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Sinistralidade e relação contratual

As operadoras fingem que a lei não existe e a ANS finge que as fiscaliza. Resta ao consumidor ficar atento e vigiar sempre a atuação da operadora que contratou para que a violação dos direitos não ocorra.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Atualizado em 26 de setembro de 2019 14:55

O conceito de sinistralidade é usado pelas operadoras de saúde como balizador na hora do reajuste de preços. A apuração dos últimos 12 meses da receita versus despesa indica se o contrato é financeiramente compensador para as partes, ou se o valor pago na mensalidade é justo e mantém a relação contratual equilibrada, considerando os sinistros ou as despesas geradas com aquele contrato.

 

Quanto mais um grupo usa o plano de saúde, maior a sinistralidade e, consequentemente, maior o reajuste no ano seguinte. A configuração de abuso ocorre quando a cláusula, que consta da maioria dos contratos coletivos empresariais, passa a ser cobrada de forma incorreta para burlar os dispositivos legais previstos no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e nas regras da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

 

Como todos os contratos preveem aumento por faixa etária, quando esse é aplicado não deve ser imputada, ainda, a cláusula de sinistralidade. Não se pode cobrar de um cliente dois aumentos anuais. Ou se cobra pela mudança de faixa ou pela sinistralidade. A fragilidade e ilegalidade do conceito é evidente se pensarmos que as operadoras, ao traçarem seus planos de negócio, já calculam uma margem de risco para sua atuação no mercado.

 

De acordo com o artigo 757 do Código Civil, de 2002, não é permitida a transferência do risco que descaracteriza o contrato de seguro. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.

 

Como as contas não são transparentes e os cálculos das taxas de uso nunca são mostrados, não há a comprovação de quitação das mesmas que justifique a sinistralidade. A medida também se torna nula pelo CDC que trata da ausência de informação clara e adequada no artigo 6º, III (lei 8078/90) e da imposição de obrigação iníqua, excessiva, que cria desvantagem exagerada e permite a variação unilateral do preço - no artigo 51, incisos IV e X.

 

Uma relação contratual tem de ser útil e justa às duas partes, sem privilegiar o interesse de uma, em detrimento da outra. Um dos casos mais comuns é o dos pacientes com câncer. Se em uma apólice existir um paciente de alto custo, que gera a sinistralidade, quando esse paciente morre, as taxas não voltam ao patamar anterior em que não havia o gasto. As taxas de sinistro continuam altas e sendo cobradas, como se aquele paciente ainda estivesse utilizando o remédio caro ou gerando despesas de uma internação na UTI. A mensalidade deveria ser reduzida quando não ocorre o sinistro.

 

 

Em 2012, a ANS criou a resolução normativa 309, que dispõe sobre o agrupamento de contratos coletivos de planos privados de assistência à saúde para fins de cálculo e aplicação de reajuste. O artigo 3º é claro na questão dos reajustes e seus termos também não têm sido respeitados. Seria recomendável que os planos coletivos fizessem agrupamentos de, no mínimo, dois mil beneficiários para a diminuição dos riscos atuariais.

 

Felizmente, os tribunais de justiça brasileiros vêm acolhendo recursos de empresas que se sentem lesadas com a aplicação abusiva dos reajustes e esse entendimento garante ao consumidor o direito à saúde, sem prejuízo do que foi acordado na assinatura do contrato.

 

O TJ/SP julgou em 17 de abril de 2013 a apelação 0218154-93.2011.8.26.0100, de reajuste de um contrato coletivo com base na sinistralidade. Na súmula 469, o desembargador Moreira Viegas entendeu que aquela disposição contratual colocava o consumidor em desvantagem exagerada ao permitir que o fornecedor variasse o preço de maneira unilateral e que havia ali a violação do artigo 51, incisos IV e X, do CDC.

 

Também reconheceu a abusividade na cláusula contratual que previa a rescisão unilateral imotivada e, ainda, julgou inadmissível o cancelamento injustificado do seguro saúde que coloca os segurados do contrato coletivo em situação de desvantagem - o que é contrário à lei 9.656/98, e ao CDC. A sentença foi mantida e o recurso desprovido.

 

Em outro caso, envolvendo ação civil pública contra a Amil Assistência Médica Internacional, que firmou contratos coletivos por adesão com micro e pequenas empresas, o juiz entendeu parcialmente procedente o pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo, tendo declarado nula a cláusula contratual que estipula em desfavor do consumidor reajuste por sinistralidade.

 

Além disso, impôs a abstenção à demandada de inserir, nos contratos celebrados, disposição estabelecendo reajuste por sinistralidade, sob pena da incidência de multa, com fundamento no artigo 461, parágrafo 4º, do CPC, no valor de R$ 5 mil, por descumprimento e, ainda, a revisão da contraprestação que lhe é devida, com a incidência somente dos índices da ANS, sem prejuízo dos reajustes por mudança de faixa etária.

 

"Não é viável a utilização de fórmula matemática composta com fatores apurados unilateralmente pela recorrente e de, repita-se, difícil compreensão. Nega-se, por isso, provimento ao apelo". (TJ/SP - 6ª Câmara de Direito Privado - apelação 0216448-75.2011.8.26.0100).

 

Esses exemplos deixam claro que as operadoras fingem que a lei não existe e a ANS finge que as fiscaliza. Resta ao consumidor ficar atento e vigiar sempre a atuação da operadora que contratou para que a violação dos direitos não ocorra.

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*Renata Vilhena Silva é advogada e sócia-fundadora do escritório Vilhena Silva Advogados.

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