viva.

Desta forma, como por ironia, habitam o mesmo corpo a vida e a morte e, fora dele, receptores aguardam a doação de órgãos. A morte, já consumada, independentemente de qualquer utilização que se queira dar aos órgãos, tecidos e partes do cadáver, desde que haja o consentimento do cônjuge ou parente na linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. A vida, por representar o bem maior e supremo do homem, patrocinada com todo privilégio pela Constituição Federal, detentora de privilégio absoluto. E sem necessitar do consentimento de qualquer parente legitimado. No embate entre os dois opostos, a vida tem toda a preferência, mesmo em se verificando no útero de mãe já morta. Tanto é que a hipótese de aborto foi descartada pela própria legislação penal, deixando a entender que, com a morte da mãe, os embriões que se encontravam em condições de continuar sua peregrinação uterina, seriam também declarados mortos.

Diante de tal quadro, os gêmeos que habitavam a silenciosa clausura, tiveram todo o aparato médico para que pudessem nascer com condições de saúde condizentes com a desconfortável situação em que se encontravam.

Tais nascimentos são abrigados pelo pensamento bioético e contam com a aprovação do Direito. A vida humana, de inestimável valor, deve prevalecer em qualquer hipótese de perigo e cabe ao homem praticar as condutas necessárias para fazer prevalecer a spes vitae.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.

 


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