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A língua portuguesa e seus (des)usos forenses

Os cuidados com o uso do português na área jurídica.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Atualizado às 07:56

O português é de uso obrigatório nas relações processuais, consoante categórica afirmativa do artigo 192 do Código de Processo Civil. Porém, a overdose de expressões latinas é frequentemente acompanhada de erros gramaticais, crassos ou leves, escritos ou orais. Nesse contexto, além de se evidenciar a falta de conhecimento dos sujeitos do processo, o jurisdicionado é afastado dos assuntos que lhe interessariam.

A simplicidade passa longe da área jurídica, mas a linguagem técnica não deve ser confundida com a antiquada. A comunicação, no processo, não se dá somente entre bacharéis em Direito, sendo fundamental às partes a possibilidade de compreensão dos atos praticados em seu nome.

Diria, assim, equivocar-se quem crê na importância da linguagem rebuscada. Em momento algum se defende o coloquialismo. Todavia, pode-se argumentar uma tese sem fazer uso de um texto capaz de invejar qualquer autor erudito. Sendo assim, que atire o primeiro volume de Os Lusíadas quem não for capaz de dizer "com o devido respeito" ao invés de data venia. Acredite quem quiser, não haverá nenhum prejuízo no texto.

É completamente dispensável o uso de palavras estrangeiras sem motivo que o justifique. E por motivo entenda-se necessidade. Habeas corpus, de modo algum, deveria ser substituído por alguma aberração do tipo "tenha o seu corpo". A crítica que se faz recai tão somente às palavras que podem ser ditas em português sem perda de sentido. Ademais, se se quer usar o latim por entender ser tradicional, não há problema algum em se traduzir tal palavra ou expressão a fim de que o leitor compreenda o texto sem ter de recorrer ao Google, digo, ao dicionário a cada frase lida.

Porém, daqueles que insistem em redigir cuspindo o latim, espera-se, ao menos, uma escrita correta. O fato de não haver mais ensinamento dessa língua nas escolas faz com que, na maioria das vezes, surjam meros repetidores de palavras que sequer sabem o que estão dizendo. Por isso são comuns os acentos em palavras latinas ou a mistura entre dois idiomas. Não raras vezes lê-se algo como in dúbio pró réu ou data máxima vênia. Ou se escreve em latim, ou se escreve em português.

O português não deveria ser preterido porque inexiste razão para tal, salvo a soberba. Contudo, o domínio da língua pátria também é fundamental. A gramática portuguesa, tendo por defensores Evanildo Bechara e Pasquale Cipro Neto, por exemplo, é capaz de ensinar dos mais aos menos habilidosos no idioma. As regras são explicadas das maneiras mais ou menos complexas, muito ou pouco aprofundadas.

O numeral um, por exemplo, é dos mais básicos. É, também, dos mais escrachados. Quando não escrito com h, tomando ares de interjeição, é dito desnecessariamente. Existem um mil (ou hum mil, dependendo de quem o redige) motivos para que se escreva somente mil. Além da simplicidade, frisa-se a obediência a regra gramatical.

Alguns autores defendem que esse terrível costume teve seu início no preenchimento de cheques, demonstrando que um, quando manuscrito, poderia ser facilmente transformado em cem. Porém, as peças são redigidas mecanicamente e, ato contínuo, não deveriam se valer de tal erro. Não existe um mil reais, tampouco hum mil. Porém, até na hora de errar é preciso complicar a escrita.

Outro espanto ocorre com a leitura dessa classe gramatical. De artigo décimo a inciso um, ouve-se de tudo. O primeiro caso é indefensável, sem mais delongas; o segundo, por mais que inúmeros juristas defendam que há a ocultação da palavra número e, portanto, deveria ser lido como cardinal, também não se encontra amparo nas gramáticas. Com o devido respeito, ou melhor, data venia a gramática não é diferente para os aplicadores do Direito.

Diria o filósofo que "a regra é clara": as designações de imperadores, papas e partes de obras, entre outras, quando feitas por numeral em algarismo romano posposto, ou depois, do substantivo, são lidas como ordinais até décimo. Assim, Dom Pedro não é dois, Papa João não é vigésimo terceiro e inciso também não é um. Quando a inocorrência de prescrição entre cônjuges tiver de ser debatida, saiba onde achar tal disposição: livro terceiro, título quarto, capítulo primeiro, seção segunda, artigo cento e noventa e sete, inciso primeiro, do Código Civil.

Por falar em CC, inúmeras são as vezes em que as siglas são ditas sem qualquer explicação.

Determinam o bom senso e a gramática que se escreva por extenso, primeiro, o significado da sigla pretendida. Uma vez definida para o leitor, que não é obrigado a conhecê-las de cor, as siglas podem ser repetidas tantas vezes quanto bastem. Certamente, vez ou outra, é dispensável a explicação de alguma sigla e isso ocorre por economia textual.

Com a clareza do texto saem ganhando o remetente e o destinatário da mensagem. A qualidade do profissional deve ser provada por meio de seus argumentos e de suas teses, e não pela disputa de jargões jurídicos. Até porque, não se engane, meu caro acaciano: os estagiários e os servidores que lerão as petições não conhecem todas as palavras, podendo-se perder parte fundamental na compreensão do que se escreveu.

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*Bernardo Cordeiro Kaufmann é graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos e assistente judiciário na Segunda Câmara Cível do TJ/MG.

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