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A boa-fé no contrato de trabalho

A nosso ver, o entrave para uma aplicação mais acertada e razoável do princípio da boa-fé aos contratos de trabalho pode não se justificar totalmente pelo silêncio da CLT, por não se ter dedicado um único dispositivo explícito a tão importante assunto.

segunda-feira, 10 de novembro de 2003

Atualizado às 08:32

A boa-fé no contrato de trabalho

 

Mário Gonçalves Júnior*

 

Para Miguel Reale, um dos artigos-chave do novo Código Civil é o artigo 113: "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração" ("Um artigo-chave do Código-Civil", Estado de S. Paulo, "Espaço Aberto", 21/06/03).

 

"Desdobrando essa norma em seus elementos constitutivos", justifica o insuperável filósofo, "verifica-se que ela consagra a eleição específica dos negócios jurídicos como disciplina preferida para regulação genérica das relações sociais, sendo fixadas, desde logo, a eticidade de sua hermenêutica, em função da boa-fé, bem como a sua socialidade, ao se fazer alusão aos "usos do lugar da celebração".

 

Sendo assim, estaria satisfeita a lacuna da legislação trabalhista que incomoda o ex-Ministro Almir Pazzianotto Pinto que em outra excelente matéria doutrinária, fazendo um paralelo, apontou o artigo 9o. como sendo o artigo-chave da CLT, por força da aplicação subsidiária do direito comum (parágrafo único do art. 8o. da CLT).

 

Com efeito, Pazzianotto credita ao silêncio da CLT, que não dedicou um único dispositivo explícito ao princípio da boa-fé, o manejo nem sempre adequado da teoria do contrato-realidade.

 

É útil, para melhor compreensão, a leitura direta do pensamento do ex-Ministro: "A Consolidação das Leis do Trabalho não se refere uma única vez à boa-fé. Na CLT, o artigo-chave é o 9o., que diz: "Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação". Aparentemente simples, o dispositivo se reveste, entretanto, de notável complexidade e ilimitado alcance, pois tanto se presta para corrigir atos fraudulentos e contrários à lei como para transformar contrato civil em trabalhista, mesmo quando celebrado e praticado em harmonia com o que fora pactuado e obedecidas as exigências legais. É o dispositivo que faculta ao juiz do Trabalho aplicar o princípio do "contrato realidade", em benefício do prestador de serviços e para surpresa do tomador de serviços, que repentinamente se vê transformado em patrão, com encargos que essa qualificação atrai.

 

"(...) É óbvio que empregadores e tomadores de serviços também cometem atos de má-fé, deixando, por exemplo, de registrar alguém que contratavam como empregado. Nesse caso, porém, presente já se encontra o contrato tácito ou ajustado verbalmente. Não me refiro a essa situação, comum em um país onde o mercado informal, por razões que aqui não cabe examinar, é maior do que o mercado estruturado. Preocupa-me que sob a cobertura do contrato realidade se multipliquem condutas nas quais a má-fé não é coibida em nome de duvidosa necessidade de proteção a alguém que não corresponde ao modelo de hipossuficiente. (...)" (Boa-fé e contrato de trabalho, www.migalhas.com.br, g.n.o.).

 

Certa feita tangenciamos o mesmo tema sob ângulos diferenciados em dois estudos: um, sobre "o cinismo nas relações de trabalho", onde ressaltamos a importância de se aplicar ao Direito do Trabalho, supletivamente, o artigo 110 do novo Código Civil, que consagra o instituto da reserva mental; e outro, sobre "fraude impossível", no qual participamos a experiência casuística sobre empregadores que, embora inicialmente tenham até pretendido escapar da legislação trabalhista, deixaram de registrar trabalhadores e qualificando-os como autônomos, mas na execução dessas relações jurídicas se verificou que, de fato e naturalmente os elementos caracterizadores do emprego não se fizeram todos presentes. Ou seja, a intenção inicial pode ter sido viciada por má-fé, mas a realidade que se verificou, ao depois, durante a execução desses contratos, acabou por afastá-los da caracterização do emprego. Comparamos essa última situação à figura do crime impossível, conhecido instituto do Direito Penal (www.migalhas.com.br, www.conjur.com.br, www.saraivajur.com.br e Jornal Trabalhista Consulex 979, 18/08/03).

 

Uma coisa, entretanto, é certa: com ou sem previsão legal expressa, ramo algum do Direito, mormente nos dias atuais, prescinde da boa-fé. Tanto assim que o contrato de trabalho, mesmo não contando com um único dispositivo explícito sobre eticidade na sua execução e interpretação, sempre teve, pela melhor doutrina trabalhista, dentre seus elementos intrínsecos, os bons propósitos de ambos os contratantes.

 

Süssekind, Maranhão, Vianna e Teixeira Lima (Instituições de Direito do Trabalho, V. 1., LTr, 16a. ed., SP, 1996, pág. 254) ensinam que "o contrato de trabalho, como qualquer outro, deve ser executado de boa-fé. O princípio da execução de boa-fé, como salienta De Page, é um daqueles que constituem a base da sistemática jurídica em matéria de contrato. Sua origem remonta à distinção do direito romano entre contrato de direito estrito e contratos de boa fé. Os primeiros eram de interpretação rigorosa, enquanto que, em relação aos segundos, se permitia ao juiz indagar livremente a intenção das partes, sem ficar preso à sua expressão literal. Hoje - diz De Page - "todos os contratos são de boa-fé". "Nas declarações de vontade" - é a regra geral do art. 85 do Código Civil - "se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem" (referência ao Código Civil anterior).

 

A nosso ver, o entrave para uma aplicação mais acertada e razoável do princípio da boa-fé aos contratos de trabalho pode não se justificar totalmente pelo silêncio da CLT, por não se ter dedicado um único dispositivo explícito a tão importante assunto. Parece-nos, s.m.j., que a questão, hoje, reside na dificuldade que muitos operadores do Direito do Trabalho têm de abandonar velhas concepções, do tempo do onça, quando o trabalhador era estereotipado como um sujeito de macacão sujo de graxa, capacete alaranjado e luvas de raspa, explorado sagazmente pelo empregador, aniquilado na expressão da sua vontade.

 

Já é tempo de pensarmos o contrato de trabalho de maneira menos maniqueísta. E talvez para isto nem seja necessária alteração legislativa. Mudanças de mentalidade possivelmente bastariam, reservando a excessiva proteção legal aos excessivamente hipossuficientes, ou, simplificando demais, um Direito do Trabalho verdadeiramente operário.

 

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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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