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Protesto do recebedor e jurisdição

Carta exclusiva ao mercado segurador.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Atualizado em 26 de fevereiro de 2019 14:57

Constantemente somos indagados sobre muitas questões envolvendo a figura legal do protesto do recebedor.

Uma delas diz respeito à jurisdição ou extraterritorialidade.

Nosso objetivo é tratar de forma muito objetiva neste texto, uma espécie de carta aberta ao mercado segurador.

Vejamos:

Desde 2002, o protesto do recebedor é disciplinado pelo art. 754 do Código Civil:

Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega.

O artigo de lei só pode ser exigido e aplicado no Brasil.

Significa dizer que ele é válido e eficaz para todos os transportes nacionais e para os internacionais concluídos no Brasil.

Um transporte que foi iniciado no Brasil, mas concluído no exterior, onde o dano (falta ou avaria) foi constatado, não se submete ao seu conteúdo.

Em outras palavras: o art. 754 do Código de Processo Civil não pode ser exigido em outro país.

Ainda em outras palavras e de forma mais explícita: o protesto do recebedor do art. 754 do Código Civil cabe em transporte envolvendo importação, mas não em caso de exportação.

Assim como uma regra legal estrangeira não pode ser aplicada no Brasil, a regra brasileira não pode ser exigida no exterior.

Tudo isso serve para endossar a seguinte afirmação: não se fala em decadência do Direito de regresso do segurador sub-rogado contra o transportador internacional de carga se não for apresentado o protesto do recebedor, previsto no art. 754 do Código Civil.

A pretensão de ressarcimento continuará plenamente em vigor, bastando ao segurador sub-rogado encontrar algum meio de prova para atestar o nexo de causalidade e o dano (prejuízo).

Não se trata apenas de mera interpretação subjetiva do Direito, mas de correta inteligência dos sistemas legais, o brasileiro e os estrangeiros.

Trata-se, pois, de objetiva hermenêutica jurídica.

Uma questão derivada desta merece especial atenção e ela nasce a partir da seguinte indagação: sendo a ação regressiva de ressarcimento ajuizada no Brasil, o art. 754 do Código Civil não é exigível?

A resposta segura é não.

As regras de jurisdição e competência, instrumentais, não se confunde com as de direito material.

O fato de uma disputa judicial ocorrer no Brasil não vincula a parte a usar todas as regras do ordenamento jurídico brasileiro.

Sempre será competente a jurisdição nacional para ações judiciais fundadas no contrato de transporte, marítimo ou aéreo, internacional de cargas, porque normalmente presentes as condições estabelecidas nos três incisos do art. 21 do Código de Processo Civil.

Art. 21. Compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações em que:

I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

II - no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;

III - o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.

Parágrafo único. Para o fim do disposto no inciso I, considera-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que nele tiver agência, filial ou sucursal.

O segurador sub-rogado enfrentará um réu, transportador, com sede no Brasil (inciso I), lembrando-se que para o conceito de sede, em se tratando de pessoa jurídica estrangeira, entende-se também "agência, filial ou sucursal" (parágrafo único).

Além disso, tem-se que o contrato de transporte internacional de carga normalmente é celebrado no Brasil, ajustando-se bem ao quanto disposto no inciso II, ou seja, "o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil".

O inciso II ("no Brasil tiver que ser cumprida a obrigação") não se cogita neste momento porque o alvo do estudo é a não exigência do protesto do recebedor (art. 754 do Código Civil) no exterior, mas é evidente que ele se aplica em todos os casos de processo de importação.

Diante do teor do art. 21, impossível o não reconhecimento da jurisdição brasileira em favor do segurador sub-rogando, sendo conveniente lembrar que este artigo se conecta ao conteúdo normativa, cogente, da garantia constitucional fundamental do acesso ao Poder Judiciário no Brasil.

Aliás, vale a pena lembrar que a jurisdição nacional não poderá ser afastada, relativamente ao segurador sub-rogado, nem mesmo por ato voluntário do segurado em favor do foro estrangeiro, haja vista o quanto disposto no § 2º, do art. 786 do Código Civil, que diz expressamente: "É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo".

Ora, a jurisdição nacional não implica a aplicação do Direito brasileiro no exterior.

Se a regra do art. 754 do Código Civil só é válida e eficaz para sinistros de transportes constatados no Brasil, é certo que ela não poderá ser exigida em um litígio em trâmite no Brasil, mas com ato-fato jurídico apurado no exterior.

Dentro dessa cadeia lógica, é certo afirmar que eventual regra equivalente à do protesto do recebedor no Direito estrangeiro não poderá ser igualmente exigida em um litígio no país.

Por isso, irrelevante o conhecimento ou não do Direito de outro país a respeito da figura análoga ao do protesto recebedor brasileiro.

O litígio judicial no Brasil fundado em inadimplemento de obrigação contratual de transporte no exterior não obriga a observância da figura do protesto do recebedor, seja segundo o Direito brasileiro, seja conforme o Direito de qualquer outro país.

Para que o litígio seja forte, bastará ao interessado provar o nexo de causalidade e o dano (prejuízo), sendo certo que qualquer meio de prova é hábil para tanto.

Por fim, ainda sobre o protesto do recebedor, nunca é demais lembrar, em linhas muito sumárias que:

1. A jurisprudência admite que alguns instrumentos formais e legais, presumidamente idôneos, lhe façam às vezes, destacando-se: o termo de faltas e avarias dos depositários, o Siscomex-Mantra da Infraero e os boletins de ocorrências das polícias federal, estaduais, rodoviárias (federal ou estaduais).

2. Recebedor não é necessariamente o consignatário da carga, o segurado, mas qualquer pessoa, natural ou jurídica, que tenha algum contato. Isso sempre foi uma sólida construção doutrinária, abraçada pela jurisprudência e, agora, prestes a se tornar regra legal em sentido estrito, conforme o art. 74, V, do PLS 75/18 (lei do transporte rodoviário de cargas), que determina: "recebedor: aquele que recebe a carga do transportador, podendo ou não ser o destinatário".

3. O protesto pode ser efetuado pelo despachante aduaneiro do dono da carga (segurado), pelo comissário de avarias, pelo regulador do sinistro e pelo próprio segurador. Qualquer pessoa, natural ou jurídica, com legítimo interesse no transporte de uma carga tem capacidade para apresentar o protesto.

4. Não se exige protesto do recebedor contra atos do depositário, uma vez que o art. 754 se encontra no rol de regras do Código Civil que tratam do contrato de transporte, não da obrigação de depósito.

5. Em caso de operação logística de transporte de carga, recomendam a cautela e a prudência que o protesto seja lançado contra todos os seus atores, mas não sendo isso possível, é juridicamente defensável a ideia de o protesto formalizado contra um dos participantes a todos aproveita.

Interessante observar que a sub-rogação redesenha a situação jurídica de qualquer lide, de tal modo que o respeito ao seu conceito, às regras legais que a informam e ao enunciado de súmula 188 do STF [O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro] se sobrepõem à qualquer outra questão, contratual e até mesmo legal, levando-se em elevada conta que o segurador sub-rogado ao defender seus legítimos direitos e interesses em juízo o faz também em favor do colégio de segurador (princípio do mutualismo) e, reflexamente, de toda a sociedade, por causa da dimensão econômico-social do negócio de seguro (função social da obrigação). 

Posto tudo isso, lembradas os itens acima, existe plena segurança da parceria MCLG-SMERA-BSI em afirmar que a regra do art. 754 do Código Civil não é exigível no exterior, assim como um litígio no Brasil referente a sinistro no exterior não induz sua aplicação nem a de figura análoga de outro país. Basta, nunca é demais lembrar, algum meio de prova idôneo e razoavelmente robusto acerca da responsabilidade do transportador internacional de cargas.

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t*Paulo Henrique Cremoneze  é advogado com atuação nas áreas do Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.

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