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A criminalização do mero inadimplemento tributário. Análise do novo entendimento do STJ

Thiago Guimarães Ferreira Lima e Paulo José Carneiro Leão Cannizzaro

A partir desse novo entendimento firmado no âmbito da 3ª Seção do STJ, todo e qualquer empresário que hoje possua algum débito de ICMS, estará sujeito a ser denunciado pela prática do novel crime de "Apropriação Indébita Tributária".

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Atualizado em 2 de outubro de 2019 10:01

Historicamente, o Direito Tributário nunca teve tanta relação com o Direito Penal. Hoje, mais do que nunca, tem-se criminalizado condutas dos contribuintes que antes eram vistas apenas como irregularidades administrativas tributárias, tal como o mero inadimplemento de tributos, passiveis de perseguição mediante as ferramentas ordinárias previstas em legislação específica, tendo como a principal figura a ação de execução fiscal, em que o fisco chama os contribuintes e possíveis responsáveis tributários a adimplirem para com suas obrigações.

O último relatório Justiça em números 2018(ano base 2017), publicado pelo Conselho Nacional de Justiça aponta a ação de execução fiscal como o maior gargalo da Justiça Brasileira. Segundo o relatório, em 31/12/17, existiam 42.076.875 (quarenta e dois milhões, setenta e seis mil, oitocentos e setenta e cinco) de Execuções Fiscais em trâmite no Poder Judiciário, entre casos novos, pendentes e suspensos, com uma taxa de congestionamento de 91,7%. Ou seja, a cada cem processos dessa natureza que tramitaram no ano base de 2017, no âmbito do Poder Judiciário, apenas oito foram baixados/finalizados

Segundo o próprio relatório, a série histórica dos processos de execução fiscal mostra crescimento gradativo na quantidade de casos pendentes, ano a ano, desde 2009. Os casos novos, após decréscimo em 2015, subiram em 2016 e 2017, em 12,9% e 7,4%, respectivamente. O tempo de giro do acervo desses processos é de 11 anos, ou seja, mesmo que o Judiciário parasse de receber novas execuções fiscais, ainda seriam necessários onze anos para liquidar o acervo existente2.

Frente a esses números, denota-se o galopante crescimento do estoque desse tipo de ação no Judiciário, em detrimento de uma baixa capacidade de recuperação do crédito tributário. Para se ter uma ideia, o relatório da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional - PGFN em números3, aponta que em 31/12/18 a dívida fiscal executada, no âmbito Federal, somava a assustadora quantia de 2,196 trilhões de reais, estando cerca de 44,8% dessa dívida classificada como irrecuperável - rating "D" (aproximadamente 980 bilhões de reais). Vale salientar que tais números dizem respeito, apenas, às dívidas dos contribuintes com a União, estando estados e municípios fora dessa conta.

Nesse contexto, a conclusão óbvia é de que as Ações de Execução Fiscal têm se mostrado uma ferramenta pouco eficiente para a recuperação dos créditos tributários, o que tem levado o Fisco, lato sensu, a buscar novos meios para satisfação dessas dívidas, seja aprimorando os meios de fiscalização, modernizando as formas de cobranças de imposto,  enrijecendo a concessão de benefícios fiscais ou mesmo reinterpretando condutas anteriormente tidas como meras infrações administrativas tributárias, com o objetivo de criminaliza-las.

É cada vez mais comum que o Fisco busque, com o constrangimento da aplicação do caráter coercitivo e punitivo do Direito Penal, mediante uma excessiva criminalização das condutas dos contribuintes, incrementar a arrecadação tributária, afastando-se, dessa forma, do princípio da ultima ratio de aplicação do Direito Penal, que reza que este só deveria ser aplicado apenas quando os demais ramos do Direito não se mostrassem efetivos à regrar a conduta humana.

Um exemplo muito claro dessa nova tendência, foi a reinterpretação da conduta do contribuinte que declara e não paga o imposto devido, tal como recentemente acontecido, no âmbito do STJ, por meio da "criminalização do mero inadimplemento do ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços".

Em agosto de 2018 a Terceira Seção do STJ, negou um pedido de Habeas Corpus  399.109 ("HC") de empresários que não teriam pago o ICMS declarado que havia sido cobrado de seus clientes quando da aquisição de mercadorias por estes, considerando-se como crime de "Apropriação indébita tributária", previsto no art. 2º, II da lei 8.137/904 (Lei dos Crimes Contra à Ordem Tributária), com pena de seis meses a dois anos de prisão, além de multa.

Em outras palavras, na sistemática do ICMS, popularmente conhecido como imposto por dentro, tem a sua repercussão econômica transferida ao destinatário da mercadoria (contribuinte de fato), ou seja, dentro do preço pago pelo destinatário final haverá o valor do próprio ICMS, ficando o vendedor/prestador de serviço (contribuinte de direito) com a obrigação de recolher aos cofres públicos o imposto já cobrado do destinatário.

Apenas a título de curiosidade, importante se faz diferenciar as duas "espécies" existentes de ICMS, quais sejam: o ICMS operação própria e o ICMS por substituição tributária.

Em relação ao ICMS OP (Operação Própria), verifica-se sua ocorrência na hipótese de circulação de mercadorias e serviços, que em cada etapa da comercialização/prestação, o ICMS deve ser recolhido pela pessoa jurídica vendedora/prestadora daquela etapa específica, mediante o destaque no documento fiscal. Por exemplo, se determinado produto é regrado pelo ICMS OP, haverá um recolhimento de ICMS pela indústria, um novo recolhimento pelo distribuidor e um último recolhimento de ICMS pelo ponto de venda, valendo-se das regras próprias do valor que vai sendo agregado ao longo dessa cadeia produtiva e respeitando a apuração de conta corrente de débito e crédito.

Já em relação ao ICMS ST (Substituição Tributária), a lógica é que determinado sujeito eleito pela legislação tributária será responsável pelo recolhimento do ICMS de toda a cadeia, antecipando as diferentes etapas de comercialização/prestação da mercadoria/serviço. Valendo-se do mesmo exemplo acima, no caso de um produto sujeito ao ICMS ST, o imposto será antecipadamente recolhido normalmente pelo agente do primeiro nível produtivo (importador ou indústria) que fará o recolhimento por todos os outros agentes ali existentes, no intuito de facilitar a cobrança do imposto pelo Fisco Estadual Tributante, antecipando os fatos geradores que ainda irão ocorrer na cadeira produtiva.

Anteriormente a esse julgamento, conforme registrado no voto proferido pelo ministro relator Rogério Schietti Cruz, o entendimento dominante na 5ª e 6ª Turmas do STJ eram os seguintes:

"A Sexta Turma, em alguns precedentes recentes tem sustentado que, na hipótese de não haver o repasse de ICMS retido pelo sujeito passivo da obrigação tributária, há de se distinguir duas situações:

1ª) casos de ICMS recolhido em operações próprias ou;

2ª) casos de ICMS recolhido por substituição tributária

Nos processos em que se discute a primeira situação, isto é, naqueles casos em que não há o repasse de ICMS recolhido em operações próprias, entende o referido Órgão Colegiado que se trata de simples inadimplemento fiscal. Assim, a previsão típica contida no art. 2º, II, da lei 8.137/90 somente teria incidência nos casos de responsabilidade tributária por substituição, ou seja, na segunda situação.

A Quinta Turma (e, também, algumas decisões monocráticas da Sexta Turma), contudo, não estabelece essa distinção. Assim, o não repasse do ICMS recolhido pelo sujeito passivo da obrigação tributária, em qualquer hipótese, enquadra-se (formalmente) no tipo previsto art. 2º, II, da lei 8.137/90, desde que comprovado o dolo."

Portanto, em resumo, os entendimentos dominantes nessas duas turmas do STJ, subdividiam-se nos casos de ICMS ST e ICMS OP, tendo a 5ª Turma se posicionado pela necessidade de demonstração e comprovação do dolo, ou seja, a real intenção do contribuinte em não repassar os valores recolhidos ao fisco. Já a 6ª Turma se posicionava no sentido de criminalizar apenas o não repasse do ICMS ST, independentemente da demonstração do dolo.

No julgamento do já citado HC, os Ministros do STJ sedimentaram o entendimento de que o mero inadimplemento do imposto (mesmo sem a efetiva demonstração da ocorrência de fraude, que tenha por objetivo diminuir ou suprimir tributo ou qualquer outro tipo de artifício para fraudar a lei tributária), caracterizaria a ocorrência do crime de "Apropriação Indébita Tributária" imputável ao sujeito passivo da relação obrigacional tributária na inadimplência consciente do ICMS, sendo irrelevante a modalidade, própria ou por substituição tributária.

Portanto, a partir desse novo entendimento firmado no âmbito da 3ª Seção do STJ, todo e qualquer empresário que hoje possua algum débito de ICMS, estará sujeito a ser denunciado pela prática do novel crime de "Apropriação Indébita Tributária", mesmo não tendo ele praticado qualquer tipo de fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis que resultassem na supressão ou diminuição do imposto devido.

Ou seja, até mesmo aqueles que não realizaram o pagamento do citado imposto, seja por questão relacionadas a má administração do seu negócio ou mesmo em caso de eventuais crises (naturais), poderão sofrer a sanção máxima estatal que é exatamente o oferecimento de uma Ação Penal em seu desfavor.

Não resta outra interpretação se não a que o Direito Penal, muito após essa reinterpretação jurisprudencial do STJ, está e vem sendo utilizada com fins meramente arrecadatórios, até porque, como é bem sabido, em caso de pagamento integral do tributo devido, haverá a consequente extinção da punibilidade em relação ao empresário denunciado, e, mais, se antes da denúncia, o processo ficará suspenso até a finalização do parcelamento realizado.

Se as execuções fiscais não estão dando conta do "serviço" o meio mais fácil e rápido encontrado pelo estado foi forçar o pagamento de tributo, tendo em contra partida a um eventual descumprimento, a supressão de um dos bens jurídicos mais importantes do ser humano, que é a sua liberdade.

"não pode o Estado valer-se do direito penal como instrumento de arrecadação, nem o Judiciário acolher pretensão que culminaria, em última análise, em prisão civil por dívida. Em poucas palavras, a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, insertas em seu voto no julgamento do HC 399.109, resumiu o perigo e o absurdo desse novo entendimento do STJ, que além de abusiva, fere de morte princípios constitucionais basilares.

Que assistamos as cenas dos próximos capítulos.

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1 Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018.

2 Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018, pág. 125.

3 PGN em Números Edição 2019: ano-base 2018/Procuradoria Geral da Fazenda Nacional - Brasília, 2019.

4 Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (...) II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

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*Thiago Guimarães Ferreira Lima é advogado criminal, sócio fundador do escritório Guimarães Advocacia, pós-graduado em Ciências Penais e Direito Penal e Processo Penal, membro da Comissão de Direito Penal da OAB/PE e Diretor Jurídico do Instituto Nordeste de Direito Penal Econômico - ENEDIPE/PE

*Paulo José Carneiro Leão Cannizzaro é advogado, especialista em Direito Empresarial e Societário pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro - FGV/RJ. 

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