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As golden shares: ações de classe especial

Neste breve artigo, pretendemos fazer algumas considerações sobre o mecanismo das golden shares, que foi objeto de estudo anterior tratando da participação do Estado como sócio de empresas privadas.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Atualizado em 18 de janeiro de 2018 13:01

1. Introdução

As golden shares, também conhecidas como ''ações de classe especial'', têm sido objeto de notícias constantes nos últimos tempos.

Os jornais têm noticiado que a União resiste a abrir mão de sua golden share na Embraer, o que poderia inviabilizar certas operações societárias com a Boeing.

A utilização de uma golden share tem sido cogitada também para o caso da privatização da Eletrobras. Seria um instrumento para que a União exercesse alguma influência nos negócios da companhia após a assunção do seu controle por algum grupo privado.

Neste breve artigo, pretendemos fazer algumas considerações sobre o mecanismo das golden shares, que foi objeto de estudo anterior tratando da participação do Estado como sócio de empresas privadas.1

2. A origem das golden shares

O instrumento das golden shares foi criado no Reino Unido para atender a algumas demandas econômicas e políticas que surgiram no processo de privatização de empresas que eram controladas pelo Estado2.

Em virtude da crise de financiamento do Estado ocorrida na década de 1970, entendeu-se que uma das soluções seria conter os gastos públicos com as companhias sob controle estatal. Assim, a partir de 1979, o Governo Thatcher instituiu uma política de transferência desses ativos à iniciativa privada, que supunha-se ter melhor capacidade de geri-los. Ao mesmo tempo, obtinha-se com essa medida a desoneração dos cofres públicos3 .

Por outro lado, várias empresas sob controle estatal tinham uma importância estratégica e destinavam-se a perseguir valores fundamentais para o Estado. Havia a preocupação de que os novos controladores, privados, não teriam nenhum incentivo a zelar pelos interesses nacionais envolvidos nessas companhias.

Assim, a política de privatização precisava conciliar (i) a presumida maior eficiência econômica da iniciativa privada com (ii) a proteção de interesses estratégicos do Estado e ao bem-estar agregado às companhias que seriam transferidas ao controle privado.

Justamente para atingir esses objetivos, foi concebido o instrumento das golden shares.

Por meio da detenção de golden shares pelo Estado nas companhias privatizadas, o poder público, ao mesmo tempo em que permitia a assunção do controle pela iniciativa privada, com a consequente desoneração dos cofres públicos, teria prerrogativas específicas no interior da companhia como forma de resguardar os interesses estratégicos do Estado nas atividades, mas sempre sem prejudicar o funcionamento da empresa.

Em outras palavras, apesar de ser necessária a transferência do controle de certas companhias à iniciativa privada, o Estado entendia que era imprescindível manter um certo grau de intervenção estatal em virtude da importância estratégica das empresas para a economia e para a satisfação de necessidades essenciais. Não se podia permitir, por exemplo, que as companhias recém-privatizadas tivessem suas atividades interrompidas ou que o seu controle acionário fosse adquirido por estrangeiros, possivelmente por meio de aquisição hostil4.

3. As golden shares no Reino Unido

A golden share instituída no processo de privatizações do Reino Unido tratava-se de uma ação preferencial resgatável, com valor nominal de £1,00 (uma libra), que atribuía ao seu titular - o Estado - determinadas prerrogativas, que variavam de acordo com a empresa que fosse privatizada, mas que em geral consistiam em: (i) aprovação de reformas estatutárias que tivessem por objeto os artigos relativos à golden share ou aqueles que impusessem limites à titularidade de ações; (ii) veto em relação a deliberações sobre a dissolução da companhia ou a criação de novas ações; (iii) aprovação da transferência de parte significativa dos ativos da companhia; e (iv) adoção de procedimentos específicos para evitar nova transferência do controle das empresas privatizadas.5-6 .

As golden shares foram emitidas por várias companhias no Reino Unido com o objetivo de garantir ao Estado certas prerrogativas que se reputavam relevantes em cada situação concreta7 .

É interessante observar que, a despeito de ser um mecanismo largamente empregado no processo de privatização do Reino Unido, poucas vezes o Estado invocou as prerrogativas que lhe eram asseguradas pelas golden shares 8.

Um caso bastante ilustrativo dessa circunstância diz respeito à oferta de aquisição de ações da Britoil apresentada em 1987 pela British Petroleum. O Estado cogitou vetar a operação em virtude do risco de concentração do mercado de atividades petrolíferas, em especial das reservas no Mar do Norte. Mesmo assim, a British Petroleum manteve sua oferta. Com isso, foram iniciadas negociações entre ela e o Estado, que resultaram em um acordo político no qual a British Petroleum se comprometeu a não demitir empregados e não alienar ativos de titularidade da Britoil. O Estado, por outro lado, comprometeu-se a não impedir a aquisição e a considerar o resgate da golden share em breve. Veja-se, contudo, que se tratou de um acordo político, e não do exercício dos poderes assegurados pela golden share. De todo modo, a simples detenção da golden share pelo Estado não foi irrelevante: indiretamente, ela permitiu que o Estado tivesse maior poder de negociação para uma solução consensual que garantisse os objetivos estratégicos buscados (no caso, o interesse em evitar a concentração do mercado).

Portanto, ainda que na prática tenham sido raros os casos em que o Estado britânico exerceu as prerrogativas garantidas pelas golden shares em empresas privatizadas, a simples potencialidade de o Estado exercer as prerrogativas que lhe eram conferidas já tinha o efeito de desestimular certas condutas que os agentes econômicos sabiam que poderiam ser vetadas. No mínimo, criava-se um ambiente propício à celebração de acordos (como os que ocorreram no caso mencionado acima, bem como na aquisição da Jaguar pela Ford)9.

4. As golden shares na França

Em outros países da Europa, mecanismos muito similares foram criados.

Na França, a chamada action spécifique foi instituída pela lei 86-912, de 6 de agosto de 1986, durante a primeira etapa de privatizações naquele país. Cabia ao ministro da economia definir, em cada caso de privatização, se a proteção ao interesse nacional demandava a criação de uma action spécifique. Em caso positivo, a action seria criada por ato ministerial. Normalmente, garantia-se ao Estado a prerrogativa de aprovar previamente a participação de certas pessoas ou grupos na companhia.

Em 1993, com a edição da lei 93-923, deu-se início à segunda etapa de privatizações na França, alterando-se a disciplina de certos mecanismos instituídos pela legislação anterior.

As prerrogativas, contudo, nem sempre foram exercidas pelo Estado francês, ainda que em razão de fatores externos, como a preocupação da Corte de Justiça da União Europeia com o fato de que as ações com poderes especiais poderiam ser discriminatórias e, portanto, contrárias aos propósitos de integração comunitária10 . Em outras situações, mecanismos alternativos acabaram servindo aos mesmos propósitos - como a constituição de núcleos duros (noyaux durs) de acionistas que se comprometiam por acordos de acionistas a manter as suas ações, o que permitia maior estabilidade da estrutura do capital das companhias privatizadas11 .

5. As golden shares na Itália

Na Itália, foi instituído um mecanismo semelhante em 1994, pelos chamados poteri speciali (previstos no decreto-lei 332, posteriormente convertido na lei 474, do mesmo ano).

Os poteri speciali, contudo, não exigiam que o Estado fosse titular de ações das companhias privatizadas. Normalmente, tratava-se da previsão estatutária de certas prerrogativas atribuídas ao Ministro da Fazenda, que deveria exercê-las em conjunto com outros ministros, sempre com vistas a objetivos nacionais de ordem econômica e industrial. Em cada privatização, cabia ao Ministro da Fazenda estabelecer por decreto os poderes que pretendia assegurar ao Estado12 .

O exercício dos poteri speciali foi questionado à luz dos princípios do direito comunitário europeu, notadamente os da livre circulação e da livre iniciativa. Assim, em 1999 e 2000, o Presidente do Conselho de Ministros editou dois decretos destinados a compatibilizar os poteri speciali com esses princípios. Previu-se que o exercício dos poderes em questão se submetia aos casos e limites, inclusive temporais, previstos nos estatutos sociais, sempre devendo ser observados os princípios da não discriminação e de vinculação aos motivos de interesse geral que serviram de fundamento para a sua previsão estatutária - motivos esses relacionados à ordem pública, segurança, saúde e defesa nacionais13 .

Em 2003, a lei 350, de 24 de dezembro, introduziu algumas inovações. Previu, por exemplo, que o exercício dos poderes de oposição à participação relevante e de oposição à celebração de acordos de acionistas deveria ser devidamente justificado, com a demonstração de que os atos objeto da oposição seriam prejudiciais a interesses vitais do Estado. Em consequência, assegurou-se aos sócios contrários o direito de impugnar a decisão perante as autoridades jurisdicionais competentes.

6. As golden shares em outros países europeus e os questionamentos levantados

Outros países europeus também adotaram o mecanismo das golden shares, ainda que com outras denominações: Alemanha (goldene Aktie e Spezialaktie), Bélgica (action spécifique), Portugal (ações preferenciais), Espanha (regime administrativo de controle específico), entre outros.

O interessante é que a utilização das golden shares foi objeto de diversos questionamentos, não só do ponto de vista da integração comunitária europeia, mas também em relação à utilidade e necessidade dos poderes assegurados por tais mecanismos.

No processo C-483/99, iniciado contra a França, a Comissão da Comunidade Europeia entendeu que os poderes conferidos ao Estado Francês pela action spécifique detido por ele junto à Elf-Aquitaine, além de representarem um obstáculo à integração comunitária, não tiveram sua necessidade e adequação comprovadas (a alegação da França era a de que os poderes tinham por objetivo salvaguardar a segurança pública). Além disso, considerou-se que os poderes poderiam ser exercidos de forma abusiva, uma vez que não haviam sido fixados critérios objetivos e específicos para o seu exercício14 .

No processo C-463/00, em que se questionavam os poderes garantidos por golden shares do Estado espanhol em uma série de companhias privatizadas, a Comissão igualmente entendeu que o procedimento previsto para o exercício dos poderes estatais concedia às autoridades uma excessiva margem de discricionariedade, tudo em razão da ausência de critérios claros e amplamente divulgados15 .

Vários outros julgamentos foram realizados. Entretanto, esses dois são os mais relevantes ao contexto brasileiro, uma vez que se entendeu pela possibilidade de questionar o próprio conteúdo das prerrogativas asseguradas ao Estado por meio de golden shares. Entendeu-se que não poderiam ser aceitas prerrogativas desnecessárias ou que permitissem o seu exercício sem um mínimo de clareza e previsibilidade. Trata-se de questões bastante relevantes ao emprego das golden shares nas empresas privadas com participação estatal, conforme será demonstrado abaixo.

7. A experiência brasileira das golden shares no processo de privatizações

7.1. A lei 8.031, de 1990

No Brasil, a figura das golden shares surgiu sob a denominação de ''ação de classe especial''. Sua primeira previsão expressa ocorreu com a lei 8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização - PND16 .

Na época, deu-se início a um intenso processo de privatizações, que incluíam a alienação a particulares dos direitos que garantiam à União o controle acionário sobre uma série de empresas. Entretanto, havia uma preocupação com interesses estratégicos da União, que poderiam ser afetados após a alienação de suas ações. Assim, previu-se que a União, por sugestão da Comissão Diretora do PND, poderia reservar a si uma ação de classe especial.

O artigo 6º, inciso XIII, da lei 8.031 previa o seguinte: ''Compete à Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização: (...) XIII - sugerir a criação de ações de classe especial e as matérias que elas disciplinarão, nas condições fixadas nos §§ 1° e 2° deste artigo''. O § 2º previa que a ação de classe especial apenas poderia ser subscrita pela União. Já o § 1º foi vetado, sob o entendimento de que os poderes conferidos pelas ações de classe especial eram excessivos17 .

Em decorrência desse veto, a lei 8.031 acabou não disciplinando as hipóteses que justificariam a emissão de ações de classe especial. Tampouco tratou dos poderes que poderiam ser assegurados por essas ações. O artigo 8º apenas estabeleceu que ''Sempre que houver razões que o justifiquem, a União deterá, direta ou indiretamente, ações de classe especial do capital social de empresas privatizadas, que lhe confiram poder de veto em determinadas matérias, as quais deverão ser caracterizadas nos estatutos sociais das empresas, de acordo com o estabelecido no art. 6°, inciso XIII e §§ 1° e 2° desta lei''. Logo, extrai-se do dispositivo que as ações de classe especial (i) poderiam ser emitidas pela União sempre que houvesse ''razões que o justifiquem'', sem mencionar precisamente quais poderiam ser esses motivos, sendo que (ii) poderiam conferir poder de veto à União, (iii) cabendo ao estatuto social estabelecer as matérias sujeitas a esse poder de veto.

O decreto 1.204, que veio a regulamentar a lei em 1994, não tratou mais minuciosamente do tema. Apenas acrescentou que a criação das ações de classe especial deveria ser antecedida de um parecer fundamentado que indicasse as matérias a serem submetidas a elas e mencionasse o número de ações necessárias e a sua forma de aquisição18. Continuava não existindo nenhuma previsão normativa acerca das matérias que poderiam se submeter ao poder de veto da União.

7.2. A utilização das golden shares nas privatizações: os casos Celma, Embraer e Vale do Rio Doce

Sob as normas estabelecidas pela lei 8.031, previu-se a emissão de ações de classe especial em três empresas privatizadas: (i) Companhia Eletromecânica Celma, (ii) Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. - Embraer, e (iii) Companhia Vale do Rio Doce.

Em relação à Celma, o edital para alienação das ações de emissão da companhia (edital PND/A-02/91/CELMA) previa no item 7.1.3 que, após a privatização, seria reservada à União uma ação ordinária de classe B, com direito de aprovar qualquer alteração dos artigos do estatuto social (i) que tratavam do objeto social, (ii) que estabeleciam limites para participação de companhias aéreas no capital da empresa, e (iii) que tratavam da composição do Conselho de Administração e concedia à União a prerrogativa de indicar um de seus membros.

No tocante à Embraer, o edital (PND-A-05/94/Embraer) de alienação de ações previa no item 2.2.1 o seguinte: ''deverá ser criada ''golden share'', a ser detida exclusivamente pela União, com veto nas seguintes matérias: I - mudança do objeto social; II - alteração e/ou aplicação da logomarca da empresa; III - criação e alteração de programas militares que envolvam - ou não - a República Federativa do Brasil; IV - capacitação de terceiros em tecnologia para programas militares; V - interrupção do fornecimento de peças de manutenção e reposição de aeronaves militares; VI - transferência do controle acionário; VII - quaisquer modificações no estatuto social que alterem os arts. 9 e 15 e seus parágrafos19 , ou quaisquer vantagens, preferências ou direitos atribuídos à ''golden share''20 .

Em relação à Vale do Rio Doce, o edital de privatização (PND/A-01/97/CVRD) estabelecia que a União permaneceria titular de participação direta e indireta na empresa. A participação direta seria representada por ação de classe especial emitida pela companhia, que garantiria à União o direito de veto nas deliberações da assembleia geral que tivessem por objeto: (i) alteração da denominação social; (ii) mudança da sede social; (iii) mudança do objeto social no que se refere à exploração mineral; (iv) liquidação da companhia; (v) alienação ou encerramento de determinadas atividades; e (vi) quaisquer modificações dos direitos atribuídos à ação de classe especial da companhia. Já a participação indireta se daria por meio de ação preferencial de classe ''A'' emitida pela sociedade adquirente das ações objeto do leilão, e conferiria à União o direito exclusivo de deliberar sobre as seguintes matérias em Assembleia Geral: (i) alteração do objeto social; (ii) modificações nas regras sobre limites de participação individual ou conjunta de acionistas em seu capital; (iii) liquidação, dissolução, transformação, cisão, fusão ou incorporação por outra sociedade; (iv) modificações nas regras de desconcentração aplicáveis a seus acionistas; (v) alienação, oneração ou transferência de ações ordinárias ou de quaisquer valores mobiliários permutáveis em ações ordinárias do capital da Companhia Vale do Rio Doce de propriedade da sociedade, exceto ações obtidas fora do âmbito do leilão; e (vi) qualquer modificação nos direitos atribuídos à ação preferencial de classe ''A''. Essa ação preferencial de classe ''A'' emitida pela companhia vencedora do leilão vigoraria por cinco anos e seria atribuída ao BNDES Participações S.A., que deveria exercer os direitos assegurados por ela sempre no interesse da União21 .

7.3. A previsão da lei 9.491, de 1997

Depois da conclusão da privatização da Vale do Rio Doce, a lei 8.031 foi revogada pela lei 9.491, de 1997, que ampliou a abrangência do programa de privatizações. Os dispositivos que tratavam das ações de classe especial foram praticamente repetidos. Entretanto, ao se tratar das prerrogativas que poderiam ser asseguradas por essas ações, o artigo 8º da nova lei empregou o termo genérico ''poderes especiais'' em vez de se referir apenas ao poder de veto22 . Essa ampliação de poderes foi contemplada também pelo decreto regulamentador (decreto 2.594, de maio de 1998)23 .

Na prática, a ampliação de poderes que poderiam ser garantidos pelas ações de classe especial possibilitou que a União tivesse a prerrogativa de indicar membros para os Conselhos de Administração das empresas privatizadas. Antes da lei 9.491, a União conseguia garantir esse direito ao prever a possibilidade de veto dos dispositivos dos estatutos sociais que garantiam a ela a indicação de membros do Conselho de Administração. Com a lei 9.491, as próprias ações de classe especial poderiam garantir essa prerrogativa diretamente.

7.4. A edição da lei 10.303, de 2001

Posteriormente, para conferir maior estabilidade à figura das ações de classe especial, foi incluído pela lei 10.303 um dispositivo na lei 6.404 que tratava dessas ações. Assim, o § 7º do artigo 17 da lei 6.404 ficou com a seguinte redação: ''Nas companhias objeto de desestatização poderá ser criada ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do ente desestatizante, à qual o estatuto social poderá conferir os poderes que especificar, inclusive o poder de veto às deliberações da assembleia-geral nas matérias que especificar''.

As novidades dessa previsão consistem em estabelecer (i) que a ação de classe especial deve ser uma ação preferencial (antes, poderia ser também uma ação ordinária), e (ii) que outros entes além da União podem deter ações de classe especial em empresas privatizadas (uma vez que não se restringe mais essa possibilidade apenas à União)24.

Atualmente, o Regulamento do Novo Mercado da BOVESPA contempla a possibilidade de emissão de ações de classe especial, que, portanto, são uma figura compatível com as diretrizes do Novo Mercado25 . O mecanismo das golden shares inclusive foi aplicado em diversas outras companhias, sem qualquer relação com processos de privatização.

8. Considerações críticas

A utilização do mecanismo das golden shares permite chegar a algumas conclusões:

a) O direito brasileiro admite arranjos de poder desproporcionais ao número de ações, ainda que com determinadas limitações. O princípio da proporcionalidade entre direitos e participação acionária (''one share, one vote'') não é absoluto;

b) O mecanismo das golden shares não viola por si só o princípio da igualdade entre os acionistas, que também é relativo. Tanto é que o artigo 109, § 1º, da lei 6.404, estabelece que ''as ações de cada classe conferirão iguais direitos aos seus titulares'';

c) As golden shares também não violam, necessariamente, o princípio de que as deliberações sejam tomadas pela maioria dos votos. A própria legislação contém exemplos numerosos de situações que demonstram a relativização do princípio majoritário;

d) As golden shares traduzem, sob um certo ângulo, a introdução de elementos pessoais nas sociedades anônimas;

e) As golden shares não ofendem o princípio da livre circulação das ações. Isso porque as regras que impedem a transferência das golden shares decorrem da própria função atribuída ao mecanismo, que é a de ser um instrumento para que o Estado assegure a consecução de certas finalidades que justificaram a sua própria presença como sócio da empresa;

f) O sócio estatal deverá fundamentar as decisões adotadas com base em uma golden share. Ele se sujeita às normas gerais de direito administrativo que impõem a obrigatoriedade de motivação e a observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade;

g) Entretanto, não se pode perder de vista que se está em um ambiente empresarial, caracterizado por uma maior celeridade e por menor formalismo. Assim, não será necessário que cada ato praticado pelo sócio estatal no exercício dos poderes assegurados pelas golden shares atenda a certos condicionamentos incompatíveis com o funcionamento de uma empresa.

h) Como existem certos condicionamentos ao exercício das prerrogativas asseguradas por uma golden share, o ato poderá ser questionado. O exercício dos direitos de sócio pode ser questionado inclusive quando praticado por um sócio privado. Além disso, não se trata apenas de verificar se o ato está em consonância com os objetivos buscados com a instituição da golden share. O ato poderá ser abusivo ainda que esteja em consonância com os interesses públicos que justificaram a instituição da ação de classe especial. Há uma espécie de ''dever de utilização prudente'' das prerrogativas asseguradas pelas golden shares;

i) O sócio estatal pode ser responsabilizado pela utilização inadequada dos poderes assegurados por uma golden share - exatamente da mesma forma que ocorre com o exercício das prerrogativas de acionista por um sócio privado;

j) O sócio estatal não é obrigado a invocar as prerrogativas que lhe são garantidas por uma golden share. Nada impede que ele obtenha seus objetivos por outros meios que, assim, contornem eventual prejuízo aos seus interesses - como ocorreu em diversas situações verificadas no direito comparado, por exemplo.

______________

1- SCHWIND, Rafael Wallbach. O Estado Acionista: empresas estatais e empresas privadas com participação estatal. São Paulo: Almedina, 2017.

2- PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 24-32; RODRIGUES, Nuno Cunha. ''Golden shares'': as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto acionista minoritário, p. 262-272.

3- Segundo Nuno Cunha Rodrigues, ''em 1979, com a chegada ao poder do governo conservador de Margaret Thatcher, é apresentado um ambicioso programa de privatizações que abriu à iniciativa privada sectores tradicionalmente públicos, nomeadamente os serviços prisionais'' (''Golden shares'': as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto acionista minoritário, p. 265).

4- Oferta hostil é aquela que ocorre normalmente mediante oferta pública realizada por um proponente interessado em adquirir ações de emissão da companhia aberta (companhia-alvo ou target) diretamente dos acionistas, com objetivo de aquisição de controle, e não apenas para a assunção de uma posição minoritária. Geralmente, a oferta hostil para aquisição de controle se dá por meio de valor acima daquele de mercado, com resistência da companhia-alvo (VAZ, Ernesto Luís Silva; NASCIMENTO, João Pedro Barroso do. Poderes da administração na oferta hostil de aquisição de controle no direito comparado: medidas defensivas e poison pills. In: FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes (coord.) Direito societário contemporâneo I, p. 388-389). Fábio Konder Comparato relata que as ofertas hostis (take-over bids) teriam surgido na Inglaterra, sendo reguladas inicialmente pelo Companies Act de 1929 (''Take-over'' bids ou a desforra do acionista. In: Aspectos jurídicos da Macro-Emprêsa, p. 33). As medidas defensivas contra as ofertas hostis teriam sido concebidas em 1974 por Robert Greenhill e Joseph Flom, em Nova Iorque, segundo nota de Gustavo Santamaría Carvalhal Ribas (Das aquisições hostis na prática norte-americana e a perspectiva brasileira. RDM 141/124). As golden shares, concebidas anos depois, também podem ser medidas protetivas colocadas à disposição do sócio estatal contra ofertas de aquisição hostil do controle de empresas em que o Estado tenha algum interesse especial.

5- PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 26.

6- Basicamente, dois procedimentos eram instituídos com a finalidade de evitar a transferência do controle das empresas privatizadas: (i) assegurar ao Estado, por ficção, a maioria dos votos em qualquer deliberação assemblear que fosse relevante em relação ao tema (tal como se utilizou nas privatizações da Britoil e da Enterprise Oil), e (ii) inclusão, no estatuto, de regra segundo a qual os administradores deveriam tomar certas providências caso algum acionista se tornasse titular de ações representativas de mais de 15% do capital votante (sendo essas providências a notificação para venda das ações em determinado prazo, bem como a venda forçada em caso de recusa ou atraso por parte do acionista notificado). Esse último mecanismo foi o mais comum segundo Cosmo Graham e Tony Prosser (PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 27).

7- Na primeira fase de privatização (1979-1983), as golden shares foram emitidas nas seguintes companhias: British Aerospace, Cable & Wireless, Amsterdam International e Britoil. Na segunda fase (1984-1989), as seguintes companhias as emitiram: Sealink, Enterprise Oil, Jaguar, British Telecom, British Gas, Rolls-Royce, British Airports Authority, British Petroleum e British Steel. Finalmente, na terceira etapa (iniciada em 1989), outras companhias passaram a contar com golden shares, tais como a National Power, privatizada em 1993 (PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 28-29).

8- Uma dessas poucas vezes consistiu no veto manifestado pelo Estado britânico à oferta de aquisição de ações apresentada pela empresa americana Southern Company à National Power (cf. RODRIGUES, Nuno Cunha. ''Golden shares'': as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, p. 269).

9- Sobre este último caso, confira-se: PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 30-31.

10- No caso da aquisição da Elf-Aquitaine pelo grupo TotalFina, por exemplo, o Estado francês deixou de exercer sua prerrogativa de veto em virtude dos questionamentos que foram feitos em relação a uma possível violação do tratado comunitário (ainda em 1999). Em 2002, a Corte de Justiça da União Europeia viria a reconhecer que a action spécifique naquele caso violava o Tratado de instituição da Comunidade Europeia, o que levou à revogação do decreto que a instituiu.

11- PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 39.

12- Com os poteri speciali, buscava-se ''adaptar e incorporar o regime das golden-shares no ordenamento jurídico italiano'' (RODRIGUES, Nuno Cunha. ''Golden shares'': as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, p. 290).

13- PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 45.

14- No caso, garantiam-se ao Estado Francês os seguintes poderes: (i) aprovação prévia da aquisição de títulos representativos de 1/10, 1/5 ou 1/3 do capital social total da companhia ou de seu capital votante; (ii) nomeação de dois representantes para o Conselho de Administração da Sociedade, (iii) oposição à cessão ou oneração das participações societárias majoritárias detidas pela companhia nas sociedades Elf-Aquitaine Production, Elf-Antar France, Elf-Gabon S.A. e Elf-Congo S.A. (cf. PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 52).

15-
PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 59.

16- Não é objetivo deste trabalho examinar o processo de privatizações no Brasil. Acerca da polissemia do conceito de privatizações, confira-se: DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na Administração Pública. 7.ed., p. 5-8. Sobre o mesmo assunto em Portugal, confira-se: OTERO, Paulo. Privatizações, reprivatizações, e transferências de participações sociais no interior do sector público. Coimbra: Coimbra, 1999, p. 11-15.

17- Indicou-se o seguinte nas razões do veto: ''revelam-se excessivos os poderes conferidos aos detentores da ação de classe especial, o que redundará, à toda evidência, na redução do valor do controle acionário da empresa a ser privatizada, quando, na realidade, tais poderes devem depender das especificidades de cada empresa, tal como preceituam, de modo satisfatório, o inciso XIII do próprio art. 6º e o inciso XV do art. 21 do projeto''.

18- O artigo 43 do decreto 1.204 estabelecia o seguinte: ''Art. 43. Havendo razões que o justifique, a União deterá ações de classe especial do capital social de sociedade privatizada, que conferirão poder de veto de determinadas matérias previstas no respectivo estatuto. § 1º As ações de classe especial somente poderão ser subscritas ou adquiridas pela União. § 2º Caberá à comissão diretora, com base em parecer fundamentado, sugerir a criação de ações de classe especial, especificar sua quantidade e as matérias passíveis de veto e estabelecer, quando for o caso, a forma de sua aquisição''.

19-Os dispositivos tratavam da composição do Conselho de Administração e atribuíam à União o direito de indicar um de seus membros e respectivo suplente.

20- Em 1999, baseando-se justamente nas prerrogativas que lhe eram asseguradas pela ação de classe especial detida perante a Embraer, a União pretendeu vetar a alienação de 20% das ações ordinárias da companhia a um grupo francês. Houve discussão sobre se a operação enquadrava-se no conceito de transferência de controle acionário. Em parecer, Luiz Alberto da Silva entendeu que não se tratava de transferência de poder de controle (Transferência de ações ordinárias da Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. - Embraer - dos acionistas controladores da companhia a empresas francesas. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo, n. 8, p. 197-217, abr./jun. 2000).

21- PELA, Juliana Krueger. As golden shares no direito societário brasileiro, p. 67.

22- O artigo 8º da lei 9.491 tem a seguinte redação: ''Sempre que houver razões que justifiquem, a União deterá, direta ou indiretamente, ação de classe especial do capital social da empresa ou instituição financeira objeto da desestatização, que lhe confira poderes especiais em determinadas matérias, as quais deverão ser caracterizadas nos seus estatutos sociais''.

23- Artigo 16 do decreto 2.594: ''Sempre que houver razões que justifiquem, a União deterá, direta ou indiretamente, ação de classe especial do capital social da empresa ou instituição financeira objeto da desestatização, que lhe confira poderes especiais em determinadas matérias, as quais deverão ser caracterizadas nos seus estatutos sociais''.

24- CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. A nova lei das S.A. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 109-117. Segundo Juliana Krueger Pela: ''Ao admitir que qualquer ''companhia objeto de desestatização'' ''poderá criar ações de classe especial'', a lei 10.303/01 estendeu a aplicação do instrumento - restrita nas leis 8.031/90 e 9.491/97 às companhias controladas pela União Federal - às empresas sujeitas a processos de privatização nas esferas estaduais e municipais'' (As golden shares no direito societário brasileiro, p. 143).

25- O item 2.1 do Regulamento do Novo Mercado contém a seguinte definição: ''ações em circulação'' significa todas as ações emitidas pela Companhia, excetuadas as ações detidas pelo Acionista Controlador, por pessoas a ele vinculadas, por administradores da companhia, aquelas em tesouraria e preferenciais de classe especial que tenham por fim garantir direitos políticos diferenciados, sejam intransferíveis e de propriedade exclusiva do ente desestatizante''. O item 3.1 estabelece como requisitos para se obter autorização para operar no Novo Mercado, dentre eles o do nº VII: ''tenha seu capital social dividido exclusivamente em ações ordinárias, exceto em casos de desestatização, se se tratar de ações preferenciais de classe especial que tenham por fim garantir direitos políticos diferenciados, sejam intransferíveis e de propriedade do ente desestatizante, devendo referidos direitos ter sido objeto de análise prévia pela BM&BOVESPA".

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*Rafael Wallbach Schwind é doutor e mestre em Direito do Estado e sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados.

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