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As entidades do terceiro setor e a ação de improbidade administrativa

Por não configurarem contratos administrativos, mas parcerias, espécies de convênios, as entidades do Terceiro Setor gerenciam recursos públicos, empregando-os nos planos de trabalho estipulados e, ato contínuo, prestam contas das despesas e das atividades desempenhadas.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Atualizado em 9 de maio de 2019 17:18

O terceiro setor é caracterizado, em linhas gerais, pela atuação da sociedade civil sem fins lucrativos em atividades de interesse coletivo, como é o caso da educação, da saúde, cultura, preservação do meio ambiente e outros; indicando "os entes que estão situados entre os setores estatal e empresarial"1.

Sob os regimes jurídicos instituídos pelas leis 9.637/98, 9.790/99, 13.019/14, associações e fundações de direito privado podem firmar parcerias com a Administração Pública para a execução de um plano de trabalho firmado de comum acordo, via de regra custeado com recursos públicos.

Por não configurarem contratos administrativos, mas parcerias, espécies de convênios2-3, as entidades do Terceiro Setor gerenciam recursos públicos, empregando-os nos planos de trabalho estipulados e, ato contínuo, prestam contas das despesas e das atividades desempenhadas.

Ao gerenciarem recursos públicos, os administradores das entidades do Terceiro Setor podem estar sujeitos às sanções da lei 8.429/92, a lei de improbidade administrativa, que, embora instituída para coibir desvios de conduta dos agentes públicos, estende seu campo de incidência "àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta" (art. 3º).

A legitimidade passiva, entretanto, depende da indicação de um agente público para o polo passivo, em litisconsórcio necessário, com o qual a pessoa jurídica e seus dirigentes, ao menos em tese, possam ter concorrido para a prática de condutas enquadráveis na lei de improbidade administrativa.

É o que se tem assente na jurisprudência, conforme demonstram os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: REsp nº 1.171.017-PA, Rel. Min. Sérgio Kukina, j. em 25/02/14, REsp nº 1.405.748/RJ Rel. Min. Regina Helena Costa, j. em 21/05/15 e AgRg no ARE 574.500/PA. Rel. Min. Humberto Martins, j. un. 02/06/15.

Nos termos do art. 3º da lei 8.429/92, a legitimidade apenas estará configurada se presente, no polo passivo, um agente público ao par da entidade do Terceiro Setor e/ou seus dirigentes. A explicação para tanto, vale dizer, advém do art. 2º da lei de improbidade administrativa, para o qual "Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior."

A impossibilidade de enquadramento dos integrantes do terceiro setor como agentes públicos decorre da Constituição Federal e do regime jurídico das atividades de interesse público, notadamente porque "não desempenham serviço público delegado pelo Estado, mas atividade privada de interesse público; trata-se dos chamados serviços sociais não exclusivos do Estado", conforme palavras de Maria Sylvia Zanella di Pietro.4

De fato, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923/DF, o Supremo Tribunal Federal afirmou que não podem ser confundidos o regime jurídico dos serviços públicos exclusivos - que devem ser prestados diretamente pelo Estado - com o das atividades de interesse coletivo, a exemplo de saúde, cultura e educação, livres à iniciativa privada, que os exerce por direito próprio, ainda que recebendo alguma forma de fomentos, mas não por delegação do Poder Público.5

Ao exercerem atividades por direito próprio, não por delegação ou qualquer forma de investidura pelo Poder Público, embora por ele seja fomentado, as entidades do terceiro setor e seus dirigentes não se amoldam ao conceito jurídico de agente público do art. 2º da lei 8.429/92 e, portanto, não podem figurar, sozinhas, no polo passivo da ação de improbidade administrativa.

Acertadíssima, portanto, a jurisprudência do Superior Tribunal que se firmou no sentido de que "os particulares não podem ser responsabilizados com base na LIA sem que figure no pólo passivo um agente público responsável pelo ato questionado"6.

Na ocorrência do ajuizamento de ação de improbidade administrativa contra entidade do Terceiro Setor e/ou seus dirigentes, sem a necessária presença e um agente público no polo passivo, a petição inicial merece pronta rejeição, nos termos do art. 17, § 8º, da lei 8.429/92, em razão da ausência de legitimidade passiva, pressuposto processual exigido pelos arts. 1º a 3º da lei 8.429/92 e pelos arts. 17 e 485, VI, do Código de Processo Civil.

 
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1 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. Ed. São Paulo: Malheiros: 2006, p. 15.

2 Convênio é acordo, mas não é contrato. No contrato as partes têm interesses diversos e opostos; no convênio os partícipes têm interesses comuns e coincidentes. Por outras palavras: no contrato há sempre duas partes (podendo ter mais de dois signatários), uma que pretende o objeto do ajuste (a obra, o serviço etc.), outra que pretende a contraprestação correspondente (o preço, ou qualquer outra vantagem), diversamente do que ocorre no convênio, em que não há partes, mas unicamente partícipes com as mesmas pretensões. Por essa razão, no convênio a posição jurídica dos signatários é uma só, idêntica para todos, podendo haver apenas diversificação na cooperação de cada um, segundo suas possibilidades, para a consecução do objetivo comum, desejado por todos. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 39. Ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 464.)

3 As parcerias são, em rigor, espécies de convênios, conforme afirmado pelo Supremo Tribunal Federal no acórdão da ADI nº 1.923/DF: "o contrato de gestão não consiste, a rigor, em contrato administrativo, mas sim em um convênio. Com efeito, no núcleo da figura dos convênios está a conjugação de esforços para o atingimento de um objetivo comum aos interessados: há plena harmonia entre as posições subjetivas, que buscam um negócio verdadeiramente associativo, e não comutativo, voltado para um fim compartilhado. É justamente isto que se passa no contrato de gestão, em que a entidade privada, constituída para atuar sem finalidade lucrativa nas áreas elencadas no art. 1º, e o Poder Público, submetido aos deveres constitucionais de agir, pretendem alcançar a mesma finalidade: a realização de serviços de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, meio ambiente e ciência e tecnologia. Os interesses de ambas as partes, portanto, confluem em uma mesma direção, o que é totalmente diverso do que ocorre com a figura típica do contrato administrativo, caracterizado pela oposição de interesses. É nesse sentido que se expressa a doutrina, recusando aos contratos de gestão a natureza verdadeiramente contratual".

4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 10. Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 261.

5 Neste sentido: GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 338: "o particular que receba subvenções ou incentivos do Poder Público para a realização de determinada atividade de interesse público, em rigor lógico, não exerce 'mandato, cargo, emprego ou função' junto aos sujeitos passivos em potencial dos atos de improbidade administrativa. Não é enquadrado, portanto, no art. 2º da Lei nº 8.249/1992."

6 STJ-2ª T. AgRg no ARE nº 574.500/PA. Rel. Min. Humberto Martins, j. un. 02/06/15.

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Bibliografia

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 10. Ed. São Paulo: Atlas, 2015.

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 39. Ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. Ed. São Paulo: Malheiros: 2006.

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*Mário Henrique de Barros Dorna é mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

 

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