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A desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho: um samba de uma nota só?

Guilherme Carvalho e Raphael Guimarães title=Raphael Guimarães

Diante de tantas obviedades, como tem se comportado a Justiça do Trabalho quanto ao novel (apenas na imposição normativa) incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC/15 e na CLT? Por que ainda reside tanta polêmica nessa modesta questão e, mais que isso, por que tanta resistência em se cumprir o procedimento estabelecido na legislação?

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Atualizado às 13:36

A Justiça do Trabalho no Brasil sempre foi alvo de severas críticas: algumas mais infundadas, reconheçamos; outras, imbuídas de justas razões. É claro que aqui, leitor, não poderemos estabelecer, por completo, o que há de bom e de ruim nesse ramo especializado do Judiciário brasileiro. O propósito é outro, eis que se busca exclusivamente demonstrar o ritmo que vem sendo dado a um instrumento tão usual no Judiciário trabalhista: a desconsideração da personalidade jurídica.

Bem se veja que, ao Judiciário brasileiro, são atribuídas algumas censuras, a maioria quase sempre relacionada a uma ausência de efetividade, seja pelo excesso de recursos e demais medidas judiciais tendentes a afastar o cumprimento imediato da obrigação constante no título (judicial ou extrajudicial), seja pela ideia, até caricata, que se traduz no jargão do "ganhar, mas não levar". Deste estigma o Judiciário Trabalhista sempre tentou se afastar - ponto inegável!

Entre a tal da paupabilidade do quanto pretendido em juízo - isto é, da entrega, por inteiro, do bem postulado perante o Judiciário - e os meios pelos quais se possa atingi-la há um espaço delicado, que, invariavelmente, transita pelas vias das normas processualísticas que garantem um mínimo de segurança jurídica ao jurisdicionado, aqui incluindo até mesmo o devedor/executado ou quem possa, hipoteticamente, figurar como tal (eis a razão da desconsideração). Já não mais há espaço para a Justiça privada, aquela entregue a qualquer custo, forte mesmo, entre tanto outros, nos valores que constitucionalmente nos são garantidos.

O que se quer dizer é que não é consentido, em homenagem à efetividade da prestação jurisdicional, simplesmente por pretendê-la entregue  a qualquer custo, desnudar valores mínimos, maiormente os tendentes a afiançar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório e, nesta mesma trilha, o essencial direito de propriedade. Dito de outro modo, até mesmo para se chegar ao pagamento final, já nas ultimações da execução do título (judicial ou extrajudicial), um mínimo de ritualística e ritmo deve ser adotado, sob pena de esvaziamento do próprio Estado de Direito.

Imaginar de forma contrária significa outorgar ao Judiciário uma posição que transcende mesmo a ideia de aplicação criativa do Direito, tornando-o efetivamente superior ao legislador, na medida em que pode desconsiderar a normatização por este posta. Não há qualquer suposta eficácia de prestação jurisdicional que justifique o descumprimento contumaz de uma norma clara e de conteúdo objetivo, não ao menos sem desvirtuamento do próprio sistema e expansão alarmante da insegurança jurídica.

A definitividade categórica quanto à perceptibilidade do conteúdo de uma norma jurídica, que deságua em uma só intepretação, não promove a permissão de sua distorção, ainda que se tenha como desiderato uma alegada entrega - não se sabe a que custo - do objeto material posto sob litígio.

Todavia, diante de tantas obviedades, como tem se comportado a Justiça do Trabalho quanto ao novel (apenas na imposição normativa) incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC/15 e na CLT? Por que ainda reside tanta polêmica nessa modesta questão e, mais que isso, por que tanta resistência em se cumprir o procedimento estabelecido na legislação?

A nosso sentir, nunca existiu a necessidade de o legislador estabelecer (por meio de norma infraconstitucional) que, para se incluir alguém no polo passivo de uma lide, ampliando-a subjetivamente, fosse imprescindível a instauração de um incidente, paragem onde a parte prejudicada pode se defender, produzir provas e, além de tudo, tentar comprovar que ali (digo, naquela relação jurídica processual) não poderia - tampouco deveria - figurar; e por quê? O porquê é óbvio: clareza decorrente de princípios (cláusulas pétreas) constantes na CF/88, relacionados ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.

Mesmo assim, ainda que manifestas tantas obviedades incontestáveis e intransponíveis, o legislador infraconstitucional resolveu deixar redondamente legal o devido processo legal (perdão à tautologia), evitando sua frívola mortalidade e impedindo a formação - ao menos quanto a este ponto da desconsideração da personalidade jurídica - de um devido processo "letal". Precisamente por isso, definiu-se, no CPC/15 (disposições antes inexistentes), logo no título que trata da intervenção de terceiros, um capítulo, com uma disposição de artigos (133 usque 137) voltados exclusivamente à rítmica compassada da desconsideração da personalidade jurídica. 

E já promulgado o CPC, de aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho (art. 769 da CLT), o TST resolveu estabelecer, por meio de instrução normativa, o que dele (CPC) dever-se-ia cumprir. Daí que exsurgiu a resolução 203, de 15 de março de 2016, que editou a instrução normativa 39, a qual dispõe sobre as normas do CPC/15 aplicáveis e inaplicáveis ao processo do trabalho, de forma não exaustiva. Aqui, logo nesta instrução normativa, o TST determinou que o capítulo do CPC que regula o incidente de desconsideração da personalidade jurídica deveria ser aplicado à Justiça do Trabalho. Mais que isso, a "reforma trabalhista", instituída por meio da lei 13.467/17, regulamentou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho no corpo da própria CLT (art. 855-A).

Então, se aplicam à Justiça do Trabalho as normas relacionadas ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por que tanto pandemônio e inquietação? Ora, basta observar as disposições legais, aplicar e ponto - assunto resolvido! Pois é, caro leitor, o detalhe é que o legislador não "combinou com os russos" (magistrados do trabalho) e, de tal modo, na prática, o que se vê é a aplicação tópica, desafinada e discordada quanto ao instituto, fazendo valer, na prática, a vontade pessoal de cada julgador, que, sob seus próprios auspícios, vê-se no poder de não ser prazenteiro ao legislador, outorgando a si próprio a faculdade de não realizar a lei.

É hora de cumprir o óbvio, possibilitando ao jurisdicionado - designadamente aqueles que não têm pertinência material com a relação jurídica processual tratada - o direito de amplamente oferecer defesa, obtendo um concerto interpretativo sistêmico e sonoro, com notas de explicações múltiplas, voltadas a todas as partes, evitando a formação de um processo conturbado, confuso e funesto - um verdadeiro samba, pior, prevenindo a formação de um samba de uma nota só!  

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*Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Processual do Trabalho. Advogado e sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. 

*Raphael Guimarães é advogado especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. 

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