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Boa-fé e contrato de trabalho

A Consolidação das Leis do Trabalho não se refere uma única vez à boa-fé. Na CLT, o artigo-chave é o 9º, que diz: ´´Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação´´.

quarta-feira, 22 de outubro de 2003

Atualizado às 11:08

Boa-fé e contrato de trabalho  

 

Almir Pazzianotto Pinto* 

 

O professor Miguel Reale, discorrendo sobre a orientação metodológica imprimida ao Código Civil, afirma que ''não se compreende nem se admite, em nossos dias, legislação que, em virtude da insuperável natureza abstrata das regras de direito, não abra prudente campo de ação construtiva da jurisprudência ou deixe de prever, em sua aplicação, valores éticos como os de boa-fé e eqüidade''.

 

Em comentário ao Código, publicado pelo Estado na edição de 21 de junho, o emérito jurista assinala que em todo ordenamento jurídico ''há artigos-chaves, isto é, normas fundamentais que dão sentido às demais, sintetizando diretrizes válidas para todo o sistema''. Na lição de Miguel Reale, o artigo-chave do Código Civil é o 113, cujo texto diz: ''Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração''. Prosseguindo, registra o eminente civilista que a boa-fé ''é o cerne ou matriz da eticidade, a qual não existe sem a intentio, sem o elemento psicológico da intencionalidade ou do propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado''. Boa-fé, prossegue o mestre Reale, ''é uma das condições essenciais da atividade ética, nela incluída a jurídica, caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela participam, em virtude do que se pode esperar que será cumprido o pactuado sem distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes''.

 

A Consolidação das Leis do Trabalho não se refere uma única vez à boa-fé. Na CLT, o artigo-chave é o 9º, que diz: ''Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação''. Aparentemente simples, o dispositivo se reveste, entretanto, de notável complexidade e ilimitado alcance, pois tanto se presta para corrigir atos fraudulentos e contrários à lei como para transformar contrato civil em trabalhista, mesmo quando celebrado e praticado em harmonia com o que fora pactuado e obedecidas as exigências legais. É o dispositivo que faculta ao juiz do Trabalho aplicar o princípio do ''contrato realidade'', em benefício do prestador de serviços e para surpresa do tomador de serviços, que repentinamente se vê transformado em patrão, com os encargos que essa qualificação atrai.

 

Ao contrário do que fizera o Código Civil de 1916, e do que faz o Código de 2002, a CLT ignorou a boa-fé e a má-fé em favor do ''hipossuficiente'' e do ''contrato realidade''. Visando à proteção dos empregados, entre os quais não reconheceu diferenças relativas a espécie de emprego e a condição do trabalhador nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual, a CLT adotou a regra do art. 9º, do qual é decorrência o art. 468, que admite alteração contratual por mútuo consentimento, desde, porém, que não provoque, direta ou indiretamente, prejuízo ao assalariado, sob pena de nulidade da cláusula.

 

Solicitado a investigar alegação de fraude, o juiz do Trabalho se limitará, na maioria dos casos, a verificar se o tomador de serviços corresponde ao perfil do artigo 2º da CLT, e se o prestador de serviços preenche o modelo desenhado pelo artigo 3º. Havendo indícios de dependência ou subordinação, a probabilidade é de que ocorra o reconhecimento de relação de emprego, independente de se investigar se houve ou não má-fé quando da celebração do contrato de natureza não trabalhista, como, por exemplo, o de prestação de serviços, previsto pelo Código Civil.

 

É óbvio que empregadores ou tomadores de serviços também cometem atos de má-fé, deixando, por exemplo, de registrar alguém que contratavam como empregado. Nesse caso, porém, presente já se encontrava o contrato tácito ou ajustado verbalmente. Não me refiro a essa situação, comum em um país onde o mercado informal, por razões que aqui não cabe examinar, é maior do que o mercado estruturado. Preocupa-me que sob a cobertura do contrato realidade se multipliquem condutas nas quais a má-fé não é coibida em nome de duvidosa necessidade de proteção a alguém que não corresponde ao modelo de hipossuficiente. É o caso do artista que celebra contrato de imagem. Ora, quem é hipossuficiente não reúne condições de auferir renda com contrato de imagem. Isso somente se dá quando a pessoa tem notoriedade e o seu nome, ou fotografia ou voz, adquire valor susceptível de exploração pela mídia.

 

Na revisão da legislação material do trabalho dever-se-á abrigar, em algum dispositivo, o princípio da boa-fé, por oposição à má-fé, proclamando-se, como no Código Civil, que nas relações entre empregadores e empregados os contratos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes no local da celebração. 

 

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* Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado

 

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