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Uma primeira nota sobre a marcação de ponto por exceção: contornos e validade da nova figura

No particular desta breve reflexão, se propõe endereçar a indagação dos efeitos práticos e das razões pelas quais a nova figura foi instituída.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Atualizado em 23 de agosto de 2019 12:54

I - O novo artigo 74 da CLT: a previsão legislativa do registro por exceção.

Na noite do dia 21/8 último, o Senado aprovou o texto da MP 881/19, apresentada como a MP da Liberdade Econômica. Dentre as várias inovações legislativas, propôs-se alterar a sistemática relativa ao controle da jornada de trabalho de empregados.

A nova lógica decorre do redesenho do artigo 74 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), dispositivo que compõe Seção do Capítulo voltado à regulamentação da duração do trabalho. Para se ter uma rápida ideia da inércia da regra que foi agora alterada, basta observar que em 76 anos de vigência da CLT, o dispositivo só havia sido alvo de alteração legislativa uma única vez, em 1989, quando se deu nova redação ao seu § 2º.

Na ocasião, houve a dispensa de anotação do intervalo relativo ao repouso para alimentação e descanso. Quer dizer, até 1989, o empregado deveria obrigatoriamente proceder a anotação de horário também ao sair e retornar do almoço. Após esse marco, passou a ser autorizado que o empregado apenas fizesse o registro do início e fim do dia de trabalho, sendo presumido que o horário de almoço fora respeitado.

O que se deu em 1989, em alguma medida, foi revisitado pela norma que acaba de ser aprovada. Em termos essenciais, as duas alterações voltam-se à redução da importância do ato da marcação do ponto, em si, no contexto mais amplo do controle da jornada do trabalhador.

A disposição foi inscrita no novo § 4º do artigo 74 da CLT, segundo o qual:

"§ 4º Fica permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho".

Como se vê, o dispositivo legal não impôs a nova sistemática, tendo apenas a permitido, estando sua utilização condicionada ao prévio ajuste, pela via individual ou coletiva. O § 2º, que se ocupa da regra geral de obrigatoriedade da anotação da jornada, segue em vigor. No particular, a medida provisória apenas restringiu a abrangência da anotação compulsória, passando a ser imposta apenas às empresas que contem com mais de 20 empregados, em oposição à regra anterior, que previa limite de 10 empregados.

No particular desta breve reflexão, se propõe endereçar a indagação dos efeitos práticos e das razões pelas quais a nova figura foi instituída. Para isso, é preciso primeiro traçar brevemente o cenário atual do instituto do controle de jornada (seção II), para depois se inquirir sobre as motivações e vocações do ponto por exceção (seção III). Por fim, uma rápida consideração será apresentada em relação à validade da figura (seção IV).

II - O estado da arte do controle de jornada. A lógica da revisão judicial e o dilema da regulação.

Nos termos da Constituição de 1988, a jornada de trabalho de quem é empregado não pode ser superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) semanais, permitida a compensação, conforme estabelecido no inciso XIII do art. 7º. Embora a Carta fixe a jornada máxima, não se ocupa de como  deve se dar o controle desses limites. E vale o comentário: desde 1934 as Constituições tratam dos limites da jornada, e igualmente nunca se fez menção à forma de seu controle.

A marcação, ou seja, o registro escrito da jornada, como inclusive já adiantado, sempre se deu em conformidade com previsão legislativa, nos termos do longevo artigo 74 da CLT. O importante ponto a ser enfatizado é que a marcação não é, fundamentalmente, o principal meio de controle de jornada, em face da ampla revisão judicial a que está submetido tal aspecto da vida laboral.

Fundamentalmente, o controle final e definitivo da jornada se dá no âmbito judicial. É no campo da reclamação trabalhista que, finalmente, será declarada a jornada vivenciada, daí se extraindo os efeitos jurídicos cabíveis, normalmente, discussão sobre condenação em horas extras.

Neste momento, é preciso relembrar que no campo do Processo do Trabalho vige o princípio da verdade formal. No âmbito judicial, portanto, a ninguém impressionará que condenações decorram de presunções em consequência de eventos processuais (como a revelia), sem qualquer conexão com as condições efetivamente experimentadas pelas partes ao longo da relação de fato.

A marcação de ponto, nessas condições, passa a ser considerado como mais um elemento de avaliação da jornada, e não o único.

E no particular do controle de jornada, há algumas presunções solidamente assentadas, conforme se lê da súmula 338 do TST.

Por meio do verbete de jurisprudência foram pacificadas as teses de que: i) a não juntada dos cartões de ponto pelas empresas indicadas no § 2º (mais de 10 empregados hoje, mais de 20 a partir da promulgação da nova disciplina) marcação de pontoimporta em inversão do ônus da prova, prevalecendo a jornada apontada na exordial acaso prova alguma seja produzida; iii) não é dado a negociação coletiva estabelecer presunções de cumprimento da jornada, ela precisa sempre ser anotada; e iii) cartões de ponto que registrem horários uniformes - a tal jornada britânica - são inválidos, novamente, tendo-se por acertada a jornada alegada no caso de ausência de outras provas.

Dito de outra forma, se o ônus de comprovar a sobrejornada incumbe naturalmente ao Reclamante, por alegar fato constitutivo de seu direito, as hipótese estabelecidas na súmula 338/TST importam em inversão desse ônus, o qual passa a recair sobre o réu, o empregador. Tem-se, pois, que se o empregador deixar de apresentar cartões de ponto, ou os apresentar com anotações uniformes, será presumidamente correta a jornada apontada na petição inicial.

Para além das presunções a que alude a súmula 338/TST, é possível extrair da jurisprudência - ainda que de forma implícita - o que pode ser considerado como a força da prova decorrente das anotações de jornada. A análise dos sinais, no particular, apontam para uma robustez probatória reduzida em face da prova testemunhal.

Não só a prova testemunhal única pode ser suficiente para invalidar o conjunto de todos os cartões de ponto regularmente assinados pelos empregado - mesmo dele não constante anotações uniformes -, como a amplitude do depoimento testemunhal não estará limitada ao período abrangido pelas declarações. Tem-se, pois, que se uma única testemunha ouvida pelo Reclamante declarar em juízo que o Autor, diga-se, no último ano de trabalho costumava assinar o ponto e retornar ao trabalho, está autorizado o magistrado a invalidar as anotações por toda a extensão do período imprescrito (OJ 233/SBDI-1 do TST), o qual pode chegar a 5 (cinco) anos.

Some-se a isso o caráter necessariamente genérico e vago de declarações testemunhais. Por se tratar de uma relação da natureza continuada, por vezes duradoura, não é mesmo possível cogitar de especificações diárias em uma reconstituição testemunhal. Depoimentos, portanto, normalmente referem a longos períodos de forma incerta, algo como o trabalho em média de 2 horas extras, três vezes por semana, nos últimos 3 anos.

Esses rápidos apontamentos se prestam a evidenciar o dilema que o controle de jornada verdadeiramente impõe ao Direito. Ou bem se opta por trazer mais credibilidade ao que anotado, considerando-se válido o que inscrito ao longo da relação jurídica; ou bem se permite revisões judiciais posteriores à documentação produzida ao longo do contrato de trabalho.

Trata-se de um dilema pelo simples fato de não haver solução confortável e utópica. Haverá sempre, e necessariamente, uma resignação ao qual se submeter.

A resignação pode recair sobre a sempre real possibilidade de imposição de anotações fraudulentas ao longo do contrato de trabalho, para a hipótese de afirmar-se a ampla validade do que ajustado e produzido entre a partes. Ou a resignação pode recair sobre os insuperáveis limites ínsitos ao processo de revisão judicial, que sempre se fiará em presunções e em depoimentos necessariamente imprecisos na busca da reconstrução do cenário fático experimentado por longas relações cotidianamente construídas.

E o que orienta o sentido de tão árdua decisão? Para uma resposta bastante objetiva: a crença, maior ou menor, na (in)disponibilidade dos ajustes celebrados ao longo da jornada de trabalho.

Acaso se parta da premissa de que uma maior indisponibilidade protege melhor o empregado, por estar ele premido em sua vontade em razão da necessidade de manutenção do vínculo, é bastante razoável optar-se pela hipótese atual, em que é fortalecida a revisão judicial.

Se, por outro lado, se compreende ser mais importante dar curso ao que ajustado entre empregado e empregador, a despeito do natural interesse do primeiro em manter o vínculo, principalmente em face da segurança jurídica e seus benéficos efeitos da previsibilidade que daí decorrerão, a decisão mais acertada será fortalecer o que inscrito nos documentos produzidos ao longo do contrato.

Bem identificado que a escolha entre os modelos decorrerá de uma opção sobre em que acreditar, e, portanto, de um opção de índole política, é hora de examinar  a opção adotada pelo legislador por meio da edição da novidade ora examinada.

III - O registro por exceção como mitigação ao modelo de controle de jornada por revisão judicial.

Apontadas as características do modelo atual, é hora de examinar os impactos que decorrerão da nova sistemática.

Em primeiro lugar, parece decorrer de forma direta e necessária do registro por exceção - acaso adotado por acordo individual ou negociação coletiva - a superação da lógica da súmula 338/TST, item I, no que diz respeito à não apresentação em juízo de cartões de ponto. Como o registro da jornada deixa de ser uma obrigação legal, não há mais sentido para se exigir sua necessária apresentação em juízo.

Assim, em face de um pedido de condenação em horas extras, serão duas as respostas possíveis a serem apresentadas pelo empregador. Ou bem afirma a inocorrência de trabalho em sobrejornada ao longo do contrato, situação na qual não haverá registro de ponto a ser apresentado; ou bem serão apresentados os registros eventuais de sobrejornada, os quais deverão ser acompanhados dos respectivos comprovantes de pagamento.

Também o item II da súmula 338/TST perde o sentido. O inciso, que versa sobre impossibilidade de afirmar-se presunções em relação ao cumprimento da jornada, passa a ser contrário ao texto legal, o qual, em si, estipula tal presunção. No mais, não havendo cartões a serem apresentados, no mínimo não haverá mais relevância no item III da mesma súmula, que refere à invalidade do registro uniforme de horários.

Há também uma outra implicação importante que decorre da nova modalidade.

Atualmente, no marco anterior à MP 841/19, a forma mais robusta de apresentação de cartões de ponto é aquela em que o empregador é capaz de demonstrar, ainda que por amostragem, a correspondência entre as situações de registro de sobrejornada e o respectivo pagamento nos contracheques do empregado. Trata-se, talvez, da mais importante e robusta prova documental que empregadores podem fazem em juízo no sentido da demonstração do estrito cumprimento da previsão legal, capaz de tornar mais rigoroso o escrutínio sobre eventual prova testemunhal em contrário.

Nessas condições, vale atentar-se para o sentido que tomará a jurisprudência. Como os cartões de pontos, no registro por exceção, tendem a corresponder precisamente ao que pago nos contracheques, a prova documental consubstanciada nos cartões de ponto tende a se apresentar  na melhor de suas condições, até porque também clara e coerente. Se há valores comprovadamente pagos e registrados, será preciso maior esforço na demonstração de comportamento fraudulento do empregador.

Não parece haver espaço para mudanças, no entanto, em relação às demais presunções próprias ao controle da jornada pela revisão judicial. Tudo indica ser compatível com o novo modelo o entendimento da OJ 233/SBDI-1 do TST, por exemplo.

Retomando-se a discussão sobre o dilema entre os modelos de controle da jornada de trabalho, é possível concluir que a opção do legislador pelo registro por exceção aponta no sentido de ampliação do que é disponível na relação empregatícia. Passa a ter mais valor o que é declarado em sede contratual. A ampliação da força de ajustes contratuais, assentada na credibilidade a ser conferida à manifestação refletida nos registros de jornada, importa igualmente na redução do espaço da revisão judicial.

O movimento do legislador, portanto, aponta para o fortalecimento da manifestação da vontade na relação de emprego, ainda que realizada extrajudicialmente. Embora siga valendo o modelo de controle de jornada por revisão judicial, na medida em que o empregado segue podendo ingressar com ação trabalhista em busca do reconhecimento de sobrejornada não remunerada, o novo regime jurídico prestigia o que já produzido bilateralmente, impondo maior esforço probatório àquele que visa desconstituir a validade dos ajustes contratualmente estabelecidos.

IV - É constitucional a sistemática do registro por exceção?

A indagação quanto à validade da nova sistemática legal de registro passa por dois aspectos fundamentais: o exame na perspectiva dogmática positiva, e na perspectiva da principiologia do Direito do Trabalho.

No contexto do estrito exame ao patamar dogmático da regulação, é preciso considerar o sistema no qual está inserida a racionalidade do controle. Nesse patamar, que não leva em consideração a articulação de princípios gerais, não parece possível identificar invalidade no novo modelo.

Como apontado, embora desde a Constituição de 1934 sempre se tenha assinalado os limites à jornada, a regulamentação em relação à forma de controle sempre incumbiu à legislação. Tem-se, desde a redação originária da CLT, que empresas com menos de 10 empregados simplesmente estavam dispensadas de qualquer tipo de registro de ponto.

Se o registro da jornada é, em si, um valor constitucional, em decorrência necessária do estabelecimento pela Carta de limites de duração do trabalho, não seria possível aceitar a solução do legislador em excepcioná-las das empresas até 10 empregados. No particular, ou bem é preciso admitir que a disposição constitucional de limitação da jornada só é garantida pelo registro de ponto, ou bem é preciso admitir serem aspectos relacionados, mas independentes.

Igualmente, não parece razoável supor que a circunstância do tamanho da empresa - até 10 empregados - autorizaria o discrímen. A alternativa, se considerada no contexto da premissa de que da limitação decorre necessariamente o registro, importaria em autorizar um acesso reduzido aos direitos constitucionais sociais de quem é empregado de empresas menores, o que não soa como possível.

Daí afirmar-se, inclusive pela história constitucional e jurisprudencial construída desde 1943, estar o legislador autorizado ao estabelecimento do registro por exceção.

Não é demais lembrar que a discussão sobre a figura até aqui verificada nos tribunais trabalhistas dão conta que o debate se deu no âmbito legal. Às convenções ou acordos coletivos que definiam o regime por exceção, o TST invocou precisamente o óbice do § 2º do art. 74 da CLT, o qual impunha sem ressalvas a ordem do registro geral. Tanto é assim, que a partir da lei 13.467/17, pela qual se permitiu que convenções e acordos coletivos versassem sobre a modalidade de registro de jornada, inclusive contra legem (art. 611-A, inciso X, da CLT), no TST já é possível identificar decisões declarando a validade do estabelecimento do modelo pela via negocial1.

Já em relação ao segundo aspecto, próprio à articulação dos princípios gerais, a questão se torna mais delicada. Nada impede que a jurisprudência compreenda, ao fim, que as limitações impostas ao modelo de controle de jornada por revisão judicial atentem contra princípios constitucionais caros ao Direito do Trabalho, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.

Em esforço de síntese, como convém ao propósito desta reflexão, é possível apontar que a invocação dos princípios deveria, antes de apontar a solução para o difícil caso concreto, esclarecer os pilares do modelo por nós adotado. Retomando, novamente, o dilema antes apresentado, tudo recomenda que os princípios sejam visitados na busca da identificação sobre a opção acerca de qual será a resignação a que deve o Direito do Trabalho submeter-se: aos limites ínsitos à revisão judicial, ou aos custos, riscos e benefícios que emergem de um modelo com mais segurança jurídica contratual.

Tal indagação, vale relembrar, foi expressamente formulada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 5794, pela qual foi impugnado o fim da compulsoriedade da contribuição sindical (lei 13.467/17). Em várias das intervenções, veiculando, inclusive, diferentes conclusões quanto ao mérito, se enfatizou que o debate girava em torno do modelo sindical que decorreria da Constituição.

Para os que invocaram a invalidade da extinção, o modelo constitucional sindical brasileiro estava assentado, necessariamente, no custeio obrigatório, de forma que este deveria ser reafirmado. No contraponto, ainda se admitido que a discussão versava sobre o modelo sindical, afirmou-se a possibilidade de o legislador, na via infraconstitucional, afastar-se de um modelo tido por corporativista e contrário ao espírito da própria Carta.

No caso da MP 841/19, não parece haver dúvidas sobre a posição tomada pela legislador, ao celebrar, já no caput do art. 1º da norma, a proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica. A opção da MP, no contexto do dilema aqui sugerido, é explicitamente mover-se no sentido da ampliação da disponibilidade e da força dos contratos.

Resta saber como a jurisprudência responderá ao movimento.

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1 RR-1001704-59.2016.5.02.0076, 4ª Turma, Relator Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 29/3/19

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t*Fernando Hugo R. Miranda é sócio do escritório Paixão Côrtes e Advogados Associados.

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