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Mineradoras podem discutir Compensação Financeira devida à União

Essa alteração dá novo fôlego ao debate constitucional a respeito de qual deva ser a base de cálculo do encargo setorial de que se cuida, questão que ainda se encontra em aberto.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Atualizado em 1 de agosto de 2017 15:20

Na última quarta-feira (26), o governo federal publicou um conjunto de Medidas Provisórias (MPs) alterando profundamente as regulações atinentes ao setor de mineração no Brasil. Dentre elas, a MP 789/17 remodelou a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) de que trata o art. 20, §1º, da Constituição Federal (CF/88).

As principais mudanças referem-se ao seguinte: (a) introdução de hipóteses de incidência antes não previstas em lei (v.g., consumo e exportação); (b) alteração das alíquotas aplicáveis a diversos tipos de minerais; (c) instituição de regime de progressividade de alíquotas específico para o minério de ferro; e (d) ampliação da base de cálculo da CFEM na hipótese de venda.

Embora a MP 789/17 conte com diversos pontos positivos, há nela aspectos que geram perplexidade, dos quais trataremos a seguir.

(a) Discussão quanto à base de cálculo da CFEM. Violação ao conceito constitucional de "resultado da exploração".

No tocante à base de cálculo, a CFEM, que, antes, incidia sobre a receita decorrente da venda do produto mineral deduzida dos tributos incidentes na comercialização e dos custos com transporte e seguro, passa recair sobre a receita bruta da lavra, sem qualquer dedução. Daí resultando aumento real do valor a ser desembolsado pelas mineradoras.

Essa alteração dá novo fôlego ao debate constitucional a respeito de qual deva ser a base de cálculo do encargo setorial de que se cuida, questão que ainda se encontra em aberto.

A discussão se põe em face do entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Mandado de Segurança (MS) 24.312, no sentido de que o legislador ordinário federal fez uso da competência que lhe foi atribuída pelo art. 20, §1º, da CF/88 para estruturar a CFEM sob a forma de encargo setorial cuja natureza jurídica é de receita patrimonial estatal a título de "participação no resultado da exploração mineral"1 (royalty 2).

De fato, toda competência constitucional possi um sentido positivo, que autoriza seu titular a exercer determinada exigência nas hipóteses discriminadas, e um sentido negativo, que integra o estatuto do particular, a impedir que a exigência extrapole o seu âmbito de aplicação possível.

Nesse sentido, se o legislador optou por criar encargo setorial sob a forma de royalty, é imprescindível que a respectiva regra matriz de incidência seja coerente com a competência constitucional que autoriza a sua instituição (art. 20, §1º, da CF/88). Nos termos desta, o critério material da obrigação pecuniária só pode ser "auferir resultado da exploração mineral"3. E, consequentemente, a única base de cálculo possível para o encargo é aquela que reflita a expressão econômica deste4.

Como o termo resultado se refere a um conceito econômico, contábil e de direito empresarial que designa o lucro (se positivo) ou o prejuízo (se negativo) decorrente de um investimento5 6 7, segue-se que a expressão "resultado da exploração" constante do texto constitucional corresponde ao saldo positivo da atividade de mineração. Ou seja, ao lucro operacional, obtido mediante a dedução das vendas canceladas, descontos incondicionais, impostos sobre as vendas, custos de produção e demais despesas operacionais da mineradora8.

Assim, havendo identidade entre os conceitos de "resultado da exploração" e "lucro operacional" da mineradora e considerando que essas realidades econômicas são menos abrangentes que as bases de cálculo previstas na MP 789/17 (receita bruta) e na lei 8.001/90 anteriormente vigente (faturamento líquido ou ajustado), conclui-se que a exigência da CFEM calcada nestas últimas padece de inconstitucionalidade.

A questão de que se cuida não foi examinada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal até o momento9, o que deverá ocorrer apenas se e quando processo versando sobre a matéria for submetido à Corte.

Por tais razões, as empresas sujeitas ao pagamento da CFEM podem se socorrer do Poder Judiciário para questionar a legitimidade da base imponível do encargo, não apenas para afastar a nova sistemática de cálculo, mas, ainda, para pleitear a restituição dos montantes indevidamente recolhidos na sistemática anterior.

(b) Discussão quanto à exigência da CFEM sem fundamento legal nas hipóteses de consumo, utilização e transferência, dentre outras.

No regime anterior à MP 789/17, as leis 7.990/89 e 8.001/90 previam a incidência da CFEM apenas na hipótese de "venda do produto mineral, obtido após a última etapa do beneficiamento adotado e antes da sua transformação industrial" (art. 6º da lei 7.990/89).

Contudo, o decreto 01/91 (arts. 14, III e §1º, e 15, caput e parágrafo único), bem como a posterior IN 6/00 (art. 2º), equipararam às operações de venda fatos diversos, como o consumo, utilização, transformação e transferência pura e simples do produto mineral, que passaram a ficar sujeitos à CFEM em virtude de normas meramente administrativas. O que, por óbvio, fez com que exigências nesses moldes padecessem de ilegalidade incontornável.

Com a MP 789/17, alguns dos fatos acima referidos passaram a estar expressamente previstos em lei como hipóteses de incidência da CFEM. Isto, nos termos da Exposição de Motivos da medida provisória, a fim de sanar "defeitos" da legislação anterior, os quais "deram ensejo a múltiplos questionamentos judiciais... que tornaram vulnerável" a sua implementação, "comprometendo a realização efetiva do potencial de arrecadação da compensação, causando interrupções no fluxo arrecadatório normal e elevando o grau de incerteza com que passaram a conviver os beneficiários de sua receita"10. Em outras palavras, o objetivo foi "legitimar" a cobrança da CFEM sobre os mencionados fatos.

Contudo, se é certo que o legislador ordinário pode instituir a CFEM sobre quaisquer fatos inerentes à exploração mineral que sejam consentâneos com o critério material e a base de cálculo constitucionalmente eleitos para a participação no respectivo resultado (royalty), também é certo que as novas normas legais somente se aplicam a fatos vindouros. Não retroagem para "salvar" exigências pretéritas efetuadas sem respaldo em lei formal.

Ao contrário, o advento da MP 789/17 constitui confissão, por parte do governo federal, da ilegalidade da exigência da CFEM sobre casos de consumo, utilização, transformação e transferência no regime anteriormente vigente. O que reforça argumentos nesse sentido deduzidos em processos em curso e dá margem para que os interessados pleiteiem a restituição da compensação indevidamente recolhida a esse título no passado.

(c) Conclusão.

O País passa por tempos difíceis, em que a séria crise de legitimidade estatal, decorrente de escandalosos casos de corrupção, tem causado ao aparato governamental graves dificuldades econômicas e financeiras. É em tempos como os atuais, de desconforto generalizado, que o Poder Público mais tende a cometer atropelos, comprometendo as liberdades e garantias constitucionais historicamente conquistadas (como a liberdade de iniciativa e a propriedade privada), sendo os domínios do Direito Público campo fértil para abusos estatais de toda sorte. O aumento da CFEM pela MP 789/17 é exemplo disso. Não estando satisfeitos os pressupostos constitucionais que autorizam a reestruturação do encargo, não pode ela ser levada a efeito. Cabe aos interessados o exercício do seu dever cidadão de questionar a exigência inconstitucional.
__________

1 STF, MS n. 24.312-1/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Plenário, decisão unânime, DJ 19-12-2003.

2 Entende-se por royalty "uma parte do produto ou resultado de uma operação praticada, que é reservada ao proprietário por permitir a alguém explorar e usar a sua propriedade; a renda que é paga ao dono da propriedade baseada em um percentual do lucro ou produção" (Cf. HERNÁNDEZ, Fernanda Guimarães. Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais - Regra Matriz de Incidência. Tese de Doutoramento. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP: 2010).

3 Cf. HERNÁNDEZ, Fernanda Guimarães. Op. cit. ibid.

4 Id. ibid.

5 Cf. Dicionário Michaelis On-Line. Disponível em: clique aqui

6 "Portanto, o lucro é o montante remanescente depois que as despesas (inclusive os ajustes de manutenção do capital, quando for apropriado) tiverem sido deduzidas do resultado. Se as despesas excederem as receitas, o montante residual será um prejuízo" (Cf. Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC). Pronunciamento n. 00-R1. Disponível em: https://static.cpc.mediagroup.com.br/Documentos/147_CPC00_R1.pdf).

7 Cf. art. 187 da lei 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações).

8 Cf. HERNÁNDEZ, Fernanda Guimarães. Op. cit. ibid.

9 Há um único julgado (RE 228.800) da Primeira Turma do STF considerando constitucional a base de cálculo adotada pela lei 8.001/90, contudo, sem exame aprofundado da matéria. Por se tratar de precedente isolado, de órgão julgador fracionário (e não plenário) e com fundamentação frágil, consideramos que a decisão em questão não forma jurisprudência sobre o tema.

10 Cf. Mensagem n. 79/2017 MF/MME anexa à MP 789/17.

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*Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado atuante em Direito Administrativo e Tributário e fundador de Muniz de Carvalho Advogados.

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