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Uma arbitragem mortal II

O advogado traz o segundo capítulo da fábula tratando dos aspectos essenciais da arbitragem.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Atualizado em 19 de abril de 2017 07:32

A primeira parte desta narrativa (Migalhas de 29.03.17) terminou quando a senhora Morte combinou com o paciente que faria uma consulta à Administração Superior a respeito do insólito pedido da realização de uma arbitragem para o fim de resolver questões ligadas à morte do interessado, então prevista para um horizonte muito curto à sua frente. É hora de voltarmos aos fatos ocorridos desde então.

Como acontecera da última vez, de repente o paciente sentiu a presença da Velha Senhora, antes mesmo de vê-la. Desta vez ela vestia um costume de um rosa discreto e na lapela do seu casaco notava-se uma flor de um branco imaculado.

- Boa tarde, Senhora, seja bem vinda, ainda que não muito na verdade, disse o paciente. Roupa nova, não?

- É que acabei de passar pelo quarto de um recém-nascido. Achei essa roupa apropriada.

- E a Senhora não sente qualquer remorso nesses casos?

- Não sou dada a esses luxos. Além disso, do jeito que está este mundo, eu sou a melhor solução. Melhor assim do que crescer em meio a tanto sofrimento.

- Discordo, redarguiu o paciente. A esperança nunca morre. Então, como ficamos?

- Estou autorizada a prosseguir. O Chefe está curioso para saber qual será o resultado. Se bem que ele já sabe, claro.

- Eu esperava por isto. Preciso apenas de dois dias para organizar as coisas. O Tribunal Arbitral já foi escolhido pelo Samuel. Depois de amanhã estará bom para a senhora?

- Essas paralisações do meu trabalho me matam. De acordo. Vamos adiante.

- Vamos marcar às 9 horas. Tudo bem? Depois informarei o local da audiência. Mas precisamos estabelecer os termos. A minha sugestão é a seguinte. Será tudo verbal. Não precisamos de Termo de Audiência ou de Carta de Missão escritos. Fica tudo combinado no fio do bigode. Depois que o Tribunal Arbitral declarar que a audiência está instalada eu começarei com as minhas Alegações Finais com direito a meia hora de duração. A Senhora responderá no mesmo tempo. Depois eu apresentarei minha Réplica em quinze minutos e a Senhora fará a Tréplica também em quinze minutos. Em nossas falas não interromperemos um ao outro. A qualquer momento o Tribunal Arbitral poderá fazer perguntas, devendo ficar parado o relógio enquanto isto acontece. Não haverá testemunhas. Pericias só post mortem, há, há! Em seguida o Tribunal Arbitral terá meia hora para se reunir e depois dará a sentença que será definitiva. Eventualmente cada um de nós poderá pedir o suprimento de omissões, contradições ou incompletudes da sentença. O Tribunal Arbitral terá quinze minutos para responder, encerrando-se o processo com o resultado definitivo. Quem perder cumprirá a sentença de boa fé. Devo lembrar que se trata de arbitragem por equidade. Alguma observação?

- Do meu lado nenhuma. E eu sempre cumpri a minha palavra. Que sobre isto não reste dúvida. Meus clientes jamais se queixaram. Mas preciso ir. Tenho muito que fazer.

Depois que a Vetusta Senhora se foi, o paciente começou a tomar as providências necessárias para a audiência marcada. Não precisamos enfadar o leitor com a descrição de tudo o que aconteceu. Basta dizer que as coisas ficaram muito facilitadas porque durante a sua longa estadia naquele hospital o paciente fizera amizade com um dos diretores. O lugar da audiência seria uma das salas especialmente reservadas para as famílias de pacientes em risco iminente de deixar esta vida, as quais podiam contar com ajuda psicológica e/ou religiosa conforme desejassem, em um lugar recôndito e tranquilo.

No dia e hora designados, todos os participantes encontravam-se presentes na sala que havia sido preparada para a audiência. Antes disto, bem cedo pela manhã quando o paciente tomava café, o enfermeiro Samuel disse que precisavam conversar.

- O que foi, perguntou o paciente?

- Preciso lhe contar uma coisa, dotô. Quando eu fui procurar as pessoas para serem árbitros, não tive coragem de dizer a verdade. E nem eu mesmo até agora acredito em tudo isto. Então eu falei para eles que se tratava de uma peça de teatro, em que eles seriam atores.

- Samuel, você me traiu, disse o paciente enfático!

- Dotô, desculpe, mas o povo na agência de empregos ia achar que eu estava maluco. Eu até poderia ser mandado embora do hospital se alguém me denunciasse.

O paciente coçou a cabeça por uns instantes e disse:

- Acho que foi até melhor mesmo. Assim eles se sentirão mais à vontade. E a execução da sentença qualquer que seja não dependerá de qualquer medida dos árbitros. O enforcement virá de cima. Mas então o dinheiro prometido seria muito alto para apenas uma breve encenação.

- Dotô, eu ofereci bem menos e mesmo assim será uma boa grana para os três.
Na pequena sala estavam todos reunidos: partes, árbitros e o enfermeiro Samuel que funcionaria como secretário e copeiro. A Inefável Senhora viera vestida com um terninho cinza, blusa branca e sapatos altos pretos. Em seu pescoço brilhava um colar de pedras de cor verde, azul, vermelho, amarelo e negro.

- De cinza hoje, perguntou o paciente?

- Sim, respondeu a Ré. Cinza é a cor da indefinição, não é mesmo? Não sei o que acontecerá neste dia.

- E o colar?

- Representa os resultados prováveis do julgamento: amarelo, cuidado; verde, esperança; negro, seguirei em frente; azul e vermelho, um dos seus dois destinos finais, caso perca a causa.

Os três árbitros (José, Pedro e Antônio, vamos chamá-los assim. Antônio era o Presidente) mostravam-se um pouco nervosos e inquietos, mesmo depois que o paciente lhes deu todas as instruções necessárias. Chegou, então, depois das formalidades de praxe, o momento das Alegações Iniciais do paciente.

- Senhores Árbitros, disse ele, serei breve e objetivo. Este Tribunal Arbitral foi requerido para mudar a sentença de morte que pesa sobre a minha cabeça, por motivo de doença incurável, a cargo da Requerida aqui presente (Senhora Morte). Segundo o meu médico, tenho entre um a dois meses de vida, o que foi confirmado pela Ré. Desejo reverter essa decisão, tomada em âmbito superior, do qual ela é o instrumento de execução. Este é o meu primeiro pedido, ao qual está ligada uma extensão da minha vida por mais vinte anos. Terceiro ponto: quando eu morrer, bem lá na frente, desejo uma morte tranquila, sem dores e sem sofrimento, o apagar de um passarinho.

Enquanto o paciente falava, os árbitros se entreolhavam sem saber muito bem qual deveria ser a sua deixa naquela trama.

- Senhor paciente perguntou então Antônio, Nós vamos ouvir tudo o que for dito aqui e daremos uma sentença a seu favor ou contra. E depois? A peça termina?

- Sim. O enredo estará definido, respondeu o paciente, pensando uma coisa, enquanto os árbitros pensavam em outra.

- Prosseguindo, disse o paciente, trata-se de uma arbitragem a ser decidida com fundamento na equidade. Este Tribunal Arbitral analisará os argumentos que passo a expor. Na verdade, eu desejo que no meu caso seja aplicada uma solução de justiça equitativa. Mas antes de expor os meus pontos sobre a matéria de fundo, desejo reforçar o que já disse sobre o aspecto de versar o meu pedido sobre bens patrimoniais disponíveis. Como disse, posso dispor da minha vida e outros (como assaltantes que matam para roubar) também podem fazê-lo. Posso atentar a favor ou contra a minha saúde. Posso preservar o meu patrimônio ou dissolvê-lo inteiramente em uma mesa de jogo. Posso fazer um seguro de vida ou deixar que os herdeiros se virem sem uma previsão em tal sentido. Não há dúvida, portanto, quanto a este aspecto.

O paciente acomodou-se melhor em sua cadeira e prosseguiu.

- Durante toda a minha vida eu tenho procurado ser honesto e não lograr qualquer pessoa em relação aos seus direitos. Pelo contrário, sempre procurei reconhecer e agir em relação a cada um segundo o seu merecimento. Posso ter falhado em um ou outro ponto, mas quando descobri que assim havia agido eu prontamente procurei reparar o prejuízo causado. Não fiz diferença entre rico e pobre; preto ou branco; letrado ou analfabeto; católico ou budista; homem ou mulher; criança ou adulto. Ajudei muitas instituições. Posso muito ainda fazer pelos outros e para isto preciso de mais tempo.

O paciente tomou um gole de água e prosseguiu.

- Além disto, pensando em mim mesmo. Na idade em que me encontro, cheguei a um tempo de tranquilidade, podendo me dedicar mais à minha família e aos meus amigos. E olhe que ainda tenho tantos livros para ler, tanta música para ouvir, tantos lugares para conhecer. Tomando a equidade como uma forma de retribuição da prática da justiça, vejam que injustiça está presente em se antecipar a minha viagem definitiva. Enquanto muitas pessoas sobram neste mundo pelo seu extremo egoísmo e por sua inutilidade, tenho certeza de que nele eu farei alguma falta. Por isto eu peço que os meus pedidos sejam julgados procedentes.

Outros argumentos foram apresentados pelo paciente ao Tribunal Arbitral, mas os acima reproduzidos formaram o cerne de suas pretensões. Nada tendo para perguntar, o Tribunal Arbitral passou a palavra para a D. Morte.

- Prezados Senhores, esta arbitragem é um total absurdo. Preliminarmente eu sou parte ilegítima neste processo. Não é contra mim que o paciente deveria tê-la ajuizado. Eu não sou o responsável pelo fim da vida das pessoas. Sou apenas aquela que recolhe suas almas e as encaminha para os seus respectivos destinos. Sou a bala que mata, mas não sou aquele que puxa o gatilho. Obedeço às ordens que recebo sem questionar. Trato todos igualmente, tanto como o paciente diz que fez em relação aos seus semelhantes. Levo comigo no mesmo dia um imperador e o mais miserável dos mendigos, se assim sou ordenada. Deixo um inocente e encaminho um culpado. Não faço juízos de valor. Outra coisa: eu não existia, fui inventada no dia em que Caim matou Abel. Portanto, eu mesma fui criada pela ação do próprio homem e desde então minha atuação depende de um comando superior que assumiu a gestão do negócio. Não sou autônoma.

D. Morte levantou-se de sua cadeira e caminhou um pouco no espaço da pequena sala - Não me sinto bem quando estou parada, explicou. E deu continuidade às suas alegações.

- Por outro lado, não é verdade que o objeto desta arbitragem corresponda a um campo de direitos patrimoniais disponíveis. O paciente até poderia ser vendido como escravo que isto não lhe daria razão. Se ele der cabo de sua vida ou arruinar sua saúde ou o seu patrimônio, tais atos não se encontram no campo do comércio, digamos assim. A vida e a saúde colocam-se no plano da dignidade humana. E a existência de patrimônio é acidental. Milhões de pessoas não possuem qualquer bem, além da própria vida. E se ela não é respeitada, a culpa está na maldade humana.

A Antiga Senhora estava bastante agitada, andando de lá para cá, falando mesmo sem olhar os árbitros.

- E do ponto de vista do mérito, o que o paciente alegou não subsiste. No fundo, se é verdade tudo o que ele disse sobre o seu comportamento, não fez mais do que sua obrigação. Afinal de contas o dever principal de cada pessoa na vida em sociedade depende de um mandamento, amar o seu próximo como se ama a si mesmo, tirando o caso daqueles que se matam porque se amam demais. E quando se trata de um mandamento, então o julgamento é pela lei e não por equidade. E o que ele deseja, no fundo, é de natureza egoísta e não altruísta como ele afirma. Ele quer para si mesmo o benefício da vida para dividi-la com sua família e amigos; para ler; para ouvir música; e para viajar. E se afirma que ajudará outras pessoas, como disse que tem feito, mais uma vez eu enfatizo, não fará mais do que sua obrigação na sociedade em que vive.

Os árbitros e Samuel estavam como que embasbacados diante da veemência da Requerida. E para nós, ou era uma grande atriz ou acreditava mesmo em tudo o que dizia.

- Senhores membros deste Tribunal Arbitral, a pretensão do Autor se deferida irá desequilibrar todo o sistema da sociedade humana. Pela mesma regra da equidade então qualquer pessoa terá direito a suspender a sua sentença de morte para que se mantenha mais tempo no bom caminho ou tenha outra oportunidade para arrepender-se e mudar de rumo. Não haveria mais passamentos. Ou quase nenhum. Eu ficaria desempregada ou em regime de free lancer, sem carteira assinada. Outro efeito seria o da superpopulação da terra e a rápida perda de sua sustentabilidade para alimentar tanta gente. Daí que somente morrendo pessoas aos milhões é que a situação voltaria à normalidade. Tal como a peste negra, que teve o seu lado bom. Mas isto seria, portanto, um paradoxo. Insisto, portanto, em que todos os pedidos do Autor sejam julgados improcedentes.

Caros leitores, eu sei que desejam conhecer o resultado do julgamento, mas como antes teremos a réplica, e a tréplica, convém parar com a narrativa neste ponto, dando-lhe fim na próxima oportunidade.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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