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O novo processo administrativo sancionador do BCB e da CVM - MP 784/17 - (Um samba bem doido)

Verificamos que a MP 784/17 encontra-se sob alguns pontos de vista em situação de inconstitucionalidade discutível, ao mesmo tempo em que este efeito está claramente presente, quando examinada por outros ângulos.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Atualizado em 14 de julho de 2017 07:56

Tendo em vista pleitos formulados pelo BCB e pela CVM no sentido da modernização da legislação sobre a aplicação de penalidades às instituições financeiras, foi assinada a Medida Provisória acima, em seguida estudada, a partir de considerações iniciais sobre a sua constitucionalidade.

Em primeiro lugar, observe-se que a edição daquela MP se deu com fundamento no art. 62 da Constituição Federal, que permite ao Presidente da República baixar medidas da espécie com força de lei, em caso de relevância e urgência, sendo proibida sua utilização, entre outros casos, quando a matéria por elas tratadas versar sobre direito penal e que seja reservada a lei complementar.

Em primeiro lugar, indaga-se se estavam presentes os requisitos da relevância e urgência, tais como exigidos pela Magna Carta. Sem dúvida alguma a matéria é de extrema importância, tendo em vista que a legislação sobre a matéria é bastante esparsa (basta verificar a relação das normas que foram alteradas pela referida MP) e defasada no tempo. Este ponto fica claro principalmente quando se verifica a enorme velocidade com que acontecem mudanças nos mercados financeiros e de capitais, principalmente as verificadas depois das crises financeiras globais de 2007 e 2011. Era visível a necessidade de se dar aos órgãos reguladores desses dois mercados novos instrumentos para punir as irregularidades que têm sido nele praticadas. Quanto a este aspecto, não há dúvidas sobre o atendimento do preceito constitucional.

Em segundo lugar, tratando-se de urgência, é claro que o hiato existente entre a realidade das operações ilícitas nos dois mercados acima citados e a legislação até então existente mostrava a necessidade de que a matéria fosse regulada com a brevidade possível. Mas este aspecto não preencheria a característica de urgência urgentíssima, que seria o fundamento para a edição de MPs, considerando-se que o Congresso Nacional se encontra em regular funcionamento e que o Governo poderia trabalhar na busca da promulgação de uma lei sobre esse campo da atividade econômica. A contrário senso, na sociedade moderna verifica-se que tudo teria a característica de pressa e tudo, portanto, seria matéria de passível submissão a tratamento por via de MPs.

Ainda que o poder de editar MPs coloque-se no plano da discricionariedade do Presidente da República, não podem ser afastados os requisitos constitucionais correspondentes.

É claro que cabe ao Congresso Nacional examinar previamente cada MP para verificar se sua edição atende os dois requisitos citados. Mas há uma demora natural - digamos assim - em tal apreciação e uma eventual futura rejeição daquele ato pelo Legislativo determinará a necessidade de serem regulados os efeitos produzidos até a suspensão da sua validade, dentro de um ambiente de insegurança jurídica bastante sensível. Este fator é extremamente relevante quando se verifica, por exemplo, o valor elevado das multas que podem ser aplicadas pelo BCB e CVM as quais, já recolhidas aos cofres públicos, possam ter causado sensíveis efeitos negativos no patrimônio dos administrados, muitas vezes demorado e até mesmo irreversível. Com o dinheiro dos bancos (que não e deles, mas dos depositantes e investidores) não se brinca.

O terceiro ponto a ser analisado diz respeito à natureza jurídica do processo administrativo sancionador, no sentido de se verificar se ele se coloca no campo do direito penal, na modalidade de direito penal administrativo. Essa área é expressamente afastada da esfera de medidas provisórias. Ainda que haja dúvidas a respeito, podemos nos inclinar em favor da tese segundo a qual existe uma diferença entre a infração penal e a administrativa e, em consequência, no tocante às sanções correspondentes nesses dois ramos do direito. Deve-se ter em vista para tanto a crescente complexidade da organização do Estado moderno e a consequente necessidade de se dar aos órgãos administrativos maior liberdade para a fiscalização das atividades colocadas sob a sua jurisdição e a aplicação de penalidades para as hipóteses previstas na legislação/regulamentação correspondentes.

No sentido acima, segundo Celso Antônio Bandeira de Melo, a infração administrativa "é o descumprimento voluntário de uma norma administrativa para o qual se prevê sanção cuja imposição é decidida por uma autoridade no exercício de função administrativa ainda que não necessariamente aplicada nesta esfera"1.

Por outro lado, de acordo com José dos Santos Carvalho Filho, como a sanção administrativa é "o ato punitivo que o ordenamento jurídico prevê como resultado de uma infração administrativa, suscetível de ser aplicado por órgãos da Administração, e infração administrativa como o comportamento típico, antijurídico e reprovável idôneo a ensejar a aplicação de sanção administrativa, no desempenho de função administrativa"2.

Dessa maneira, sob pena de se engessar a Administração Pública, pode se entender que, ainda que similares em sua estrutura, os dois ramos do direito em questão têm natureza jurídica distinta e, considerando que não existe proibição expressa na CF quanto a MPs em matéria de Direito Administrativo, elas podem ser utilizadas nesse campo.

O quarto ponto diz respeito ao fato de que, no campo do BCB, qualquer reforma na lei 4.595/64, em cujo art. 44 se encontra a disciplina das penalidades que podem ser aplicadas a instituições financeiras, depende de Lei Complementar, categoria dentro da qual sabe-se que aquele texto legal foi recepcionado pela CF de 1988. A esse respeito o que se verifica em relação às mudanças determinadas pela MP 784, de 7/6/17 é que não elas atacaram diretamente o texto da Lei de Reforma Bancária, referindo-se, isto sim, a uma série de leis ordinárias, a um decreto-lei e a uma MP aos quais deu nova redação em parte, tendo sido inteiramente revogado o decreto-lei 448, de 3/2/69.

Poder-se-ia concluir que, sob o ângulo acima citado, a MP não teria afetado a lei 4.595/64, que continuaria em vigor. No entanto, dessa forma, haveria uma duplicidade de penas a serem aplicadas às instituições financeiras por infrações administrativas: as do art. 44 da lei supracitada; e as do art. 5º da MP sob análise.

Acontece que os artigos 1º e 2º da MP 784/17 determinam que ela se aplica ao processo administrativo sancionador, tanto nas esferas de atuação do BCB como da CVM e que estabelece o rito processual a ser observado nos ditos processos daqueles dois órgãos. Dessa forma a MP em questão teria se superposto ao art. 44 da lei 4.595/64, o que a tornaria inconstitucional. O texto somente se salvaria se fosse possível aceitar que o processo administrativo sancionador em si mesmo tornou-se uno, tendo sido estabelecido um novo regime paralelo de sanções administrativas que tão somente se teriam acrescido às do dispositivo supra.

Então seria necessário separar as infrações ao próprio texto da lei 4.595/14, puníveis na forma do seu art. 44; e as infrações aos textos das diversas leis citadas na MP, com a nova redação que lhes foi dada. Isto significaria dizer que a mesma instituição financeira poderia ser apenada com uma pena de advertência e (uma novidade) outra de admoestação pública pela prática de diferentes infrações. Ou poderiam ser aplicadas duas multas, uma com base no art. 44 do primeiro texto legal acima citado (de valor máximo módico, digamos assim) e outra de até dois bilhões de reais, com base no art. 7º, II da MP 784/17.

Interessante é verificar que, nos termos da argumentação que estamos aqui desenvolvendo, a instituição financeira poderia ter as suas portas fechadas tanto com base na penalidade do art. 44, V da Lei de Reforma Bancária, quanto no inciso de mesmo número do art. 5º da MP 784/17. Verifica-se que em tal cenário duplo, haveria uma profusão de penas aparente ou realmente superpostas em relação aos dois textos legais em apreço. Claro que isso gera insegurança jurídica precisamente no âmbito de dois mercados onde esse elemento é fundamental.

Mais estranho ainda é que, consultada a lei 4.595/64 no site do Planalto, verifica-se que algum jurista de plantão riscou no seu texto os artigos 42 a 44, tendo anotado expressamente que eles foram revogados pela MP aqui em discussão. Nada mais errado! Ela não se aplica expressamente (e nem poderia fazê-lo, conforme visto acima) ao primeiro texto acima mencionado, não constando a revogação de tais dispositivos do seu art. 57. Dessa forma, o responsável pelo site do Planalto invocou uma competência jurídica interpretativa que não tem para fazer o que fez. Portanto, tal anotação na lei 4.595/64 deve ser ignorada.

Em conclusão, verificamos que a MP 784/17 encontra-se sob alguns pontos de vista em situação de inconstitucionalidade discutível, ao mesmo tempo em que este efeito está claramente presente, quando examinada por outros ângulos. Desta maneira, caberá ao Congresso Nacional reconhecer a ausência de base constitucional relativamente ao seu texto e tratar de legislar de forma adequada, aproveitando-a mesmo integralmente, se for o caso. E regue como puder os efeitos que vierem a ser gerados na sua aplicação provisória

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1 Cf. Curso de Direito Administrativo, 29ª ed., Ed. Malheiros, São Paulo, 2011, p. 863.

2 Cf. Manual de Direito Administrativo, 23ª ed., Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010, p.101.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de  escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP..

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