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O zelo pela vida leva à dignidade da morte, Eudes Quintino

O zelo pela vida leva à dignidade da morte

É certo e incontestável que a vida é indisponível e como bem de infinita grandeza deve ser protegida de todas as formas.

domingo, 9 de abril de 2017

Atualizado em 7 de abril de 2017 10:33

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 1º, III, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A inserção desse princípio no texto constitucional atendeu os reclamos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, homologada pela resolução da Assembleia Universal das Nações Unidas que, em seu artigo I, proclama, in verbis:

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito da fraternidade.

O artigo 5ª da mesma Carta consagra o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, reafirmando a confiança na raça humana para que, com igualdade e respeito, o homem possa atingir suas mais altas aspirações, num regime de liberdade de pensamento e realizações coletivas tomadas de comum acordo pelo grupo social.

O homem é tutelado pelo Estado desde sua concepção. Seria uma modalidade do welfare state americano. Durante a vida intrauterina o feto goza de toda proteção e, se for molestado por práticas abortivas, que não aquelas consideradas legais, o agente responderá pelo ato criminoso. Se a própria mãe, sob influência do estado puerperal, vier a provocar a morte do filho, será considerada infanticida. O nascimento provoca o acolhimento na sociedade e a inserção do menor nas medidas protetivas da infância e juventude. Com a maioridade, o cidadão é revestido de todos os direitos conferidos no texto constitucional e passa a ser um colaborador do desenvolvimento social e econômico da coletividade, assim como desenvolve estratégias para sua realização pessoal, familiar e profissional. Findo o período laboral, alcança a aposentadoria e se filia ao Estatuto do Idoso, que confere a ele um plus diferenciado dos direitos conquistados e acrescenta ainda outros novos.

A morte, como termo final, é consequência da vida. O Estado continua sua função tuteladora e, em razão de seus compromissos éticos e religiosos, somente admite a morte com o cumprimento do ciclo natural, sem qualquer chance de permitir a interrupção precoce da vida em situação de irreversibilidade da saúde do paciente.

A sociedade, no entanto, caminhando lado a lado com a evolução social preconizada pela própria necessidade de ajustamento do ser humano, com o consequente alargamento cultural de vários institutos até então não repensados, sofre uma transformação em sua própria estrutura, abre espaços para discussão e insere o tema da morte revestida com o verniz da mesma dignidade que foi conferida à vida.

Os mecanismos de prolongamento da vida e da interrupção do sofrimento do paciente ocupam destaque nos debates éticos e bioéticos, envolvendo médicos, juristas, psicólogos, filósofos, religiosos e outros profissionais que, de uma forma ou outra, dedicam sua parcela de contribuição ao tema. Sem falar ainda do envolvimento popular nas camadas mais simples da sociedade, que edifica o pensamento do homo medius.

Até mesmo o Supremo Tribunal Federal foi chamado recentemente a decidir a respeito do início da vida humana quando da decisão envolvendo a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, assim como a respeito do aborto de feto anencefálico. São temas que, ao mesmo tempo em que tangenciam a vida, alcançam a morte.

A distanásia, a eutanásia, a ortotanásia e o suicídio assistido são as novas configurações que frequentam a vida do cidadão brasileiro e constantemente acirram discussões fomentando a busca de uma decisão que seja coerente, correta e representativa do anseio popular. E a ortotanásia, pela sua correta e ética condução à morte, ganha a aceitação com larga margem.

A vida, desta forma, passa a ser uma preparatio mortis. De um lado situam-se os interesses individuais inerentes a cada pessoa na sua individualidade, de outro, o universalismo consubstanciado nos interesses coletivos, regradores de todos os direitos dos indivíduos. Deve-se buscar o equilíbrio apregoado por Aristóteles: virtus in medio. Ou, ainda, segundo José Canotilho, sopesar o princípio da proporcionalidade e fazer emergir o bem maior a ser tutelado. Somente assim será encontrada uma resposta coerente e condizente com a liberdade de escolha do indivíduo. Se o direito à vida é não uma dádiva, mas também uma garantia constitucional será que, em caso de doença irreversível, tal direito transforma-se em dever de sofrimento, sem que haja atuação da autonomia de vontade da pessoa em optar por uma forma mais digna de chegar ao seu final?

É certo e incontestável que a vida é indisponível e como bem de infinita grandeza deve ser protegida de todas as formas. Também é certo que as limitações, as dores e sofrimentos não devem conviver contra a vontade do paciente terminal, que é detentor de uma vontade autônoma, independente e pode, dentro do critério de racionalidade, não autorizar a própria morte, mas sim buscar o encaminhamento mais sombrio e condizente com a dignidade humana de encontrá-la.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.





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