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O pleito no peito (Do not resuscitate), Eudes Quintino

O pleito no peito (Do not resuscitate)

Num futuro, não muito distante, o biochip, implante corporal que fará o armazenamento de informações médicas, será o instrumento apropriado para a leitura da real vontade do paciente.

domingo, 7 de janeiro de 2018

Atualizado em 5 de janeiro de 2018 10:29

Fato interessante e com grande repercussão bioética e, obliquamente, no Biodireito, ocorreu recentemente em Miami, Estados Unidos, quando um paciente com 70 anos de idade, sem documentos ou familiares, diabético, com histórico de doenças no coração e pulmão, foi encaminhado e atendido em hospital, oportunidade em que os médicos responsáveis pela primeira avaliação, constataram uma tatuagem cravada no seu peito, que dizia: 'Do not resuscitate' , com o 'not' sublinhado - conhecida pela sigla DNR. No vernáculo pátrio: 'Não ressuscite' ou 'Ordem para não reanimar'1.

Para os que não têm intimidade com a expressão, significa que o médico, vendo que o paciente se encontra em estado de irreversibilidade, poderá abrir mão das intervenções e procedimentos, como massagem cardíaca, choque elétrico, intubação e outros. Quer dizer, o não reanimar compreende uma decisão médica impeditiva de atuação, fazendo com que o paciente vá a óbito, caminho natural pelo estado terminal em que se encontra. Tal advertência causou grande impacto aos profissionais estabelecendo, de plano, invencível conflito médico, obrigando-os a buscar auxílio na Comissão de Ética da instituição que, após as discussões pertinentes, entendeu que o pleito do paciente deveria ser atendido. Assim foi feito.

Será que a tatuagem, com seus dizeres, por si só, é suficiente para demonstrar a intenção do paciente? É fonte reveladora e autorizadora para que os médicos possam interpretá-la como a vontade indiscutível do paciente, no âmbito de sua autonomia? A situação é realmente embaraçosa para qualquer médico, levando-se em consideração as diretrizes contidas no Código de Ética Médica, dentre elas a priorização da saúde humana, obrigando-o a agir com o máximo zelo e o melhor de sua capacidade profissional, além das determinações constitucionais que conferem a inviolabilidade do direito à vida e a tutela da dignidade da pessoa humana.

A tatuagem, como é notório, vem se intensificando entre os jovens e até mesmo adultos que durante muitos anos nutriram a vontade de ceder parte do corpo para uma expressão de arte (body art). É corriqueiro já encontrar homens e mulheres com várias partes do corpo tatuadas, em um universo de imagens que rodam ao redor do mundo, com significados subjetivos, explícitos e mensagens de diversos conteúdos. Quem faz tal opção irá buscar símbolos, imagens ou escritos que representem a sua intenção ou até mesmo sua vontade explicitada. Pode-se dizer que a escolha da tatuagem faz refletir a personalidade do indivíduo, sua marca pessoal e até mesmo a forma de chamar a atenção para assuntos considerados relevantes e, em alguns casos, um processo de compartilhamento de informações, passando uma mensagem que muitas vezes rompe com a convenção social.

Assim, nesta linha de raciocínio, no caso do paciente tatuado, o Comitê de Ética do hospital entendeu que a manifestação de vontade estava mais do que evidenciada e não justificava, em paciente sem chance de cura, a prática de qualquer conduta que resultaria em fúteis tentativas e infrutíferas intervenções, outorgando, desta forma, total crédito à autonomia da vontade do paciente. Por tal princípio deve se entender que a decisão por ele tomada, com plena capacidade de discernimento, em determinado momento ou que tenha deixado documento a respeito de um procedimento médico, no caso lavrado em seu próprio peito, deve ser respeitada, por ser a legítima expressão de sua vontade. Daí que a ordem de não reanimação representa a determinação de um comportamento negativo do médico, impedindo-o de utilizar as técnicas de suporte vital.

A autonomia do paciente, verdadeiro direito a ser exercido, vem num crescente e ganhou consideráveis espaços no Código de Ética Médica, sendo uma das suas vertentes. Com a argúcia que lhe é peculiar, Gracia, assim se manifestou: "Cada vez há maior consenso de que a gestão do corpo humano é um direito personalíssimo dos seres humanos, que ninguém, salvo em casos excepcionais, está autorizado a restringir"2.

No Brasil, prestigiando a autonomia da vontade do paciente e sua determinação, a resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina estabeleceu uma disciplina de final de vida, compatível com a ética médica, sem afrontar qualquer texto legal. Assim, proclama o artigo 1º: Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Presentes tais condições, sendo a pessoa maior e habilitada para a vida civil, poderá deixar sua vontade expressa no documento chamado diretrizes antecipadas de vontade do paciente ou testamento vital, revogável a qualquer tempo, permitindo-se até mesmo a nomeação de um procurador para tal fim, no qual expresse, de forma inequívoca, quais são as diretrizes antecipadas de sua vontade com relação aos cuidados de saúde que deseja ou não receber, quando se encontrar em estágio de irreversibilidade. O demonstrativo da vontade do paciente prevalecerá sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. Só não prevalecerá quando colidir com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica, como, por exemplo, a opção pela eutanásia.

Finalizando, portanto, o caso sub studio, de um lado, tem-se, em tese, a obrigatoriedade de intervenção médica na tentativa de salvar uma vida e, de outro, a vontade explicitada pelo paciente por meio de uma tatuagem. Na realidade, fazendo-se uma interpretação mais restritiva e rigorosa, a tatuagem, por si só, não carrega amparo legal que, no caso específico, deveria contar com a assinatura do paciente em documento próprio ou em outro lavrado anteriormente, com tal finalidade. Mas, lançando mão de uma interpretação mais liberal, consentânea com o caso, também não pode ser descartada a vontade declinada pelo paciente em tatuagem moldada em seu corpo, justamente no local onde seria feita a reanimação.

Num futuro, não muito distante, o biochip, implante corporal que fará o armazenamento de informações médicas, será o instrumento apropriado para a leitura da real vontade do paciente.

Talvez caia a tatuagem. Biochip é mais chique.

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1 O Globo.

2 Gracia, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. Tradução Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 360.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.

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