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A lei vale mais que a Constituição e menos que a resolução

A lei, que vale mais que a Constituição, vale menos, hoje, no reino multiabsorvente e totalizante do público, do que uma resolução, até então, na ordem lógica da pirâmide, uma norma inferior.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 15:03

A lei vale mais que a Constituição. E o coletivo, mais que o indivíduo. Já se fez, antes, esse registro. É uma realidade cultural e consecutiva, advinda da nossa deficitária e imatura formação humanista, não só enquanto juristas. Formação deficitária que advém, por sua vez, do nosso baixo grau de constitucionalismo. E baixo grau de constitucionalismo que advém, por fim, da nossa mirrada noção de pessoa. Tudo é um grande círculo vicioso. E sinuoso. E as inversões continuam, pululam, se aprofundam. E o sarrafo das garantias fundamentais pode baixar ainda mais. Existe, ainda, o outro lado da legalidade. O lado sombrio da nova legalidade, a legalidade malemolente, esmaecida, forjada pela moderna intelligentsia burocrática, decerto não mais oitocentista, e que alimenta o gigantismo do Executivo - a face mais ostensiva do Estado, a sentinela mais implacável do publicismo, arraigado, entre nós, como um credo daninho.

A lei, na marcha do constitucionalismo, nasceu para proteger o indivíduo contra as patas leviatânicas do poder, seja ele qual for: feudal, real ou estatal. A legalidade, portanto, antes de mais, é, ela mesma, uma garantia fundamental. Isto é, nem o legislador pode transigir com ela. Não, ao menos, com relação a um núcleo duro de garantias básicas. Esse é o legado histórico (João sem Terra, Revolução Gloriosa, Revolução Americana, Revolução Francesa etc), que não pode ser deitado fora. O resto é confete para a torcida. A noção de legalidade existe, enfim, para que o indivíduo não fique à mercê dos caprichos do poder. A lei, então, não liberta. Ela limita. Ou, se se preferir, liberta limitando. As razões são intuitivas, e humanas, demasiado humanas. A vida, afinal, quer subir; o homem quer (ser) mais; e o poder quer crescer, se espalhar, dominar. A lei, então, intercede como parâmetro. Serve de controle da (áurea) medida, para evitar a (férrea) desmedida. A legalidade é o mapa jurídico, desenhado pela livre vontade, para pessoas caminharem entre pessoas.

É claro que, mais do que nunca, sabemos, hoje, aterrados, quem é o (nosso) legislador. É claro, também, que, um dia, segundo Castoriadis, a ideia de representação política será tomada como ela deve ser: algo cômico, não fosse trágico. Ninguém, afinal, representa ninguém. Existencialmente, isso é impossível. O representante, dizia Ortega y Gasset, nunca é o representado. E é claro, por fim, que a lei não fará a revolução. Só o indivíduo pode se libertar (e é nele que é preciso investir e apostar; a vida pessoal é a única que é propriamente vida). Ainda assim, e apesar de tudo, subsiste, e deve(rá) subsistir, a ideia seminal de lei, isto é, a noção de limite, minimamente certo, posto no trato intersubjetivo, notadamente contra o Estado. Ainda assim, garantias fundamentais, resultantes de conquistas emancipatórias do homem, intrínsecas ao núcleo da legalidade, devem ser cultivadas. A norma, por exemplo, que pune (e não apenas a norma propriamente criminal, esse reducionismo é incompatível com a Constituição Federal): (a) deve ter os seus elementos estruturais definidos em lei (princípio da reserva legal/tipicidade, CF, art. 5º XXXIX); (b) deve retroagir no tempo, se for mais favorável ao infrator (princípio da lei mais benigna, CF, art. 5º, XL) e (c) não deve passar da pessoa do infrator (princípio da intranscendência da pena, CF, art. 5º XLV). Jogar fora essa ideia, com todo o seu pacote de garantias, ou esvaecê-la, relegando ao oblívio a já hoje desacreditada advertência de Montesquieu, é convidar a raposa para tomar conta do galinheiro. Romper, enfim, com padrões certos, sabidos, definidos, mínimos, é abrir as comportas para a avalanche esmagadora do Estado, ao sabor de políticas de governo.

Os tempos, é certo, são outros, mais velozes. As imposições do mundo são novas, mais complexas. E as expertises, diversas, e mais especializadas. Mudaram, enfim, o estado da arte e o estado da técnica. E a (velocidade de fabricação da) lei, dizem, não acompanha a (velocidade de transformação da) vida. Nem pode prever tudo. Nessa quadra, portanto, ela já não mais serviria como padrão de controle. Seria obsoleta. Esse é o arcabouço teórico que justificou a grande mudança, consubstanciada, na verdade, na arguta reinvenção, de si mesmo, por parte do poder público: se a lei não é mais parâmetro, deslegaliza-se. Tudo fica, então, na mão do administrador, que reúne, agora, todos os anéis, e performa todas as funções: define, aplica, pune, julga e recolhe.

A legalidade, então, foi trocada por moeda barata. Senão barata, fluida e perispiritual. Uma troca, pois, engenhosa. O que antes era (mais) certo e (mais) claro, posto como contraponto à força estatal, foi trocado por standards abertos (de prova quase diabólica). Sai de campo, assim, a legalidade e, no seu lugar, entram a proporcionalidade e a eficiência. Na prática, no entanto, do dia a dia forense, é necessário ingente ginástica retórica - além de muita boa vontade e independência por parte do julgador -, para, num caso concreto, demonstrar, contra todo o aparato e astúcia do sistema, eventual violação a tais princípios. Mas esse não é o aspecto principal. A troca foi, sobretudo, altamente vantajosa. Afinal, o Estado, titular dos serviços públicos, não precisa mais investir neles, nem aprimorá-los, nem, com isso, responder, diretamente, por seu imenso e crônico débito social. A conta fica transferida. Ele só disciplina, pune e arrecada, em nome da sociedade (sem que o produto, na lógica pragmática que o anima, se reverta para esta, ou para os serviços). Eis, aí, o modelo do Estado regulador. Um modelo que, na verdade, nada tem, ao contrário do que se apregoa, de neo-liberal. Trata-se, antes, de sofisticada fórmula político-normativa que o arraigado publicismo concebeu para o Estado reforçar o seu estatalismo, multiplicando-se e espraiando-se, ainda mais, por todos os setores da vida. Chegamos, com isso, ao coração da grande confusão: a lei, que vale mais que a Constituição, vale menos, hoje, no reino multiabsorvente e totalizante do público, do que uma resolução, até então, na ordem lógica da pirâmide, uma norma inferior.

Não é bizantinismo, portanto, denunciar, aqui, o lado escuro da legalidade. É, antes, uma urgência urgentíssima. Afinal, os efeitos do rebaixamento da legalidade são notórios, e já se fazem deletérios. Veja-se o exemplo, histórico e devastador, do setor de telecomunicações, notadamente no que diz respeito ao poder punitivo delegado à Anatel, e como ela o tem exercido. E mais especificamente, no que diz respeito ao conteúdo da norma de delegação que lhe foi atribuída (além desse, vários outros temas poderiam ser aflorados, mas não caberiam aqui). Ela está no art. 179, caput, da lei 9.472/97. Seu texto diz (apenas) o seguinte: "a multa poderá ser imposta isoladamente ou em conjunto com outra sanção, não devendo ser superior a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais) para cada infração cometida". Essa, diga-se mais uma vez, é a norma de delegação punitiva. Uma norma, como se vê, escancarada e inconstitucionalmente aberta, justamente porque nada diz. O padrão normativo é prima facie insuficiente. Seu texto sequer alude ao termo telecomunicações. Essa estrutura, a rigor, poderia ser adotada para disciplinar qualquer relação, inclusive entre condôminos. Nada de nada, com efeito, relacionado a telecomunicações, é definido ali: nenhum tipo de conduta infracional, nenhuma hipótese de incidência de multa (como se dá em qualquer outro ramo do direito sancionador, desde o crime até a multa de trânsito). Tudo fica ao sabor da Anatel, através de resoluções, num cheque em branco de até R$ 50 milhões. Dir-se-ia, no entanto, como atenuante, que as resoluções são precedidas de consultas públicas. Mas nem isso. Basta consultar a realidade, com olhos de ver da cara, e constatar-se-á que, ao fim e ao cabo, o que prevalece é a vontade do príncipe, numa encenação democrática para inglês ver.

As multas, então, são balizadas e banalizadas, apenas, por esse parâmetro: um teto máximo, por infração, de R$ 50 milhões. Ou seja, o administrador dispõe, para cada infração, que desde logo não se sabe qual, de uma régua que vai do chão até praticamente o céu, para, como lhe parecer bem, aplicar multas. E aí cada unidade regional da agência faz como lhe aprouver. De fato, o valor da multa, aplicada por uma unidade, pela mesma conduta, numa localidade, pode destoar, substancialmente, daquele fixado, por outra unidade, em relação à outra localidade. Não há congruência. A única uniformidade de padrão é a de não haver uniformidade de padrão nenhuma, nem, sobretudo, observância da capacidade econômica da operadora, tal como determina o art. 179, § 1o, em outro minguado parâmetro normativo definido na lei 9.472/97. A saber, a agência, na fixação da multa, não leva em conta o todo territorial da concessão, ou da autorização do serviço (nem a capacidade de investimentos, ou desempenho econômico da operadora), mas, apenas, a infração pontualmente considerada, naquela localidade específica (num rincão isolado, v.g., desse país continental), tendo por único parâmetro o céu de R$ 50 milhões. Em suma, não há nenhuma accountability punitiva por parte da Anatel. E o déficit de motivação é ostensivo.

Tamanha, aliás, se revelou a desmesura da atuação da agência, que tudo isso fora vaticinado, inclusive, pela própria Anatel, já em 2008, por meio de Informes editados por um grupo de gerentes técnicos de uma de suas unidades regionais. É claro que aqueles documentos não foram validados pelo conselho diretor da agência. Seria, afinal, se assim tivesse sido, a autoproclamação de sua falência institucional. Mas o fato - e fatos são fatos, consubstanciados em documentos públicos - é que ali se alertou para o caráter desproporcional da atuação punitiva da agência. E ali também se antecipou o inevitável, o de que esse padrão de asfixia, mais cedo ou mais tarde, não terminaria bem, como, de fato, não terminou. A maior operadora do setor entrou em estado de agonia econômico-financeira, ora em fase de convalescimento dentro da maior recuperação judicial da América Latina, e a Anatel (e não um banco, ou um parceiro comercial, ou um fornecedor, ou até mesmo o Fisco, por débitos tributários) transformou-se no seu principal credor individual, postulando um crédito de cerca de R$ 14 bilhões, a título de multas administrativas, que não revertem para o setor, nem para o serviço, mas ingressam como receita pública da União. Aqui, portanto, se chegou ao paroxismo de todo esse quadro de anomalia constitucional, com a diminuição da legalidade e o superempoderamento da agência. E, aqui, também, ao mesmo tempo, afloram, com mais razão, múltiplas perplexidades: são, na largada, suficientes e razoáveis os parâmetros punitivos definidos no caput do art. 179 da LGT? Cabe delegação punitiva em branco? Delegação em branco não é abdicação legislativa? E o Poder Legislativo pode abrir mão de legislar, ainda mais em matéria de reserva de lei? Seria tão difícil, assim, no setor de telefonia, a definição de tipos legais? Não é assim em qualquer outro ramo em que haja intervenção do Estado (tributos, trânsito, crime, etc)? Por que razão seria diferente nos setores regulados?

Ninguém, no entanto, nem mesmo o legislador, ou sobretudo o legislador, pode dar o que não tem. E o legislador não dispõe de poderes para delegar poderes punitivos amplos a agências reguladoras. A Constituição erigiu essa garantia - em prol da pessoa - contra o próprio legislador. Não se questiona, aqui, evidentemente, o poder normativo delas. Nem que a Anatel possa regular o setor das telecomunicações. Nem se questionam, tampouco, as necessidades da vida moderna. O que se questiona é a amplitude desse poder punitivo, os parâmetros dessa transferência e o modo de executá-la. O caso da Anatel é paradigmático. E revela quão devastador pode ser consentir-se com a degradação da legalidade. Nos albores, aliás, da promulgação da lei 9472/97, o STF, ao julgar, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, medida cautelar na ADIn 1.668-5/DF (o mérito ainda não foi julgado), fez esse preciso temperamento. Ali, prevalecendo o ponderado voto do ministro Sepúlveda Pertence (dando interpretação conforme ao art. 19, IV, X e XV daquela lei), assentou-se que o poder normativo da Anatel subsiste, e é válido, desde que subordinado à legislação (o que inclui, antes de mais nada, o que seria até ocioso dizer, respeitar o próprio núcleo constitucional da legalidade). O Tribunal Regional Federal da Segunda Região tem desconsiderado, no entanto, essa baliza hermenêutica fixada pela Corte Suprema. Aliás, ela própria, em pronunciamentos mais recentes (ADIn 4923, relator ministro Luiz Fux; e ADIn 4.874, relator ministra Rosa Weber), ao julgar questões análogas, referentes a outras agências (Ancine e Anvisa), assim também tem feito, direcionando o entendimento para validar o poder amplíssimo das agências.

Com isso, com truques teóricos de prestidigitação jurídica, o Poder Judiciário tende a sufragar essa nova legalidade, a legalidade encolhida (fruto da seguinte engenharia: o legislador não legisla, o administrador se incumbe disso e o magistrado diz que é assim mesmo). Ou, então, ele faz mais, e de modo mais criativo. Nesse vácuo, ou cafarnaum, normativo, onde a pirâmide das fontes fica invertida, já que a Constituição e suas garantias viraram adorno, e a lei, hoje, é bem outra - mais do que aquela e menos do que uma resolução -, não lhe custa nada converter-se, no final do dia, em Demiurgo para todo e qualquer assunto. Com isso, assume, para si, a tarefa de dizer não mais apenas o direito, pois isso já lhe pareceria pouco, mas - o que é - o mundo da vida. Temos, no entanto, muita sorte. Calhou de sermos um país de Voltaires, Diderots, Kants e Rousseaus, que estão a nos iluminar do mais alto das suas plataformas de cúpula. Estamos salvos então.

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*Bruno Di Marino é sócio fundador do escritório de advocacia Basilio Advogados.

*Felipe de Oliveira Gonçalves é advogado do escritório de advocacia Basilio Advogados.

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