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Endowment: Você sabe o que são fundos patrimoniais?

A ideia central dos endowment funds é assegurar a perenidade no financiamento dos projetos que motivaram as doações, já que somente os rendimentos advindos do investimento no mercado financeiro dos recursos doados será utilizado para custeá-los.

quarta-feira, 27 de março de 2019

Atualizado às 10:47

Os fundos patrimoniais, também conhecidos como endowment funds ou fundos filantrópicos, são fundos de caráter permanente formados por recursos advindos de doações de pessoas físicas e/ou pessoas jurídicas, os quais são investidos no mercado financeiro (inclusive em fundos de investimento) por gestor profissional, sendo que os rendimentos auferidos são revertidos para projetos relacionados à finalidade social atrelada às doações.

A ideia central dos endowment funds é assegurar a perenidade no financiamento dos projetos que motivaram as doações, já que somente os rendimentos advindos do investimento no mercado financeiro dos recursos doados será utilizado para custeá-los. Deste modo, o dinheiro doado em si estará sempre sendo reinvestidos para garantir que haja capital suficiente para a continuidade da iniciativa. Dado à lucidez dessa estrutura, os fundos patrimoniais vêm ganhando relevância nos últimos anos dentro do contexto nacional, principalmente, pela necessidade de implementação de um suporte financeiro para projetos e instituições sem fins lucrativos, no longo prazo, de forma sustentável e organizada.

A criação dos fundos patrimoniais é permitida com base nos seguintes princípios constitucionais: (i) legalidade, ou seja, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei conforme o artigo , inciso II, da Constituição Federal, isso porque, não se violando qualquer regra jurídica, deve vigorar como preceito geral a liberdade e a autonomia das partes; e (ii) é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar, sendo certo que a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas não dependem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento, conforme art. 5º, inciso XVII e XVIII, respectivamente, também da Constituição.

Os endowment funds não possuem personalidade jurídica própria à luz da ordem legislativa brasileira, por não se encaixarem nas figuras previstas no artigo 44 do Código Civil Brasileiro. Dessa forma, os fundos patrimoniais são constituídos por meio de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, ou seja, associações ou fundações, as quais passam a ter responsabilidades e atribuições relacionadas aos recursos arrecadados em decorrência das doações, bem como rendimentos auferidos pelo investimento destes fundos. Assim, a criação de um fundo patrimonial ocorre por meio do estatuto social de uma associação ou fundação, instrumento jurídico no qual deve ser disciplinado o funcionamento do endowment, em conformidade com a nova legislação aplicável abordada adiante.

A doutrina aponta quatro principais formas de estruturação de um fundo patrimonial1:

  1. Fundo patrimonial vinculado a uma associação preexistente, que será auxiliada com os recursos do fundo, como o Instituto Serrapilheira que se trata de uma associação sem fins lucrativos, criada para valorizar a ciência e aumentar sua visibilidade e impacto no Brasil. Atua com recursos oriundos de um fundo patrimonial constituído por uma doação de R$ 350 milhões;
  2. Fundo patrimonial vinculado a uma fundação preexistente, que será auxiliada com os recursos do fundo, como é o caso da Fundação Ary Frauzino para Pesquisa e Controle do Câncer, a qual foi constituída com parte dos recursos da Fundação do Câncer em 1996;
  3. Fundo patrimonial vinculado a uma associação criada especialmente para a manutenção do endowment, como a Endowment Direito GV, associação que mantém um fundo patrimonial, composto por parte de seu patrimônio, que é segregado do patrimônio operacional e das demais reservas, com o objetivo de preservar a perpetuidade dos recursos, manter o poder aquisitivo e expandir o patrimônio ao longo dos anos do endowment para auxiliar estudantes com necessidades socioeconômicas da FGV Direito SP (Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas); e
  4. Fundo patrimonial vinculado a uma fundação criada especialmente para a manutenção do endowment, como é o caso da Fundação Fundo Patrimonial FEAUSP, a qual mantém um fundo patrimonial, composto por parte de seu patrimônio, o qual é segregado do patrimônio operacional e das demais reservas, com o objetivo de ser mantida a perpetuidade, de maneira que seu poder aquisitivo seja preservado ou expandido ao longo dos anos.

No que diz respeito à governança dos fundos patrimoniais, a ideia é que haja uma gestão profissional dos recursos conforme a política de investimento aprovada pela associação ou fundação que o criou. A supervisão é realizada por um comitê de investimento, sendo que a tomada de decisões pode ocorrer no âmbito dos órgãos deliberativos das pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de forma autônoma no âmbito do próprio fundo patrimonial. Também pode ocorrer a criação de comitês técnicos, formados por indivíduos com conhecimentos específicos sobre determinado tema pertinente ao fundo patrimonial. As regras de governança corporativa do fundo patrimonial e a política de investimento costumam ser detalhadas em um regulamento ou regimento, aprovado pelos órgãos deliberativos da associação ou fundação, conforme o caso.

No I Fórum Internacional Endowments Culturais, o qual dispôs sobre orientações práticas para a implementação de endowments em instituições culturais, recomendou-se que nos documentos societários dos fundos patrimoniais constassem: (i) qual a missão do endowment; (ii) como se formará o patrimônio destinado ao endowment; (iii) como o patrimônio será segregado; (iv) como o patrimônio será utilizado - investimento e uso apenas de resultados acima da inflação, ou utilização de parte do principal, bem como se haverá exceção a essa regra geral ou não e em que condições; (v) qual seu prazo de duração ou se é perpétuo; (vi) qual será a forma de governança do endowment; (vii) qual ou como será definida a política de investimento, a taxa e política de resgate; (viii) como e por quem a aplicação e uso dos recursos serão monitorados; (ix) como e em que condições o endowment poderá ser dissolvido e qual a destinação do patrimônio remanescente. Todos esses pontos auxiliam na transparência e melhor governança dos fundos patrimoniais de modo geral2.

Ressaltamos que fundo patrimonial é diferente de fundo de investimento. O primeiro objetiva a concretização, de forma perene, do projeto sociocultural que motivou as doações. O segundo visa a obtenção de retornos financeiros para seus investidores (cotistas), de acordo com a política de investimento adotada no seu regulamento. Além de diferentes propósitos, do ponto de vista jurídico a estruturação deles e o marco legal aplicável a cada qual também é diverso.

Até meados de 2018 não havia regulamentação específica no Brasil sobre fundos patrimoniais, porém, há algum tempo, já tramitavam no Congresso Nacional projetos de lei sobre o tema3. O cenário legislativo, no entanto, foi alterado em setembro de 2018 quando o ex-presidente da República, Michel Temer, promulgou a MP 851/18, a qual autorizou a administração pública a firmar instrumentos de parceria e termos de execução de programas, projetos e demais finalidades de interesse público com organizações gestoras de fundos patrimoniais.

Conforme a exposição de motivos da norma, a medida provisória se justificou pelas dificuldades financeiras enfrentadas pelas instituições públicas quando se fala em conservação do patrimônio e investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação, o que ficou evidenciado com o incêndio do Museu Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, por exemplo. Esse evento foi o gatilho para a edição da medida provisória. Assim, seguindo o exemplo dos EUA, país no qual os endowment funds já contribuem significativamente no financiamento de causas socioculturais diversas, com destaque à educação universitária (e.g. Harvard, Stanford, Princeton e Yale contam com fundos de endowment bilionários), a norma (i) cria um canal para o financiamento privado de instituições públicas e (ii) traz segurança jurídica para captação de recursos privados para instituições privadas que prestam serviços de interesse sociocultural[4].

Em linhas gerais, a MP 851/18 inaugurou um marco normativo para os fundos patrimoniais, visando estimular doações com foco nas áreas de tecnologia, assistência social, ciência, educação, inovação, meio ambiente, cultura, saúde, esporte e pesquisa. A medida provisória definiu "Fundo Patrimonial" como um "conjunto de ativos de natureza privada instituído, gerido e administrado pela organização gestora de fundo patrimonial com o intuito de constituir fonte de recursos de longo prazo, a partir da preservação do principal e da aplicação de seus rendimentos" no seu art. 2º, IV. Dessa maneira, deve ser criada uma pessoa jurídica de direito privado, sujeita a regras de governança próprias para gerir o Fundo Patrimonial, garantindo que seja cumprida a finalidade proposta para os recursos fornecidos.

Após a publicação da medida provisória foram propostas 114 emendas à MP 851/18. As críticas utilizadas como base para o pedido de tais modificações podem ser agrupadas em 3 seguimentos: (i) o excesso de regras para gerir o fundo, tornando muito burocratizada a prática de governança pelos gestores privados e gerando risco de afastar possíveis doadores; (ii) a necessidade de incluir "direitos humanos" de forma expressa na lei quando esta versa sobre as causas que podem ser sustentadas pelos endowments e (iii) a proposição de incentivos fiscais para quem constitui ou auxilia na manutenção de um fundo desse tipo e a não tributação das aplicações financeiras realizadas por seus administradores. Nesse contexto, em dezembro de 2018 o Senado aprovou a medida provisória.

Em janeiro de 2019, o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou o texto de lei aprovado com veto parcial. Dentre os trechos vetados, a exclusão do capítulo III que versava sobre benefícios fiscais aplicáveis à captação de recursos por fundos patrimoniais para o financiamento de instituições públicas chamou a atenção dos especialistas, já que há argumentos no sentido de que isso poderia ter sido um incentivo para esse tipo de parceria. Também, apesar de não constar expressamente na norma, as associações e fundações, na qualidade de pessoas jurídicas de direito privado, podem adaptar seu estatuto à lei para atuar como gestoras dos fundos patrimoniais, com base naquilo que já foi exposto acima e no art. 2º, II da nova lei editada.

O resultado desse processo foi a conversão da MP 851/18 na lei 13.800 de 4 de janeiro de 2019. Referida lei autoriza a parceria entre a administração pública e os fundos Patrimoniais, delimitando quais os ramos de atuação em que são passíveis o uso deste instrumento. Além disso, o texto legal define o conceito de fundo patrimonial (art.2º, IV), dentre outros conceitos e atores relevantes como "organização gestora", e dedica toda uma seção para elucidar qual sua finalidade e forma de constituição (seção I, art. 3º e seguintes).

A partir deste marco legal, os fundos patrimoniais passam a exercer obrigações fiscais e regulatórias, em grande parte relacionadas aos órgãos deliberativos e consultivos de caráter obrigatório que fiscalizarão tais fundos. Nesse sentido, também se encontram bem definidos os tipos de receita e as modalidades de doação aceitos (art. 13 e 14 da norma).

De forma geral, a lei 13.800/19 consolida um instituto capaz de alavancar inúmeros projetos da sociedade civil e, de fato, concede maior estabilidade e segurança para a realização da função proposta. Agora, os fundos patrimoniais passam a ser fiscalizados de perto desde as suas constituições até o cumprimento de suas atividades.

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1 SPALDING, Erika. Os Fundos Patrimoniais Endowment no Brasil. (Dissertação de Mestrado). Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. 2016. p. 43-44. Acesso em: 21.02.2019.

2 I Fórum Internacional Endowments Culturais. Guia 3 l Orientações práticas para a implementação de endowments em instituições culturais (07/06/2017), p.24. Acesso em: 21.02.2019.

3 Tais como o (i) PL 4.643/2012, (ii) PL 8694/2017 (PLS 16/2015), (iii) PL 160/2017, (iv) PL 6.345/2016 (apensado ao PL 8.694/2017), (v) PL 8512/2017 (apensado ao PL 6.345/2016), (vi) PL 7.641/2017. Cf. GIFE, Caminhos possíveis para a criação de endowments no Brasil (04/10/2017)  Acesso em: 21.02.2019.

4 Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 851/2018 - EMInº 00041/2018 MECMPMinC, Brasília, 10/09/2018.Acesso em: 21.02.2019.

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*Jéssica Guerra de Alencar Araripe é advogada especialista em Mercado de Capitais e Fundos de Investimento. 

*Mario Alfredo de Oliveira é advogado formado pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). 

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