MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Elogio da Internet

Elogio da Internet

Sou imensamente grato à Internet. Sem ela continuaria sentindo-me sufocado pelos altíssimos muros erguidos pela mentalidade excessivamente comercial das editoras de revistas.

quarta-feira, 19 de julho de 2006

Atualizado em 18 de julho de 2006 12:06


Elogio da Internet


Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

Sou imensamente grato à Internet. Sem ela continuaria sentindo-me sufocado pelos altíssimos muros erguidos pela mentalidade excessivamente comercial das editoras de revistas.


Se, aqui ou ali, algo de mau dela deriva - pornografia infantil, hackers, criadores de vírus (estes, merecedores de açoite em praça pública porque praticam o mal por prazer) - a culpa não está na web mas em alguns "bípedes implumes" - como um filósofo grego definia o homem. Bípedes de quinta categoria que, aliados a outros mofos pestilentos que recobrem a Terra - deixo ao leitor a menção deles - talvez terminem sufocando-a. Não digo nada se daqui a algum tempo um cientista, nada louco, comprovar, com escavações, sua suspeita de que Marte já abrigou uma avançada civilização, hoje soterrada sob a poeira de milhões de anos. Se, como é provável, o sol já foi muito mais quente do que é hoje, a Terra - anteriormente aquecida demais -, não comportava a vida. Marte, porém, mais distante do sol, sim. Haveria, portanto, uma certa lógica na sua dedução de que em longínquo passado Marte teve vida inteligente. Se no tempo da Guerra Fria os botões atômicos terráqueos tivessem sido pressionados, possivelmente o homem teria cedido seu lugar às baratas.


A propósito de mofos humanos, Mikhail Gorbachev, no seu livro "Meu Manifesto pela Terra", conta-nos que na Europa circulava uma anedota de fundo ambientalista, que peço licença para ampliar ligeiramente. Dois planetas, vagando pelo espaço, se encontram casualmente em rotas paralelas, depois de não se verem por vários milênios. Um deles pergunta: "O que há com você? Está com aspecto doentio... Parece coberto de chagas, mofo, erisipela..." O outro responde: "Nem me fale.... Peguei uma infecção de pele chamada "humanidade". Coça, sangra, fede e vaza um líquido suspeito, negro, oleoso e inflamável. É uma moléstia composta de várias raças de mofo, que se guerreiam incessantemente.  Já não sei o que fazer!". O outro o tranqüiliza, sorrindo: "Não se preocupe... Não faça nada. Basta esperar. Eu também já tive essa doença. Desapareceu sozinha. Meu nome é Terra".


Voltando à Internet, seu grande mérito é permitir que as idéias circulem mais livremente, sem os exagerados empecilhos comerciais que amarram as publicações gráficas. Se um cidadão tem uma idéia nova - ou proposta de melhoria de uma idéia já não tão nova - e publica um artigo, remetendo-o a uma editora de revista, esta, aceitando-o, exige que o artigo não seja publicado em outro local, a menos que mencione a "fonte", isto é, onde primeiramente saiu o texto.


Ocorre que se o autor tenta publicar o mesmo artigo em outra revista, ou jornal, ambos não gostam da idéia de imprimir algo que já foi publicado em outro local. Não querem "comida requentada". Com essa filosofia, o direito exclusivo de reprodução funciona como um caixão de defunto do pensamento, pois são poucos os leitores que leram o tal artigo, mesmo tendo a revista em mãos. Muitos assinantes apenas "espiam" o título, "carimbando-o" mentalmente, de modo favorável ou desfavorável ( imaginando, apenas imaginando, o seu conteúdo). Assim as idéias e opiniões não são difundidas nem discutidas. E podem, às vezes, serem úteis.


Se o autor quiser que sua idéia seja mais conhecida e discutida, pode contornar o problema do exclusivismo usando um artifício, ridículo mas necessário: "plagia' o próprio trabalho, isto é, muda o título e algumas frases, principalmente no início dos parágrafos. Com isso pode se defender dizendo que "o texto não é o mesmo", não o está "republicando". Mas não deixa de ser ridículo o autor ter que apelar para uma certa desonestidade intelectual, só para tentar salvar sua contribuição do cemitério gráfico.


Na Internet a exigência de "exclusividade" é bem menor, o que lhe confere superioridade sobre a imprensa escrita, em termos de circulação do pensamento. Principalmente em assuntos que apresentam constantes mutações, como é o caso das relações internacionais. Entre a entrega de um texto a uma editora gráfica e sua publicação passam-se vários meses. O artigo, freqüentemente, nasce velho. Um bebê de cavanhaque, óculos e polainas, como Nelson Rodrigues costumava imaginar a aparência de Ruy Barbosa, o grande jurista baiano. Parecia, ao genial dramaturgo, que Ruy já nascera de cabelos brancos, sisudo, como a fotografia ou desenho que vemos usualmente na imprensa. Na Internet a espera da publicação é de uns poucos dias. Palmas, portanto, para ela. É um outro mundo, muitos mais rápido.


A Internet também é mais democrática, mais aberta à difusão das opiniões, muitas vezes sensatíssimas, de ilustres desconhecidos que nunca tiveram a vaidade, ou ambição, de aparecer em letra de forma. Acho graça quando alguém, querendo designar grandes "inteligências", a "nata" do pensamento, cita nomes bem conhecidos. Nem sempre há coincidência entre inteligência, ou conhecimento, e o domínio de um assunto. Há belas inteligências e competências que não sentem o "impulso de aparecer". Por isso não se tornam conhecidos. Para agravar o isolamento, também não gostam de lecionar, não adquirindo títulos acadêmicos. Nem por isso, no entanto, têm visão intelectual inferior à daqueles que escrevem ou ensinam. Podem até, embora raramente, ser superiores aos acadêmicos porque, não lecionando, não perdem um tempo precioso repetindo aulas, passando horas no trânsito e corrigindo provas. Quando, porém, motivadas por algum fato, tais sabedores anônimos resolvem emitir suas esclarecedoras opiniões, a Internet está muito mais disponível do que a mídia impressa, sempre mais preocupada com o "currículo" do autor do texto do que com seu conteúdo intrínseco. Essa preocupação excessiva com o "currículo" demonstra falta de confiança da editora no próprio julgamento. Vacilante, algo perplexa em concluir se o texto é ou não bom, apela para o "currículo", que muitas vezes é enganador, revelando muito mais esforço que originalidade e clareza.


No campo literário, um acidente qualquer pode revelar a presença de um talento que só foi externado pelo próprio acaso do acidente. O grande romance "E o vento levou" foi escrito por uma dona de casa, Margareth Mitchell, que sofreu um acidente qualquer, teve que ficar numa cadeira de rodas e, para ocupar o seu tempo, decidiu escrever um romance. Inversamente, certos sucessos literários ou acadêmicos são muito mais fruto da transpiração, do esforço muscular e visual, do que do valor, em si, da obra. Como cada vez mais se publicam coisas que não se lêem, senão trechos, uma boa promoção transforma esforçados halterofilistas da caneta, ou do computador, em "artistas" e "pensadores".


A propósito, nunca entendi a exigência acadêmica de todo artigo conter abundantes notas de rodapé, provando que o autor não está mentindo. De minha parte, presumo que não está, a menos que sinta o cheiro da elaboração malandra. Prefiro autores que demonstrem real conhecimento dos temas, lidos, meditados e "metabolizados" pelo próprio autor. Opiniões próprias e não sucessivos registros de opiniões alheias. Argumentos apresentados com tal pertinência que convençam, dispensando citações e o peso da autoridade. Textos publicados na imprensa escrita procuram impressionar também pela extensão, pelo número de páginas. Falha que não ocorre com a Internet, com textos no geral bem menos extensos.


Noto, porém, que a preocupação com o dinheiro já começa a viciar a grande virtude democrática da Internet. Noto isso nos EUA. Mandei traduzir, para o inglês, alguns artigos meus, já publicados no Brasil, de relações internacionais, visando vê-los publicados em sites americanos. Fiquei, porém, sabendo da exigência de exclusividade. Não sei se isso é uma prática generalizada. Não aceitam artigos já publicados nem permitem a reprodução daqueles que por eles forem publicados, o velho problema da mídia impressa.


O dinheiro, a moeda, é uma grande invenção da humanidade. Mas é também algo que atrapalha a evolução cultural, quando sua aquisição torna-se preocupação exclusiva. Se um editor se preocupa apenas em ganhar dinheiro, valores e idéias novas nascem e morre sem ver a luz do sol. Alguém já disse que o Brasil é o país dos autores de um livro só, freqüentemente financiado pelo próprio autor. Este, mesmo tendo alguma coisa a dizer, logo desanima, se não consegue continuar "bancandor" sua própria produção. Sua "vaidade" torna-se exageradamente cara.


Espero que, no Brasil, a Internet continue, por longo tempo, com as portas abertas, ou pelo menos entreabertas ao pensamento, sem levar em conta apenas as considerações materiais e títulos dos que dela se servem.

 

_______________


*Escritor, Desembargador aposentado e Membro do
IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo







________________

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca