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Plea bargain e sua inaplicabilidade no direito brasileiro

Não há democracia sem respeito ao Estado de direito; não existe Estado de direito sem respeito à ampla defesa e ao devido processo legal, especialmente no tocante à aplicação de pena privativa de liberdade; não há espaço no direito brasileiro para a implementação do plea bargain.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Atualizado em 11 de outubro de 2019 13:16

O ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro, politicamente nomeado pelo presidente da República como ministro da Justiça e Segurança Pública, como era de se esperar apresentou casuisticamente proposta de inserção no direito brasileiro de mecanismo semelhante ao plea bargain estadunidense.

O plea bargain é um instituto originário do common law, que consiste em uma negociação realizada entre Ministério Público e acusado, pensado com intuito do acusado prestar informações de interesse do parquet para que este, por sua vez, deixe de acusá-lo ou o faça de modo parcial e/ou atenuado. Neste modelo, o acusado pode optar por exercer seus direitos e garantias processuais e constitucionais ou deixá-los em troca de algum benefício, podendo também declarar-se culpado das acusações do Ministério Público, recebendo como contraprestação a atenuação no número de acusações e/ou na gravidade das penas a serem aplicadas. Trata-se em última análise de um contrato firmado entre a parte acusatória e a parte ré, sem a participação de um juiz e portanto sem imparcialidade. Ao Judiciário cabe unicamente o papel de executor do pactuado. Adotado em poucos países europeus, o plea bargain possui maior popularidade nos Estados Unidos (país adepto do sistema common law). Lá, sua aplicação tentou ser justificada a partir do crescente número de processos criminais nos tribunais e da necessidade de sua resolução célere e eficiente.

Como era de se esperar, também aqui o fundamento, marcantemente econômico, é de diminuição de processos na Justiça. Nada mais equivocado! A adaptação ao Brasil deste modelo estadunidense, já pouco utilizado na Europa e alvo de fortes críticas nos próprios Estados Unidos (vide superencarceramento, supressão de direitos como a não autoincriminação e o julgamento por corpo de jurados imparciais), é inviável. E isso porque há completa ausência de alinhamento cultural e descompasso entre os sistemas jurídicos de civil law e common law. É de clareza solar em todos os meios acadêmicos que no Brasil, diferentemente do modelo estadunidense, impera o sistema romano-germânico, mais conhecido como civil law, que se define pelo fenômeno da codificação do direito. Por isso a impossibilidade de implementação em nosso país o plea bargain estadunidense. O mais grave porém é que essa proposta é sedimentada por um caráter evidentemente autoritário. Ela limita o uso do remédio constitucional do habeas corpus, despreza o instituto a presunção de inocência e ignora direitos fundamentais como por exemplo o devido processo legal. Mais, ela suprime a jurisdição, tudo em franco atentado à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Além disso tudo, desse desalinhamento do modelo com a Constituição e legislação brasileiras, num país que já ocupa em números absolutos o terceiro lugar no ranking de países com maior população prisional no mundo, seguramente contando hoje com mais de 800.000 pessoas presas, em sua maioria jovens, negros, econômica e socialmente vulneráveis, moradores de zonas periféricas, a adoção dessa sistemática apenas contribuirá para o incremento deste número, recrudescendo ainda mais o fenômeno da violência e fazendo mais e mais vítimas. É certo que o plea bargain terá nessa mesma população, já marginalizada e menos esclarecida, clientela principal do violento sistema de justiça criminal brasileiro, seu principal alvo. Adotar este modelo é reconhecer que apenas essa faixa mais vulnerável das pessoas fará acordos e cumprirá penas deles provenientes, em nome de um Poder Judiciário elitista. Ou alguém duvida que a simples possibilidade de responder por um crime mais grave causará no cidadão que ignora a legislação penal a pressão de aceitar o acordo oferecido pelo Ministério Público sem ser culpado? Isto ocorrerá diante da abissal disparidade de força processual entre as duas partes, cujo sistema acusatório ainda não se estabeleceu nos moldes constitucionais e onde o Ministério Público continua marcantemente mais poderoso em face do cidadão. Esse medo fará com que o acusado aceite acordos, não importa o preço a pagar.

Traveste-se o plea bargain, assim, em uma espécie de coerção legalizada, sem defesa efetiva. Essa proposta não atenta sequer para o aspecto econômico. O sistema prisional está colapsado, com deficit de vagas em cerca de 50%. O estado não possui condições de construir e manter mais vagas, havendo apenas o caminho lógico do combate à cultura do encarceramento em massa e redução do número de pessoas presas. Neste sentido, a proposta do ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública representa grave retrocesso na caminhada da sociedade brasileira em prol da democracia processual e dos direitos e garantias individuais. A Constituição e os princípios e direitos fundamentais, bem como o próprio Estado Democrático de Direito precisam ser respeitados. Insistir em impor de qualquer jeito a prática do plea bargain no Brasil representa evidente violação formal e material das disposições da Magna Carta. Lembre-se, não há democracia sem respeito ao Estado de direito; não existe Estado de direito sem respeito à ampla defesa e ao devido processo legal, especialmente no tocante à aplicação de pena privativa de liberdade; não há espaço no direito brasileiro para a implementação do plea bargain. O plea bargain rasga a Constituição e isso não podemos admitir, jamais!

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*João Marcos Buch é juiz de direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD.

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